Para a coordenadora do Fundo Rutî, a reivindicação de copresidência na conferência é uma necessidade de reconhecer os povos indígenas como protagonistas na luta climática
A próxima edição da COP30, a ser realizada em 2025 na Amazônia, carrega consigo uma promessa de transformação. Os povos indígenas, guardiões da natureza que enfrentam as consequências das mudanças climáticas na maior floresta do mundo, reivindicam a copresidência na COP30 como forma de garantir a participação nos debates e apresentar propostas para o enfrentamento da crise climática.
Em entrevista por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Josimara Baré, liderança indígena e coordenadora do Fundo Rutî, reafirma a necessidade de reconhecer os povos indígenas como protagonistas na luta climática e o pedido de copresidência na COP30 parte disso. “A COP30 não é apenas mais uma conferência. Para nós é uma oportunidade histórica de transformar palavras em ações e de construir um futuro em que nossa cultura, sabedoria e direitos sejam reconhecidos e respeitados de fato”.
Parte disso, advém da frustração dos povos indígenas com a COP29, realizada este ano em Baku. Josimara, que esteve presente no evento, pontua sua frustração em ver os interesses das grandes empresas serem priorizados. “Nossas experiências continuam sendo ignoradas e nossas organizações ainda não são reconhecidas por fazer mudanças positivas significativas. Participar dos eventos na ‘zona verde’ ou discursar nos painéis da ‘zona azul’ sobre nossas demandas se torna frustrante quando, na prática, as decisões priorizam os interesses das grandes empresas e de alguns governos, em detrimento das demandas por justiça climática e direitos humanos”.
Josimara Baré | Foto: Arquivo Pessoal
Josimara Baré é uma mulher indígena do povo Baré, natural do Noroeste Amazônico, na Terra Indígena Cue Cue Marabitana-Alto Rio Negro. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado do Amazonas, é uma jovem ativista indígena comprometida com o fortalecimento dos direitos dos povos indígenas, especialmente no que diz respeito ao acesso direto a recursos financeiros e ao fortalecimento da autonomia indígena. Atuou nos últimos anos como coordenadora do Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN), onde desempenhou papel crucial na implementação dos projetos e fortalecimento das associações no Rio Negro. Atualmente, lidera a criação e coordenação do Fundo Indígena Rutî, vinculado ao Conselho Indígena de Roraima (CIR). Josimara também é uma representante ativa nos debates internacionais sobre fundos comunitários e mecanismos financeiros para povos indígenas.
IHU – De que maneira a COP30 pode marcar uma virada na forma como as vozes indígenas são ouvidas e incluídas nas decisões globais?
Josimara Baré – Acredito que a COP30 tem o potencial de ser um verdadeiro divisor de águas, desde que ações concretas sejam estruturadas e implementadas de forma efetiva. É fundamental que alguns países deixem de negar a emergência climática que estamos enfrentando, pois os impactos já são inegáveis. Como diz nosso parente Davi Kopenawa, nós estamos na linha de frente “segurando o céu”, mas essa responsabilidade não pode cair apenas sobre as nossas cabeças. Os desastres estão ficando cada vez mais frequentes e severos, e chegará um momento em que ninguém estará a salvo, nem mesmo os países mais ricos.
Em primeiro lugar, o reconhecimento dos Povos Indígenas como protagonistas na luta climática é indispensável. É necessário que nossos direitos sejam formalmente incluídos nos textos finais e nas decisões da conferência, reforçando nosso papel como guardiões da biodiversidade e da sustentabilidade do planeta.
Além disso, a participação direta é fundamental para garantir que nossas vozes sejam ouvidas nos espaços de tomada de decisão. Reivindicamos a copresidência da COP30 e a garantia da nossa participação nos debates de alto nível. Não buscamos apenas espaço, mas a oportunidade de apresentar nossas propostas, baseadas em conhecimentos ancestrais, para enfrentar as mudanças climáticas. Essas soluções, que são profundamente conectadas à natureza, que oferecem caminhos e oportunidades para um futuro possível para todos.
Por fim, o financiamento direto é uma questão prioritária, que já vem se postergando nas últimas COPs. Precisamos de mecanismos claros e acessíveis que garantam recursos direto para os Povos Indígenas, inclusive fortalecendo estruturas já consolidadas, como os Fundos Indígenas. Esses fundos nos permitem apoiar iniciativas climáticas em nossos territórios, com autonomia e alinhados às nossas realidades.
A COP30 não é apenas mais uma conferência. Para nós, ela é uma oportunidade histórica de transformar palavras em ações e de construir um futuro em que nossa cultura, sabedoria e direitos sejam reconhecidos e respeitados de fato. É hora de termos coragem. Coragem para aprender com os erros do passado e do presente. Coragem para reconhecer que a luta contra a emergência climática exige união e compromisso com um futuro verdadeiramente inclusivo e sustentável para todos.
IHU – Na prática, o que significaria obter a copresidência indígena na COP30?
Josimara Baré – A COP30 será realizada no norte do Brasil, no coração da Amazônia, na nossa casa. Onde enfrentamos diariamente ameaças que colocam em risco nossa sobrevivência: violações de direitos, invasões, desmatamento, secas severas e cheias fora de época. Esses impactos são o resultado de séculos de exploração das nossas terras e afetam diretamente nossos povos, nossas vidas e nossos territórios.
Como imaginar uma COP do clima acontecendo aqui, na nossa casa, sem a nossa participação efetiva? Nossa presença não é apenas um pedido, é uma necessidade. Não há justiça climática sem justiça para os Povos Indígenas. Ter uma copresidência indígena na COP30 seria o reconhecimento da importância dos nossos saberes e do nosso papel como líderes nessa luta. Isso permitiria colocar as prioridades indígenas no centro das decisões, incluindo o reconhecimento dos direitos territoriais e o acesso direto aos financiamentos.
A copresidência indígena garantiria decisões inclusivas, para que possamos proteger nossos povos de políticas que priorizam o lucro ao invés da vida. Além disso, promoveria colaborações mais justas e equilibradas entre governos, sociedade civil e Povos Indígenas.
Estamos em campanha com o lema: “A RESPOSTA SOMOS NÓS”. Porque somos. Apesar das ameaças e incertezas, sabemos o valor da vida, das florestas, dos rios e das culturas que sustentam a nossa existência. E queremos ensinar ao mundo que o que defendemos não é só nosso, é de todos.
IHU – Você disse que a COP29 foi a “COP do retrocesso”. Que retrocessos foram estes e quais as demandas das comunidades indígenas que estão sendo negligenciadas nestas conferências internacionais?
Josimara Baré – Um retrocesso simplesmente porque não avançamos. O tempo está passando e já estamos mais que atrasados. Os “acordos” continuam sendo apenas promessas, enquanto os desastres e os impactos das mudanças climáticas seguem se intensificando e afetando cada vez mais vidas.
O financiamento climático permaneceu inacessível e insuficiente para nós, a discussão da possibilidade de financiamento direto a povos indígenas ainda está a passos lentos. Nossas experiências continuam sendo ignoradas e nossas organizações ainda não são reconhecidas por fazer mudanças positivas significativas. Participar dos eventos na “zona verde” ou discursar nos painéis da “zona azul” sobre nossas demandas se torna frustrante quando, na prática, as decisões priorizam os interesses das grandes empresas e de alguns governos, em detrimento das demandas por justiça climática e direitos humanos.
Nossa presença na COP29 poderia ter sido mais ampla, mas a delegação de indígenas do Brasil enfrentou lacunas, possivelmente por motivos políticos e de segurança. Além disso, Baku é um local muito distante e com um cenário hostil, o que dificultou ainda mais nossa participação. Em contraste, houve uma forte presença de empresas e representantes do agronegócio na delegação brasileira. Isso reforça um desequilíbrio preocupante, tornando ainda mais intimidador sermos minoria em um espaço tão estratégico.
Por fim, não houve acordo aceitável sobre uma nova meta de financiamento climático, com decisões pouco claras e cheias de impasses até o último dia, mostrando o quanto ainda precisamos lutar.
IHU – Quais estão sendo os impactos das COPs e demais conferências mundiais na luta contra as mudanças climáticas, para a preservação da natureza e na defesa dos direitos dos indígenas? As metas e os planos estabelecidos estão surtindo efeito?
Josimara Baré – As conferências como a COP têm sido uma oportunidade para que sejamos ouvidos e nossas lutas ganhem mais visibilidade no mundo. Os espaços como a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) têm mostrado que estamos começando a ser incluídos nas discussões globais. Isso é resultado de muita persistência e luta do movimento e das nossas lideranças.
Apesar disso, ainda temos muito caminho a percorrer, pois muitas promessas feitas nessas conferências ainda não chegam até nós de forma concreta. Para nós, essas metas só terão efeito se respeitarem nossos direitos e reconhecerem nosso papel como protetores da terra. Mas o que vemos é uma distância enorme entre as promessas feitas e as ações que realmente chegam até nossas comunidades.
IHU – O que é e qual a importância do programa “Kuntari Katu”?
Josimara Baré – Participo do Programa Kuntari Katu, que é uma iniciativa criada pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em parceria com o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Foi lançado em agosto de 2024, e o programa busca preparar 30 lideranças indígenas para atuar em espaços globais com os temas de meio ambiente, clima, e direitos humanos. É uma oportunidade importante para fortalecer a representatividade indígena em espaços internacionais, como as COPs, e contribuir para soluções mais inclusivas e justas. A formação inclui seminários, mentorias e aulas de inglês em 2025.
Embora o programa seja uma iniciativa estratégica e importante, acredito que ele pode ter um impacto ainda mais positivo se garantir que nossas ideias sejam efetivamente consideradas e que haja um fortalecimento da articulação direta com nossas comunidades. É fundamental lembrar que essa iniciativa não é um presente, mas sim uma conquista resultante de anos de luta das nossas lideranças, que sempre batalharam para assegurar nossos direitos.
O segundo módulo do programa acontecerá entre os dias 11 a 15 de dezembro de 2024, em Manaus. Infelizmente, não poderei participar desta etapa devido a compromissos importantes no território, mas desejo muito sucesso aos colegas que estarão presentes. Tenho certeza de que será uma experiência enriquecedora e espero reencontrá-los em breve para continuar trocando vivências e aprendizados.
IHU – Você poderia explicar o porquê dos povos indígenas serem considerados os “guardiões da natureza”?
Josimara Baré – Eu gostaria de poder levar cada leitor desta entrevista para dentro de nossos territórios, para mostrar o que significa, na prática, sermos chamados de “guardiões da natureza”. Mostrar como vivemos, os saberes que nos guiam, e a profunda conexão que temos com tudo ao nosso redor. Cada animal caçado, cada árvore derrubada, é fruto de uma necessidade e feito com respeito. Nossa medicina tradicional, por exemplo, é um reflexo do poder e da sabedoria que a natureza nos oferece.
Nós não apenas vivemos na floresta; somos parte dela. Respeitamos a natureza porque ela nos sustenta, porque ela é nossa casa. Mas como explicar isso para quem cresceu na “selva de pedra”, onde a natureza é vista apenas como recurso a ser explorado? Como traduzir sensações e experiências que nunca viveram, como o cheiro da terra molhada, o som dos rios ou o vento soprando entre as árvores?
A realidade que vivemos não é um paraíso apenas para filmes, como muitos imaginam. É uma relação de equilíbrio! Nós temos nossa medicina, nossa tecnologia, nossas florestas, rios, animais, flores e alimentos. De que mais precisamos? E o que mais dói é ver como o capitalismo não respeita a vida. Somos guardiões porque cuidamos da natureza para viver!
IHU – Deseja acrescentar algo?
Josimara Baré – Eu gostaria de poder expressar um pouco da sensação de estar em espaços como as COPs, sendo uma mulher indígena vinda de uma comunidade muito distante, falando um pouco da minha língua materna e o português, a língua dos nossos colonizadores. Nos espaços, precisei me “virar” para compreender esses debates complexos e formais, que em sua grande maioria eram em inglês. Além das dificuldades com a língua, percebo os olhares curiosos das pessoas, como se dissessem: “Olha que bonito, uma indígena”, como se fôssemos atrações ou estivéssemos desempenhando um papel.
A adaptação nesses espaços é extremamente desafiadora. As cidades que sediam esses eventos, como Dubai e Baku nas últimas COPs, são realidades completamente opostas à nossa. Saí dessas conferências muito reflexiva e com muita saudade de casa. Lá, não consigo sentir vida: não há florestas, não há animais, apenas concreto e ouro. Em Baku, pude visitar uma região periférica da cidade e vi a exploração de petróleo a céu aberto. Isso me fez pensar: é isso que queremos para o futuro? Cidades cinzas, cheias de riquezas materiais, mas sem vida? Esse não é o futuro que imagino.
Durante esses eventos, muitas vezes me sinto pequena, como se estivesse com as mãos amarradas e a voz engasgada. Queremos falar, queremos agir, mas precisamos seguir regras, respeitar condutas e nos conter para garantir que sejamos convidados novamente. Esses espaços precisam ser mais inclusivos, mais acolhedores, para que possamos participar plenamente e trazer nossas contribuições sem tantas barreiras.
Sei que essa mudança é um processo longo, mas espero que um dia os povos indígenas possam se sentir verdadeiramente parte dessas discussões, não como convidados, mas como protagonistas. Esse é o futuro pelo qual lutamos.