26 Outubro 2024
Borracha, látex, madeira, ouro, soja (aquela que os porcos catalães também comem): a história do pulmão do mundo, a Amazônia, é também uma história de exploração e violência, que para a jornalista brasileira Eliane Brum opera sob a mesma lógica que se exerce contra as mulheres. Por que dizemos que uma floresta é “virgem”?
Brum mora lá há oito anos, tentando se “desbranquear”, convivendo com incêndios, mosquitos e tucanos, incentivando o mundo todo a “amazonizar-se”.
Autora do excepcional ensaio Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia centro do mundo, é a segunda convidada do programa de residências do CCCB [Espanha], que no próximo mês receberá uma grande exposição sobre uma região crucial para o futuro do planeta, que reivindica voz própria no diálogo global.
A entrevista é de Leticia Blanco, publicada por El Periódico, 19-10-2024. A tradução é do Cepat.
Vindo da floresta, o que você achou de Barcelona?
Antes, eu via as grandes cidades como bonitas: Paris, Roma, Nova York... Agora, eu as vejo como um lugar de silenciamento de onde expulsamos os seres vivos não humanos. Restam infiltrados como os ratos, as baratas, as bactérias que nos habitam e um ou outro mosquito, mas não há vida.
No lugar onde eu vivo, acordo todas as manhãs com vozes de macacos, aranhas, papagaios... E isto me faz ver as grandes cidades como lugares cobertos de cimento, como se fosse uma camisa de força, onde de vez em quando você se depara com algum cachorrinho preso em sua coleira. É muito difícil, para mim são lugares de violência.
Em que sentido?
O dinheiro que veio para a Europa, e com o qual ergueram esses edifícios e esses locais que os turistas pagam para ver, vem da natureza e do sangue, de onde eu venho. De toda a América Latina, mas também da Amazônia. Eu tinha vindo para Barcelona como turista e é uma cidade onde me sinto mais ou menos confortável. As superilhas, onde posso caminhar sem ser ameaçada pelos carros, com acesso ao sol e ao céu, tornam o local um pouco mais habitável.
O Brasil é o lugar onde mais ativistas são assassinados a cada ano. Você se sente ameaçada?
Altamira, onde moro há oito anos, é o epicentro da destruição da floresta amazônica e dos incêndios provocados. É a região mais desmatada e a cidade mais violenta do Brasil. No entanto, prefiro falar dos riscos corridos por outros povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros que estão muito mais ameaçados. Eu sou uma mulher branca, sou jornalista e tenho uma certa visibilidade pública.
Como é a vida lá?
Existe uma rotina de violência permanente. A cada pouco, incendeiam escolas, o que é uma técnica muito boa para expulsar os indígenas. Os pistoleiros invadem as casas, atiram e agridem. Vivemos um momento de seca terrível, o que incentiva ainda mais a propagação dos incêndios. Há pouco, o fogo chegou perto da minha casa.
Entre janeiro e setembro, a superfície queimada é equivalente ao Reino Unido, só no Brasil. Quando se queima uma árvore, borboletas, formigas, pássaros e morcegos também são queimados... a maioria com uma dor cruel. Podemos falar, penso eu, de um holocausto.
No livro, você incentiva a “amazonizar-se”. O que é e quem deve assumir tal perspectiva?
O mundo todo deve amazonizar-se! Significa mudar a nossa forma de pensar e a nossa linguagem entendida como estilo de vida. Uma linguagem colonial, que entende a natureza como um corpo do qual podem ser extraídos recursos. E patriarcal: o estupro da floresta amazônica não pode ser entendido sem essa lógica. Sua hegemonia dura cinco séculos, quando os europeus chegaram entendendo que a América Latina era um corpo para ser estuprado.
O colonialismo permanece vigente?
O gado que contribui para o desmatamento da Amazônia continua alimentando a Europa. A nossa soja alimenta os porcos da Catalunha. As árvores cortadas também são transformadas em móveis e objetos de design. O ouro que provoca genocídios é vendido em joalherias e lojas de moda do norte global. Essas empresas carregam as bandeiras norueguesa, francesa, do Reino Unido, dos Estados Unidos e do Canadá.
‘Amazonizar-se’ é também redefinir os conceitos de centro e periferia. O centro do mundo é o lugar onde há natureza, onde há vida, e não onde são tomadas decisões sobre a sua destruição. O centro do mundo é a Amazônia, os oceanos e outros biomas, e não Madri, Londres, Pequim ou Washington.
Você compara o abuso e o estupro de mulheres com o da floresta. Em que momento observou este paralelo?
Indo morar na floresta, ouvindo as mulheres. Antes, eu acreditava que o estupro era uma exceção. Na Amazônia e no Brasil, é muito raro encontrar uma mulher que não tenha sido vítima de estupro ou abuso sexual. E fui entendendo que a lógica da destruição da floresta é a mesma: vê-la como um corpo para extrair mercadorias, assim como se percebe as mulheres como um corpo para ser estuprado, esvaziado e também invadido.
Quando falo sobre este assunto, tem muitos homens que dizem: ah, que exagerada’. E gosto sempre de citar Bolsonaro, que em 2019 disse que a floresta é um corpo virgem que todos desejam. Hoje, são as mulheres indígenas, ribeirinhas e outras que lideram essa luta dupla.
No livro, confessa que às vezes, ao ver um grupo de amigos ‘cool’ tomando algo em um bar, sente vontade de ir até lá e gritar para que acordem.
O negacionismo que me preocupa não é o de Trump ou de Bolsonaro. A maioria da população é negacionista. Hoje, não basta dizer sim, aceitamos o aquecimento global. Isto é óbvio. A questão é que não vivemos de acordo com esta crença. Ao final, o capitalismo, ao nos reduzir a consumidores, também sequestrou o nosso instinto de sobrevivência. Muitas pessoas acreditam que ainda podem viver suas vidas normalmente. As pessoas vêm me ouvir e seguem com a sua vida.
O que você diria para elas?
Por negar a existência da guerra, ela não desaparecerá. E estamos em uma guerra contra a natureza provocada por uma minoria dominante. É uma ideia que gosto de deixar clara, porque leio na imprensa que a catástrofe climática foi provocada pela humanidade e isto eu nego. Não é a humanidade, mas uma minoria de humanos que está nos conselhos de administração das empresas, das elites extrativistas, nos parlamentos e governos que as apoiam.
Certa vez, Zadie Smith explicou que se retirou de uma manifestação pelo clima porque havia o risco de ser presa e a ideia de ter antecedentes criminais e jamais poder voltar a entrar nos Estados Unidos a impactou. O que estamos dispostos a perder? Fala-se em decrescer, mas ninguém quer que os seus filhos vivam com menos.
Identifico-me muito com as novas gerações lideradas por Greta Thunberg. São elas que deverão viver neste mundo mais hostil, à mercê de adultos paralisados, muitas vezes, seus próprios pais e mães. Greta usa essa imagem da casa em chamas. A Amazônia está prestes a chegar a um ponto de não retorno. É possível dizer que o fim do mundo chegará, se para muitos já aconteceu?
O paradoxal é que há pessoas sentadas no único local onde as chamas ainda não chegaram, ainda que sejam vistas. E temos que ir até lá e dizer: levantem-se porque, caso contrário, vão morrer queimados. No entanto, não se levantam.
Você critica Bolsonaro, mas também Lula, a esquerda e os evangélicos. Quais opções defende?
A forma de sair dessa paralisia é a imaginação. O partido de Lula ficou estagnado no século XX. Durante os dois primeiros mandatos, ficou conhecido em todo o mundo por tirar muitas pessoas da pobreza, mas foi a Amazônia e outros biomas que pagaram a fatura da ascensão dessa nova classe média, com o uso de recursos naturais que foram exportados para a China. Existem outros partidos que têm uma visão muito mais moderna, mas, claro, não têm votos.
Por quê?
O mundo está guinando cada vez mais para a direita que defende um passado onde cada um tinha o seu lugar: os homens, as mulheres, os brancos, os negros. Ou seja, um passado que absolutamente não existe. E se existiu de maneira falsa em algum lugar, foi à custa da extinção de outros. Eu entendo que para as pessoas que não conseguem dar um nome ao que estão vivendo, é mais fácil acreditar em uma mentira que reconforta.
O que seria um político honesto? Aquele que te diz a verdade. E a verdade é que as coisas vão piorar, que teremos que perder privilégios, nós que os temos, e que será necessário mudar radicalmente a nossa forma de viver. Mas quem vai votar por algo assim?
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“O centro do mundo é a Amazônia, não Madri, Londres, Pequim ou Washington”. Entrevista com Eliane Brum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU