Em meio à volúpia incontrolável e violenta do capitalismo extrativista, manipulador de uma política pautada pelo ruralismo neofascista, pelo fundamentalismo religioso e pelo armamentismo militaresco, um punhado de mulheres resolveu se colocar ao lado da Mãe Terra e de suas filhas violadas. Muitas delas, senhoras que já poderiam estar aposentadas, denunciam e assumem em seus corpos as contradições de uma sociedade tomada pela ganância desmedida.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Submersa na fumaça das queimadas, a Amazônia vive aquela que pode ser sua pior seca histórica, segundo os especialistas. Peixes morrendo, comunidades indígenas e ribeirinhas isoladas e até – pasmem! – a falta de água potável, na região com os maiores rios do mundo. O cenário é desolador e ainda pode piorar, conforme os preocupantes prognósticos do Serviço Geológico do Brasil. Os efeitos são sentidos em quase todo o país. Apesar da gravidade da situação, neste Dia da Amazônia, é preciso aprofundar o olhar sobre outra situação igualmente arrasadora e que clama pela atenção das autoridades e da sociedade em geral: o tráfico de pessoas!
Desde a chegada dos primeiros colonizadores, a região sempre foi vista sob um duplo viés: uma imensidão verde selvagem e uma fonte inesgotável de riqueza econômica para ser dominada e explorada, até que seus senhores se deem por saciados. Indígenas, madeira, borracha, minério... Tudo se transforma em mercadoria para os ávidos conquistadores. Nunca se importaram – e continuam não se importando – quanta destruição será causada.
Todavia, como já gritava do Sul, em 1756, seu parente Guarani Mbya, Sepé Tiaraju, “alto lá, esta terra tem dono”. Infelizmente, para os homens civilizados há seres humanos subalternizados, comercializáveis e disponíveis para aumentar seus lucros. Junto ao corpo do bioma que sangra tão violentado por toda sorte de cobiça e ambição, também os corpos de seus filhos e filhas humanos estão em extrema vulnerabilidade. Um capitalismo antinatural, como ensina Silvia Federici:
“O capitalismo nasceu ao separar as pessoas da terra, e sua primeira tarefa foi tornar o trabalho independente das estações do ano e prolongar o dia de trabalho além dos limites da nossa resistência. Em geral, enfatizamos o aspecto econômico desse processo, a dependência econômica das relações monetárias que o capitalismo criou e seu papel na formação de um proletariado assalariado. O que nem sempre observamos é o que a nossa separação da terra e da natureza significou para nosso corpo, que foi empobrecido e privado dos poderes que as populações pré-capitalistas lhe atribuíam”.[1]
Com essa fenda entre ser humano e natureza, intensificada na modernidade com o racionalismo científico, os corpos ficaram à deriva, expostos, desprotegidos. E como diz a filósofa, “um dos principais projetos do capitalismo foi a transformação de nosso corpo em máquina de trabalho”. Sem escrúpulo algum, o modelo econômico se apropriou até dos corpos! “Isso significa que a necessidade de maximizar a exploração da força de trabalho viva, também por meio de formas diferenciadas de trabalho e coerção”, conclui Federici, “tem sido o fator que, mais do que qualquer outro, moldou nosso corpo na sociedade capitalista”[2]. Um corpo sacrificável!
A marginalização social, a pobreza e a ausência do Estado fragilizam uma população que já é vítima histórica dos mais variados abusos, tornando-a presa fácil do crime organizado. O Papa Francisco alertou, na Exortação Apostólica Querida Amazônia, sobre a exploração em relação aos povos indígenas, o que pode ser ampliado para outras realidades:
“Isto favoreceu os movimentos migratórios mais recentes dos indígenas para as periferias das cidades. Aqui não encontram uma real libertação dos seus dramas, mas as piores formas de escravidão, sujeição e miséria. Nestas cidades caracterizadas por uma grande desigualdade, onde hoje habita a maior parte da população da Amazônia, crescem também a xenofobia, a exploração sexual e o tráfico de pessoas. Por isso o clamor da Amazônia não brota apenas do coração das florestas, mas também do interior das suas cidades”.[3]
Trata-se de uma realidade invisibilizada e com poucos dados oficiais sobre o tema. Tal apagão de índices confiáveis e detalhados dificulta ainda mais o enfrentamento desse tipo de crime, bem como a formulação de políticas públicas apropriadas. Por se tratar de tramas complexas e que invariavelmente envolvem promessas ilusórias, as pessoas se sentem, além de humilhadas, com medo de denunciar os abusos sofridos e serem revitimizadas ou colocarem em risco suas famílias.
O protocolo adicional da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças foi aprovado pela Assembleia-Geral da ONU em 2000, mas só entrou em vigor no Brasil em 2004. Conhecido como Protocolo de Palermo, caracteriza o tráfico de pessoas nos seus vários tipos, como:
“(...) o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”.[4]
Segundo os estudos existentes, os casos mais frequentes referem-se à modalidade de trabalho escravo e para fins de exploração sexual. Enquanto que as principais vítimas são as mulheres e as crianças. Evidente frisar que existem corpos mais vulneráveis do que outros, “pois as hierarquias raciais, sexuais e geracionais que o capitalismo construiu desde seu início”[5] contam. Vale acrescentar que, entre esses corpos, estão os das pessoas empobrecidas, indígenas, negras e menores de idade. Nesse sentido, recorda Federici:
“As mulheres, no desenvolvimento capitalista, sofreram um duplo processo de mecanização. Além de serem submetidas à disciplina do trabalho, remunerado e não remunerado, em plantações, fábricas e em seus lares, foram expropriadas de seu corpo e transformadas em objetos sexuais e máquinas reprodutoras”.[6]
Pertencentes a uma região em forte disputa político-econômica, os corpos dos amazônidas também estão em perigo. Sua colossal geografia, com fronteiras extensas e pouca fiscalização, intensos processos migratórios e os megalomaníacos projetos de “desenvolvimento” são algumas das razões, que tornam a Amazônia um dos lugares de alto índice de tráfico de pessoas.
Uma das velhas chagas da Amazônia, que teve um crescimento escandaloso nos últimos anos, estimulado pelo governo anterior, é o garimpo ilegal. Não bastasse a contaminação do meio ambiente, a demanda pela prostituição também aumenta vertiginosamente. As meninas dos grotões e das periferias empobrecidas são as primeiras a serem enganadas e cooptadas para a exploração sexual.
A maioria é convencida de que irá trabalhar como cozinheira ou outra função parecida, entretanto, quando chegam nos acampamentos são obrigadas a se prostituir, em condições precárias e desumanas. Como está largamente noticiado, na folha de pagamento dos donos do garimpo – cada vez mais controlados pelas facções criminosas – se encontram inúmeras autoridades públicas, coniventes com as atividades criminosas.
Quase sempre abandonadas pelo Estado, que quando não faz vistas grossas não possui estrutura suficiente – nem há interesse político para que o tenha – para enfrentar essas quadrilhas, os clamores dessas vítimas chegaram até a vida religiosa consagrada. Em funcionamento desde 2007, a Rede um Grito pela Vida, pertencente à Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), foi fundada e é mantida quase na sua totalidade por mulheres. Nos corpos frágeis dessas religiosas, o Deus da Libertação se faz carne, como lembra o teólogo jesuíta Joseph Moingt:
“O que muda o nosso olhar sobre Deus é que ele não se dá a conhecer como aquele que é, um ser que exige nossa adoração, escapando à nossa compreensão, e de quem seria preciso inicialmente provar a existência, mas como aquele que vem, alguém que nos concede menos a graça de vir até nós do que pede o favor de acolhê-lo em nós”.[7]
Esse Deus que Se faz pura vulnerabilidade e vem ao encontro desses corpos desprezados, que não passam de objetos descartáveis para a lógica do tráfico de pessoas e de seus respectivos clientes. Encarnado no testemunho profético de uma rede intercongregacional e interinstitucional, com a presença de leigos, o Corpo de Cristo também ultrajado e crucificado no sofrimento das inocentes, Se faz salvação.
Articulada em 22 estados, por meio de 32 núcleos, possui cerca de 200 integrantes, sendo 173 mulheres e 23 homens. Dentre as suas atividades principais estão o trabalho de conscientização, apostando fortemente na prevenção. A rede promove campanhas com a distribuição de materiais informativos nas escolas, nas comunidades eclesiais e nos locais de grande circulação de pessoas, como rodoviárias, portos e aeroportos.
Além disso, mesmo sendo poucos, seus agentes realizam incidência política e encaminham as denúncias que lhes chegam, acompanhando para que as vítimas sejam amparadas com segurança. Graças ao trabalho corajoso, comprometido e muitas vezes silencioso desses corpos-resistência muitas rotas de tráfico foram identificadas e esquemas de exploração desarticulados. Diferente dos influenciadores digitais católicos que se expõem a todo momento nas redes sociais, as religiosas e as leigas, que mantêm viva a Rede um Grito pela Vida, servem incansavelmente sem estardalhaço.
Sem permitir serem domesticadas e controladas pelos sistemas patriarcais, contornam com insistência, ousadia e firmeza os muros da insensibilidade masculina, tornando-se as defensoras e guardiãs da Vida. Assim já dizia a ativista bell hooks sobre a potência do seu corpo-natureza, selvagem e livre:
“Na vastidão selvagem – o primeiro lugar onde vivi e entendi a minha existência –, eu era a natureza, e ela era eu. (...) Sempre havia para mim um lugar na natureza. (...) Os valores de pertencimento gravados em minha consciência nos primeiros anos de infância, como filha da natureza, entravam em conflito com os valores e as crenças presentes no ambiente doméstico patriarcal”[8].
As crises ecológica e social são faces indissociáveis do mesmo colapso socioambiental, como asseverou o Papa Francisco na encíclica Laudato Si'. Proteger a Casa Comum implica em salvaguardar também os marginalizados do sistema abusivo-excludente. Se a Amazônia não fosse vista como uma oportunidade de alguns para enriquecer, mas sim como um presente para toda a humanidade, seus habitantes não estariam tão em risco.
Mesmo em uma vida religiosa consagrada feminina que diminui e envelhece a cada dia, a vitalidade da inserção em realidades desafiadoras permanece como um farol luminoso, não só para a Igreja, mas para toda a sociedade. Ainda que nem sempre reconhecidas pelas instâncias hierárquicas, a generosidade dessa entrega é rebelde e inspiradoramente contagiante. Para Federici o corpo em movimento é a própria libertação:
“Nossa luta, então, deve começar pela reapropriação de nosso corpo, a revalorização e a redescoberta de sua capacidade de resistência, a expansão e a celebração de seus poderes, individuais e coletivos. A dança é central para essa reapropriação. Em essência, o ato de dançar é uma investigação e uma invenção do que um corpo é capaz de fazer: de suas capacidades, de suas linguagens, de como ele articula os esforços do nosso ser. Cheguei à conclusão de que existe uma filosofia na dança, pois ela imita os processos pelos quais nos relacionamos com o mundo, nos conectamos com outros corpos, transformamos a nós mesmos e o espaço ao nosso redor. Com a dança, aprendemos que a matéria não é estúpida, não é cega, não é mecânica, mas tem seus ritmos, sua linguagem, e é autoativada e auto-organizada”.[9]
Em meio à volúpia incontrolável e violenta do capitalismo extrativista, manipulador de uma política pautada pelo ruralismo neofascista, pelo fundamentalismo religioso e pelo armamentismo militaresco, um punhado de mulheres resolveu se colocar ao lado da Mãe Terra e de suas filhas violadas. Muitas delas, senhoras que já poderiam estar aposentadas, denunciam e assumem em seus corpos as contradições de uma sociedade tomada pela ganância desmedida.
Tecendo redes e relações fraternas muito além da formalidade e da institucionalidade do poder, sua atuação possui um relevante impacto político na transformação social. E, assim, nessa ciranda teimosa e despretensiosa, toda forma de escravização se não se desfaz, pelo menos fica abalada. A energia desprendida no movimento de saída de si é pura liberdade. Se mais mulheres – e seus aliados que acreditam na igualdade – se levantarem pela Amazônia e pelos corpos traficados, as hierarquias da morte ruirão mais dia, menos dia. Que a ciranda e o grito pela Vida, sejam o nosso compromisso pela querida Amazônia!
[1] FEDERICI, Silvia. Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Elefante, 2023, p. 163.
[2] Idem, p. 21.
[3] FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia, nº 10. Disponível aqui.
[4] PROTOCOLO de Palermo, 15 nov. 2000.
[5] FEDERICI, Silvia. Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Elefante, 2023, p. 22.
[6] Idem, p. 27.
[7] MOINGT, Joseph. Deus que vem ao homem: do luto à revelação de Deus. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 12.
[8] HOOKS, Bell. Pertencimento: uma cultura do lugar. São Paulo: Elefante, 2022, p. 267-270.
[9] FEDERICI, Silvia. Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Elefante, 2023, p. 166-167.