17 Mai 2024
Catástrofes como a no Rio Grande do Sul tornam populações humanas mais vulneráveis a crimes, assinala relatório inédito.
A reportagem é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 16-05-2024.
Enquanto fechávamos esta reportagem, enxurradas diluvianas tinham atingido 452 (91%) dos 497 municípios do Rio Grande do Sul e mais de 2,1 milhões de pessoas, ou 18,5% dos gaúchos. A Defesa Civil listava, ainda, quase 149 mortos, 108 desaparecidos e 806 feridos.
Um cenário devastador que engrossa a conta nacional de tragédias. Em 2023, os brasileiros sofreram com 1.161 desastres. Os registros do Governo Federal vêm desde 2011, quando chuvas na serra do Rio de Janeiro deixaram mais de 900 mortos e 35 mil desabrigados ou desalojados.
Além dos baques diretos do aguaceiro que tragou bens, sonhos e vidas no estado sulista, vítimas, servidores e voluntários enfrentam infestações de pulgas, piolhos e ratos, doenças como tétano, leptospirose e pneumonia. Uma conjugação mórbida que arrasa a saúde, o emocional e facilita até o tráfico humano.
“Por exemplo, pessoas e famílias que têm a renda impactada podem ficar sem recursos para se manter no seu território ou migrar e, com isso, se tornar mais suscetíveis a aceitar propostas pouco realistas que escondem situações de aliciamento para o tráfico de pessoas”, explica Débora Castiglione. Ela é coordenadora no Brasil de projetos da Unidade de Mobilidade, Meio Ambiente e Mudança do Clima da Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas (OIM).
Mas há outro lado nesta moeda, quando a exploração de pessoas traficadas amplia os lucros da bandidagem. “[Isso ocorre] quando se identificam vítimas de trabalho análogo ao de escravo ou de exploração sexual em contextos de garimpo, desmatamento e outros crimes ambientais”, agrega Castiglione.
Acordos globais e leis brasileiras definem o tráfico humano como um delito envolvendo recrutar, transportar, receber ou aprisionar adultos, crianças ou idosos fragilizados pela pobreza ou degradação ambiental com ameaças ou força bruta, rapto, fraudes e golpes.
Qualquer pessoa pode ser alvo de tráfico, mas as vítimas de desastres, os povos indígenas e tradicionais ou comunidades que mais dependem de ambientes conservados para viver estão entre as mais vulneráveis, além de mulheres e meninas.
Mesmo trágico e muito complexo, o tráfico humano mantém uma taxa de quase um episódio diário no Brasil, mostram os 336 crimes de 2023 e os 94 já contados este ano. Nordeste e Sudeste concentram as ocorrências. Os números são do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Mas, o país também é fonte de indivíduos arrebanhados para trabalho escravo, remoção de órgãos e abuso sexual em locais como Espanha, Portugal, Itália, Suíça, Suriname e Estados Unidos. Ano passado, consulados brasileiros atenderam mais de duas centenas desses casos. As Nações Unidas estimam em ao menos 2,5 milhões as pessoas traficadas anualmente no mundo.
Conter e jogar luz nessas violações pede medidas como ampliar a informação e os canais de denúncias públicos, dar maior capacidade e aproximar forças dentro e fora do país para enfrentar o tráfico humano e fortalecer a fiscalização e as punições ambientais.
“O intuito é [também] identificar os indícios de tráfico, por exemplo em ações de desintrusão de garimpo, e proporcionar uma melhor assistência a possíveis vítimas”, diz Natália Maciel, coordenadora de projetos da Unidade de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da OIM e uma das autoras da cartilha O Tráfico de Pessoas no Contexto de Degradação Ambiental no Brasil.
O trabalho inédito no país destaca que o delito é muito subnotificado em todo o território nacional e globalmente. Muitas pessoas desconhecem o crime ou não reconhecem que foram vítimas, têm vergonha ou medo de denunciá-lo e sofrer preconceito ou ainda mais violência.
“Nesse sentido, é necessário valorizar e reconhecer os profissionais que atuam na assistência social ou saúde e o papel dos atores da fiscalização ambiental e outros que trabalham com o meio ambiente também como garantidores de direitos humanos”, lembra Maciel.
Quando o assunto são pessoas deslocadas de suas casas ou cidades por desastres tidos como naturais, o Brasil ocupa a sexta posição num ranking global, do ano passado. Estamos atrás da China, Filipinas, Somália, Bangladesh e Mianmar, e logo à frente do Paquistão.
“O Brasil foi responsável por mais de um terço dos deslocamentos por desastres na América do Sul, com 745.000, o número mais alto do país desde que os registros começaram em 2008”, informa a Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas (OIM). Os dados da entidade igualmente mostram que os 47 milhões de deslocados globais pelo clima em 2023 superaram os gerados por guerras, repressão e violência.
O acúmulo crescente de tragédias potencializadas pela negligência histórica de governos – de locais a federais – com a emergência climática amplificará os números desses refugiados e migrantes, comumente empurrados para áreas ambientalmente frágeis pela desigualdade social e falta de políticas públicas preventivas.
O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) monitora 1.133 municípios com elevado risco de enchentes e deslizamentos de terras. Estão distribuídos em todas as regiões. Mais de 8 milhões de brasileiros convivem com tais ameaças nessas localidades.
“É necessário aprender com os casos ocorridos no país e dar suporte antes dos desastres. Sem isso, o cenário fica cada vez mais difícil”, alerta Victor Marchezini, doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Cemaden, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
Para Marchezini, o desafio ainda maior é atuar preventivamente diante de impactos não tão visíveis ou acelerados como as inundações deste maio que assolam o Rio Grande do Sul e outros estados, como o Maranhão, no outro extremo do país. “É preciso visibilizar e agir frente a processos lentos, como a elevação do nível do mar”, destaca.
Um cenário que uma amarração entre proteger ambientes naturais e assegurar direitos das pessoas, diz Débora Castiglione, coordenadora no Brasil de projetos da Unidade de Mobilidade, Meio Ambiente e Mudança do Clima da OIM. “O pleno desfrute de direitos humanos depende de um meio ambiente apropriado. Desde esta perspectiva, podemos também pensar no tráfico de pessoas e nos delitos ambientais como crimes correlatos, que podem ser prevenidos e enfrentados em simultâneo”, afirma.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública ajudou a produzir a cartilha O Tráfico de Pessoas no Contexto de Degradação Ambiental no Brasil, mas não atendeu aos nossos pedidos de entrevista e nem informou sobre medidas que foram ou seriam adotadas para frear o tráfico humano no país.
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Tráfico de pessoas pode crescer junto com degradação ambiental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU