Antropólogo alerta para o aumento da seca nas terras indígenas e no sub-bosque da Amazônia
Os efeitos das queimadas e dos incêndios criminosos na Amazônia foram devastadores. O fogo consumindo milhões de hectares e fazendo arder a terra, os milhares de focos de calor, a biodiversidade se esvaindo no ar e a sensação de perda de uma parte vital do que torna capaz a experiência de viver no planeta Terra. Esta devastação segue trazendo consequências: a nota técnica realizada pelo Instituto Socioambiental (ISA) denominada “Queimadas em Terras Indígenas” adverte para a destruição da “floresta do futuro” e a seca enfrentada nas terras indígenas.
Em entrevista por WhatsApp concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o antropólogo e um dos autores da nota técnica, Tiago Moreira, apresenta as condições perfeitas para a intensidade dos incêndios em 2024. Segundo ele, “a sequência de anos com grandes secas e também o aumento da temperatura. As temperaturas estão mais altas, o clima está mais seco e tem condições favoráveis para incêndios florestais descontrolados, muito relacionados com frentes de pressões”.
A nota observa um fenômeno novo: o fogo chegando ao “sub-bosque”, parte mais baixa da floresta. O sub-bosque é, em tese, uma região mais úmida, mas, de acordo com Tiago, com a alteração no regime de chuvas na região amazônica e o desmatamento em torno das terras indígenas, as áreas estão mais secas e suscetíveis a incêndios. “Uma vez queimado o sub-bosque, essa área de floresta se torna mais suscetível a novas queimadas, levando à degradação florestal”, pontua.
A BR-319 e sua pavimentação – desejo do governo Lula apesar dos alertas de entidades e especialistas – devem aumentar as incidências de fogo nos entornos da estrada. “O que o relatório tenta chamar a atenção é para o fato de que se essa rodovia for asfaltada, vai acontecer lá o que está acontecendo hoje na BR-163: um rastro de destruição”, diz.
Tiago Moreira é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (2002), mestre (2005) em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina e está fazendo doutorado na mesma instituição, onde realiza pesquisa com os índios Munduruku do Alto Tapajós. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Política e Etnologia Indígena, atuando principalmente nos seguintes temas: etnologia indígena, movimentos sociais e doença, comunidades negras, antropologia política.
Tiago Moreira | Foto: Jeiza Russo
Eis a entrevista.
IHU – Segundo relatório do Instituto Socioambiental (ISA), os incêndios consumiram áreas florestais em terras indígenas que não costumavam ser atingidas pelo fogo, como o sub-bosque. O que caracteriza essa área e por quais razões foi atingida?
Tiago Moreira – Uma das coisas que o relatório tenta mostrar é que temos uma continuidade de incêndios criminosos na Amazônia e, por isso, há a ideia de que o Dia do Fogo não terminou. Esses momentos de grandes queimadas vêm se repetindo desde muito tempo. Em 2019, uma ação coordenada resultou no chamado Dia do Fogo, onde a fumaça dessas queimadas afetou boa parte do país, mas o que mostramos aqui é que, nos anos subsequentes, as queimadas foram mais intensas, mas talvez por uma falta de ventos favoráveis, esse alerta não chegou às outras regiões do Brasil.
IHU – Por que as queimadas na Amazônia saíram do controle este ano? Quais fatores contribuíram para a intensificação dos incêndios?
Tiago Moreira – O que acontece em 2024 é quase uma onda perfeita. Há uma combinação de uma série de fatores que resultaram numa expansão ou resultaram nos descontroles gigantescos desse fogo. Entre eles, a sequência de anos com grandes secas e também o aumento da temperatura. As temperaturas estão mais altas, o clima está mais seco e tem condições favoráveis para incêndios florestais descontrolados, muito relacionados com frentes de pressões. É por isso que o entorno das rodovias é o lugar onde mais queima, porque serve como vetores. A pressão serve como vetor do fogo que vai queimar essa área que geralmente é são mais secas porque já perderam sua floresta e, por consequência, vão atingir as terras indígenas que estão mais próximas do entorno dessas rodovias.
IHU – Quais as consequências da perda dessas áreas para a floresta e para o país como um todo? Como a queima dessas áreas interfere na modificação do clima no Brasil e quais os prognósticos climáticos para os meses do verão, por exemplo, em decorrência dos incêndios?
Tiago Moreira – Aqui entra um diagnóstico importante que o relatório traz do tipo de fogo que vem acontecendo nos diferentes lugares. Sabemos que o fogo fora das terras indígenas, fora das áreas protegidas, tem mantido sua característica de estar associado ao desmatamento e ao processo de renovação das pastagens. O fogo é uma ferramenta barata através da qual os proprietários rurais e grupos pecuaristas renovam as pastagens na região amazônica.
Por outro lado, dentro das terras indígenas, nós vemos o crescimento de um fenômeno relativamente novo, que é o fogo atingindo a floresta na região chamada de sub-bosque, que nada mais é do que a parte mais baixa da floresta. Essa é parte onde estão as chamadas florestas do futuro porque é onde estão as nuvens, onde a floresta está germinando e onde tem estão as plantas menores. A parte mais baixa da floresta queima e traz consequências futuras para a parte mais alta porque, muitas vezes, leva à degradação dessa floresta que queimou e gera uma perda florestal. Já aconteceram casos de queimar o sub-bosque e logo depois haver uma degradação dessa floresta e ela morrer por conta das queimadas. Uma vez queimado o sub-bosque, essa área de floresta se torna mais suscetível a novas queimadas, levando à degradação florestal.
Por que essas áreas de sub-bosque que, em tese, são áreas úmidas tem queimado? É porque elas têm ficado cada vez mais secas. Um dos fatores que têm influenciado isso é o regime de chuvas. O regime de chuvas na região amazônica tem se alterado consideravelmente com chuvas acontecendo mais tarde e terminando mais cedo. O desmatamento em torno das terras indígenas também contribui para este cenário. Essa perda florestal gera uma alteração do regime de chuvas e isso leva a mais secas, o que ocasiona uma suscetibilidade de incêndios florestais descontrolados.
IHU – Como ocorre o manejo do fogo nas terras indígenas?
Tiago Moreira – O manejo do fogo é uma prática muito importante. Já há conhecimento científico sobre a paisagem das florestas tropicais e do papel que o manejo do fogo teve na formação da floresta como a conhecemos hoje. Isto é, na distribuição das espécies, na distribuição da própria área florestal a partir deste manejo. Ele ajuda a formar ou adensar áreas de floresta em lugares que tinham como característica mais marcante a paisagem de savana, de cerrado e na fertilização do solo para sustentar um tipo de floresta mais densa. Existem trabalhos bastante significativos a respeito disso e, no contexto atual, o manejo tradicional do fogo tem o papel de reduzir queimadas descontroladas porque esse manejo procura diminuir a quantidade de material combustível que possa, eventualmente, ser queimado em um incêndio descontrolado. Então quanto mais combustível para queimar, maior e mais intenso vai ser o incêndio.
Se há uma prática de fazer o manejo das queimadas, é possível reduzir a quantidade de material combustível e, com isso, você reduzir o risco de uma queimada descontrolada. Claro, existem desafios também. Entre eles, as frentes de pressão sobre os territórios indígenas: a perda florestal no entorno das terras indígenas, a floresta ficando mais seca nas terras indígenas pelo que acontece no seu entorno, o uso descontrolado de agrotóxicos, a destruição da floresta, a ameaça, por exemplo, de rodovias sendo vetores para a entrada do fogo, cruzando territórios indígenas.
IHU – Segundo o ISA, focos de incêndio concentram-se no entorno das rodovias (BR-163, Cuiabá-Santarém, 319, Porto Velho-Manaus, e 230, Transamazônia). Que correlações estabelece entre os focos de incêndio e as estradas?
Tiago Moreira – A BR-163 e a Cuiabá-Santarém foram os lugares que concentraram o maior número de focos de calor na Amazônia Legal e no Brasil como um todo. Há um asfaltamento recente dessa rodovia e o que acontece quando se constrói uma rodovia? Se não há um plano de sustentabilidade para a rodovia, um plano de desenvolvimento, ela começa a crescer desenfreadamente para as suas laterais. O governo federal constrói uma rodovia e o governo local constrói uma vicinal. Essa vicinal dá origem a outros ramais e gera o famoso “efeito espinha de peixe”. Ou seja, vai crescendo a demanda por abrir novos caminhos e são por esses caminhos que o desmatamento vai acontecer.
A partir disso o fogo vem no rastro porque ele é usado para finalizar o processo de desmatamento e também tem sido usado como prática de renovação dos pastos. Isso vai alterando as chuvas que caíam naquele lugar de floresta, as quais migram para outro lugar. Aquela região de floresta que está no entorno da rodovia vai ficar mais seca e com frentes de fogo avançadas. Esse é o fenômeno que acontece.
Em contraposição, a BR-319 – hoje aberta, que vai ligar Porto Velho a Manaus –, entre as rodovias que estão na Amazônia Legal, foi uma das que menos teve incidência de fogo, muito embora os trechos que estão em funcionamento tiveram uma grande quantidade de incêndios. O que o relatório tenta chamar a atenção é para o fato de que se essa rodovia for asfaltada, vai acontecer lá o que está acontecendo hoje na BR-163: um rastro de destruição. Porque não existe um plano de sustentabilidade e essa rodovia corta uma região bastante sensível da Amazônia Legal. Além da correlação entre focos de incêndio e as estradas, o relatório traz esse alerta importante sobre as consequências de um plano de pavimentação dessa rodovia.
IHU – Mato Grosso e Pará, dois estados vizinhos, lideram os focos de calor, segundo o relatório do ISA, com 22 e 17%, respectivamente. O que esses dados indicam sobre as transformações em curso na Amazônia Legal?
Tiago Moreira – O fato de o Mato Grosso liderar os focos de calor não é acidental. Os estados que lideram o desmatamento são os estados que lideram as queimadas. Nós vimos isso também no ranking dos municípios: as cidades que tiveram o maior número de queimadas no Brasil são municípios que têm desmatamento alto, incluindo Corumbá, onde (fica a maior parte no Pantanal, mas tem um pedaço do Cerrado). Esse foi o município do Pantanal com a maior taxa de desmatamento registrada. Isso alerta sobre a relação íntima entre desmatamento e fogo.