28 Novembro 2024
"A dominação ideológica dos que têm hegemonia na sociedade, desde o final dos anos 1980, não se faz apenas sobre os que não se organizam. Eles aprenderam muito bem que também podem e devem iludir os grupos sociais “rebeldes” com suas lições de como fazer ativismo social sem se voltar contra as estruturas econômicas ou a gestão da economia. Se está na moda falar no 'pobre de direita', temos também que colocar em pauta o “esquerdista liberal”, ou o “militante radical patrocinado”. É hora de perder o medo de falar desse assunto."
O artigo é de Maurício Abdalla, publicado por Outras Palavras e reproduzido na página de Facebook de Faustino Teixeira, 15-11-2024.
Maurício Abdalla é filósofo e doutor em Educação, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Também é membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB) e do Projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento (ABONG/ISER Assessoria).
Toda a possibilidade de diálogo e entendimento mútuo se desfaz quando a lógica e a interpretação da linguagem são desprezadas. Um fenômeno muito comum, recorrente e – preciso dizer – irritante, é a identificação de uma crítica contextualizada com uma crítica absoluta. Explicarei com um exemplo fictício, de fácil entendimento, para depois aplicar a explicação para o caso concreto da crítica ao identitarismo.
Quando se critica a monocultura do eucalipto, o eucalipto não está no núcleo da crítica e a referência a ele está contextualizada. Ou seja, a relação da crítica com o eucalipto só existe no caso em que o plantio dessa espécie se torna uma cultura única em determinada região e quando há argumentos sólidos a respeito dos problemas relacionados a essa cultura. Não se trata de uma crítica absoluta e genérica à árvore de eucalipto, às suas propriedades como planta ou aos que as plantam em quaisquer circunstâncias. Consequentemente, não faz nenhum sentido rebater as críticas à monocultura do eucalipto evocando as propriedades medicinais da espécie, sua importância como árvore ou seus inúmeros usos possíveis, pois o foco da crítica é a monocultura, não a importância, o uso e os recursos oferecidos por essa espécie vegetal.
Todos sabem que, por mais que uma árvore seja importante, o seu cultivo único, em detrimento da variedade de espécies e de outras culturas necessárias (como os alimentos) é prejudicial e pode, portanto, ser criticado sem que isso signifique a rejeição à árvore ou uma proposta de sua total erradicação. Assim, é bem fácil entender que quando alguém diz “não se pode plantar só eucalipto”, essa pessoa não está rejeitando o eucalipto ou negando sua importância e utilidades, mas sim, rejeitando sua exclusividade como cultura agrícola ou a proposta de que a monocultura do eucalipto seja a solução para os problemas gerais da agricultura.
Suponhamos que alguém chame de “eucaliptismo” a concepção agronômica que entende que se deve plantar só eucalipto em toda área agricultável disponível e que o plantio dessa espécie, por si só, é suficiente para atender as necessidades econômicas de um estado. Não faria sentido algum acusar um crítico do “eucaliptismo” de ser contra a árvore de eucalipto, ou de ser inimigo de qualquer plantio de eucalipto, em qualquer circunstância, ou de desprezar a importância dessa espécie e suas propriedades.
Uma pessoa que se dispusesse a usar uma parte mínima de sua racionalidade não responderia às críticas ao “eucaliptismo” com argumentos que evocassem a importância dos óleos, essências, remédios, usos medicinais e higiênicos e outras propriedades da árvore de eucalipto, pois ela saberia que a crítica se dirige à monocultura ou ao reducionismo “eucaliptista” e não à árvore ou ao seu plantio em qualquer hipótese. Tal reação só seria esperada em duas circunstâncias: no caso de uso insuficiente da lógica e da racionalidade – por preguiça ou falta de oportunidade de aprendizado; ou no caso de alguém que tenha interesses ocultos a defender e, por serem tais interesses indefensáveis no debate racional, usa esse argumento como estratagema argumentativo, mesmo sabendo de sua invalidade lógica. Os casos de preguiça ou falta de oportunidade de aprendizado para usar adequadamente a razão podem ser sanados. O da distorção consciente e proposital da argumentação, não.
É surpreendente notar que essa mesma confusão, que representei em um caso fictício, tem sido incomodamente recorrente quando aplicada ao caso concreto da crítica ao identitarismo. Vejamos.
“Identitarismo” não é uma escola de pensamento ou uma doutrina elaborada. É uma forma de agir e compreender a luta política, com diversos nuances e particularidades que não permitem, ainda, uma definição de léxico. Mas, podemos apresentá-la com uma definição instrumental, com objetivo de se identificar a que se refere o termo. Trata-se de uma concepção – nem sempre sustentada com consciência de suas fundamentações teóricas, mas muito presente no discurso político e na ação militante atual – que reduz a emancipação social à solução dos problemas relacionados às identidades oprimidas (negros, mulheres, LGBTQIAP+, PCD’s etc.), que desconhece a universalidade de pautas unificadoras capazes de conectar grupos sociais mais amplos e diversos e que deixa de lado todas as outras questões mais gerais relacionadas à dominação política e econômica dos povos da Terra e às causas estruturais das opressões e explorações. A compreensão rigorosa das estruturas que geram a exploração de um povo, dentro do qual ocorrem as opressões particulares, e de seu desenvolvimento histórico, bem como a discussão sobre as alternativas para se enfrentá-las, são dispensadas em nome de uma percepção imediata e fragmentada dos problemas identitários.
Por não considerarem a raiz histórica e material das opressões, o campo de batalha identitarista se torna a linguagem e as ações militantes são sempre simbólicas e performáticas, nunca estratégicas. Os opressores a serem derrotados são os que não compartilham os mesmos marcadores de identidade ou não se comunicam com os mesmos símbolos e padrões linguísticos determinados pelos seus grupos. Dessa forma, os identitaristas podem ter como inimigo mortal um estudante universitário branco, trabalhador, morador de periferia, apenas por ele não compartilhar o universo simbólico e linguístico dos grupos identitários; mas, ao mesmo tempo, podem ter como aliados os produtores milionários de um reality show, franquia internacional multimilionária reproduzida pela maior rede de televisão da América Latina e defensora das ideias e valores dos donos do capital, se esses reproduzirem suas linguagens e símbolos. Ou podem recusar o pensamento de uma intelectual de esquerda branca de classe média, por ser formada por “pensadores europeus”, e, ao mesmo tempo, aceitar e propagar a lição da megacorporação capitalista estadunidense, a Walt Disney Company, proprietária da Marvel, quando transmitida por meio de um blockbuster de super-heróis negros.
Identitarismo é uma espécie de “monocultura” da ação sociopolítica. Refere-se à exclusivização das pautas relacionadas às identidades na luta social e à redução da abordagem de todos os problemas ao discurso esotérico (ou seja, que só é compreensível para os iniciados) construído a partir dos marcadores dessas identidades. Não fazem parte do núcleo e da ação identitaristas os aspectos estruturais da exploração e opressão, a relação dos problemas com a economia e o jogo político real, a universalidade unificadora possível da ideia de classe, as questões de estratégia e tática, a captura das pautas das minorias sociológicas pelas empresas capitalistas, sua adaptação ao universo ideológico liberal, a visão de totalidade e complexidade da sociedade e inúmeras outras coisas implicadas no processo de emancipação.
A crítica ao identitarismo é uma crítica a essa concepção e não à necessária luta contra as opressões que são vividas por grupos específicos e que não se reduzem à exploração econômica. Na verdade, essas lutas e suas respectivas organizações no mundo (de mulheres, negros, indígenas, minorias étnicas, pessoas com deficiência) são travadas bem antes do discurso identitarista entrar em cena, na esteira da onda acadêmica pós-moderna que passou a dominar o imaginário progressista nos anos 1990. Ou seja, trata-se de uma crítica contextualizada, dirigida a um campo específico de concepções e práticas. Não é uma crítica absoluta ou genérica sobre as pautas identitárias e, muito menos, um desprezo ou desconhecimento das lutas históricas dos grupos oprimidos, pois essas lutas não foram iniciadas pelos identitaristas e, portanto, eles não são seus “titulares”.
O identitarismo tem consequências no discurso e na prática da militância política, que se refletem na escolha dos adversários e aliados, nas propostas apresentadas à sociedade, na composição da discursividade de um campo de opinião pública que se fecha em um raciocínio estreito e na imposição do esoterismo político e cultural. Ao invés de se inserir na luta por transformações materiais e históricas que envolvam todos os seres humanos, em sua diversidade e riqueza cultural, o identitarismo realiza um jogo midiático simbólico e performático que evita qualquer risco de questionamento de suas referências e das práticas políticas ligadas ao capital, que são as que as tornam possíveis.
Deveria ser óbvio que a crítica ao identitarismo e a suas formas de expressão não significa uma crítica ou rejeição às próprias pautas identitárias ou à luta dos grupos que se unem contra a opressão a partir da percepção de uma identidade oprimida comum, que precisa de ações e políticas específicas. Portanto, não deveria fazer sentido contrapor à crítica ao identitarismo os argumentos que valorizam a luta dos grupos oprimidos. Tampouco é inteligente acusar os críticos do identitarismo, do campo de esquerda, de serem favoráveis às opressões que recaem sobre esses grupos, ou de não se importarem com elas, ou de fazerem parte de “grupos privilegiados” que seriam supostamente ameaçados em seus privilégios pela luta dos oprimidos etc. Isso não faz o menor sentido, pois fere a lógica e interdita o debate racional.
No exemplo do “eucaliptismo”, esse esclarecimento pareceu evidente, primário e até desnecessário. Qualquer um o teria por óbvio. Por isso, ficam grandes questões no ar, quando se trata de aplicar o mesmo raciocínio ao identitarismo: por que tem sido tão difícil fazer as pessoas entenderem que não faz sentido responder aos críticos do identitarismo com argumentos que ressaltam o sofrimento dos setores oprimidos e a importância de suas lutas? Por que ainda devemos nos esforçar para explicar que não é inteligente acusar os críticos do identitarismo de racismo, homofobia, capacitismo, machismo etc. (a não ser que eles cometam atos que possam realmente ser julgados como tal – o que sempre é possível para qualquer pessoa), visto que a crítica é a uma concepção sobre as pautas e não às pautas em si mesmas?
Será que estamos simplesmente perdendo a capacidade de raciocinar ou há uma intenção de se ocultar (ou fechar os olhos para) o fato de que o identitarismo é uma concepção liberal das lutas das minorias sociológicas, que tem sido nociva para a organização de uma esquerda forte, madura e coesa, capaz de oferecer verdadeira resistência ao neoliberalismo e a seu amálgama com o fascismo e de propor alternativas viáveis para a catástrofe humana e ecológica representada pelo capitalismo global?
A dominação ideológica dos que têm hegemonia na sociedade, desde o final dos anos 1980, não se faz apenas sobre os que não se organizam. Eles aprenderam muito bem que também podem e devem iludir os grupos sociais “rebeldes” com suas lições de como fazer ativismo social sem se voltar contra as estruturas econômicas ou a gestão da economia. Se está na moda falar no “pobre de direita”, temos também que colocar em pauta o “esquerdista liberal”, ou o “militante radical patrocinado”. É hora de perder o medo de falar desse assunto.
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O significado da crítica ao identitarismo. Artigo de Maurício Abdalla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU