14 Mai 2024
Eventos climáticos extremos serão mais frequentes – e o Brasil precisa estar preparado, sem limitar-se ao socorro e à reconstrução. É preciso implantar um robusto programa de prevenção de desastres. O primeiro passo: reverter as “amarras fiscalistas” do Estado.
O Comentário é de Antonio Jose Alves Junior e Claudia Henschel de Lima, em artigo publicado por Outras Palavras, 13-05-2024.
Antonio Jose Alves Junior é professor titular do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ.
Claudia Henschel de Lima é professora associada do Departamento de Psicologia da UFF/Volta Redonda.
…E, um por um, largou os foliões nos salões cobertos de sangue, cada um morrendo na postura desesperadora de sua queda. E a vida do relógio de ébano terminou com a do último dos foliões. E as chamas dos tripés expiraram. E a Escuridão, a Decadência e a Morte Vermelha tinham alcançado o domínio ilimitado sobre tudo.” (Edgar Allan Poe, A Máscara da Morte Rubra)
A maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul é uma emergência humanitária do porte da covid-19. Guerras, conflitos sociais, golpes de estado, doenças infectocontagiosas, desastres climáticos/naturais, compõem o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define como sendo o quadro das emergências humanitárias. As emergências humanitárias desestruturam as relações sociais e a rotina de vida da população, descortinam o limite de nossa capacidade de sobrevivência, e colocam para cada um de nós uma condição muito difícil: estar em desamparo; estar em desalento. Ou seja, uma emergência humanitária atinge direta e indiretamente à todos nós.
Essa catástrofe ainda não exibiu todos os seus impactos. Mais de 86% do Rio Grande do Sul foi afetado, com 435 municípios destruídos e 1.9 milhão de pessoas atingidas. Doenças, infestação de insetos, saques, roubos, destruição material de lares e da infraestrutura urbana; falta de medicamentos, combustíveis, roupa, comida e água; aulas suspensas, escolas destruídas, precarização do atendimento de saúde e diversos negócios desfeitos. A situação é tão grave e devastadora como uma guerra; tão letal como uma pandemia.
Ela inunda o noticiário diário e as redes sociais; inunda nossas vidas, nos afoga nas águas mais austeras das tomadas de decisão no campo da economia política. Com o passar dos dias, a letalidade da catástrofe tende a se aprofundar no solo social, se nada for feito.
Depois da reunião de 5 de maio entre o governador do RS, Eduardo Leite, vários prefeitos de municípios, o ministro Fachin, o deputado Arthur Lira, o senador Rodrigo Pacheco e o presidente Lula, a República concordou que se deve gastar o que for necessário, e no menor tempo possível, para salvar vidas e reconstruir o estado e seus municípios. Avaliamos que houve uma mobilização, por parte do governo federal, para reduzir os danos já produzidos por essa emergência humanitária.
Na segunda-feira, dia 6 de maio, o encaminhamento da solução passou pela edição do Decreto Legislativo que reconheceu o estado de calamidade pública no RS. Foi aprovado no mesmo dia pela Câmara dos Deputados e publicado em 7 de maio em edição extra do DOU. Segundo avaliação do MPO, esse é o primeiro passo para medidas provisórias de crédito extra, para concessão de benefícios tributários, e de crédito para o setor produtivo, e para a renegociação de dívidas. E garante, ainda, que essas medidas estarão excluídas das metas fiscais e dos limites de gastos do Regime Fiscal Sustentável. Isso quer dizer que, no novo arcabouço fiscal, os créditos extraordinários não respeitam o limite de gastos. Por essa cláusula, o aumento dos gastos não comprimiria as demais despesas.
É crucial deixar evidente que os créditos extraordinários, nessas condições, não têm impacto no resultado primário. Se assim não for, a abertura de créditos extraordinários aumentaria as despesas, competindo com os demais gastos orçamentários, o que exigiria uma compensação, seja pelo lado do corte de outras despesas, seja pelo aumento de impostos.
A sombra do desalento não deixa de avançar com o aprofundamento da catástrofe. Em 10 de maio, volta a chover muito em vários municípios do RS com a expectativa terrível de extensão dos impactos por, pelo menos mais 10 dias. E isso, em uma conjuntura que já passou por muita devastação. A catástrofe se espalhará para rubricas diversas em função do aumento necessário dos gastos para salvar o RS. E não seria admissível conceber que isso venha a ser compensado com um pêndulo de argumentos diversionista que oscila entre tributação e cortes nos gastos para equilíbrio fiscal. Mas, mesmo assim, o pêndulo mostra toda a sua força. Analisemos esse movimento que naturaliza o equilíbrio fiscal.
Haverá quem defenda que o reequilíbrio deva encontrar seu caminho no aumento dos impostos. De fato, os ricos, já beneficiados por diversos mecanismos de isenções e subsídios, precisam pagar mais impostos no Brasil. Então, essa crise poderia ser uma boa oportunidade, ao avesso da fórmula de Milton Friedman, para atacar a estrutura regressiva de nosso sistema tributário.
Emergem, contudo, duas questões essenciais que precisam ser enfrentadas. A primeira é de ordem política: alguém dúvida que qualquer menção à cobrança de mais impostos para os ricos exigiria uma força política mais expressiva? Qualquer proposta que pareça razoável para cobrir as grandes despesas esperadas será apedrejada, recebendo críticas poderosas. Ela contabilizará muitos votos contrários, sendo fragorosamente derrotada. Vale a pena fazer essa cruzada diante da crise humanitária? Felizmente, esse assunto é secundário. A pergunta que importa é se é mesmo necessário aumentar a carga tributária e assegurar o equilíbrio fiscal como condição para cuidar da catástrofe.
Indagações semelhantes se insurgem na análise do movimento pendular na direção do corte de gastos para garantir o equilíbrio fiscal. Sem maiores delongas, diga-se logo, trata-se apenas de uma bobagem econômica e de um comportamento pervertido diante das condições de crise humanitária. O corte de gastos gerais para aumentar os gastos com o RS redistribui o sacrifício do drama humanitário de forma difusa. Apenas prejudicará os demais serviços públicos, demais investimentos públicos e/ou os beneficiários de transferências, fazendo recair as consequências sobre quem mais depende deles, a saber, os mais pobres. Seria muito bizarro, e politicamente complicado, empurrar nos corações dos mais pobres o custo econômico de uma crise ambiental e humanitária que não produziram. Claro que essa consideração não faz desaparecer a bizarrice e a complicação política envolvendo perdas para pobres. Mas sempre aparecerá um jornalista em algum jornal da noite, fazendo cara feia, perguntando se o socorro e a reconstrução ao RS será a porta aberta da gastança!
Um mesmo princípio fundamenta ambos os argumentos do pêndulo: a necessidade do equilíbrio fiscal mesmo em situação de catástrofe, mesmo em conjuntura de emergência humanitária. E, nesse ponto, é urgente que retornemos a pergunta: é mesmo necessário que seja assim? Isto é ser fiscalmente responsável? Não há alternativas?
O desalento impede que se enxergue com clareza o diversionismo que é o debate fiscal em relação ao cerne do problema da salvação, reconstrução e prevenção. A questão não é de contas públicas, mas sobre a capacidade do sistema produtivo responder aos desafios materiais que se impõem. Ter isso em mente muda a natureza das questões.
A menos que se prove que, no curtíssimo prazo, o país não poderá produzir, contar com seus estoques ou importar comida, remédios, combustíveis, materiais de reparo diversos para salvar quem precisa, não haverá razão para reduzir a demanda geral. Não há então, por que cobrar impostos ou cortar gastos. Mesmo diante de um horizonte temporal mais amplo, o da reconstrução e prevenção, a menos que não haja ociosidade na produção de tijolos, madeira, vidro, cimento, aço e demais insumos, bastará fazer a encomenda desses materiais.
Aliás, deve-se observar que a arte é mobilizar o sistema produtivo, normalmente muito sensível a aumentos de demanda. E não só os materiais necessários podem ser ofertados a partir da ociosidade produtiva existente, como a demanda por eles poderá, se devidamente planejada, estimular a produção futura. E, considerando que eventos extremos deverão continuar, o país deveria imediatamente estimar um horizonte de longo prazo de demanda de recursos para a reconstrução e prevenção de acidentes naturais, extrapolando a ambição da reconstrução das estruturas do RS.
Também não falta mão de obra para os trabalhos necessários para a salvação nem a recuperação. Haverá muita demanda de trabalho sofisticado, por certo, como o de médicos e engenheiros, e não há sinais de que estejam em falta, mas será necessário muito mais trabalho braçal. Limpeza, desassoreamento de rios e lagoas, desobstrução de canais de esgoto, proteção de encostas e recomposição de matas ciliares e obras de construção diversas, indo da manutenção e reforço de estruturas à criação de novas infraestruturas. O desafio da sociedade brasileira é mobilizar insumos e mão de obra não utilizados, e não privilegiar timidamente a realocação de insumos e mão de obra em uso. A menos que alguém conclua, como já faz o mercado financeiro, que estamos em pleno emprego.
A regra, então, deve ser a seguinte: a menos que haja gargalos físicos que dificultem a mobilização de recursos, deve-se agir rapidamente para ampliar a produção do que é necessário na construção e reunir toda a mão de obra disponível. E se houver gargalos, atacá-los imediatamente. Planejamento com foco na salvação e reconstrução ajudará, na verdade, a resolver um outro problema humanitário que é o inevitável desemprego que emergirá no RS causado por restrições temporária de oferta. Iniciar um programa robusto de salvação e reconstrução já ajuda a acelerar as condições para a desobstrução das forças produtivas. É uma certeza que as finanças serão recuperadas sem mortes e com rapidez, conforme a renda crescer.
A experiência catastrófica do RS, nos coloca diante dos impactos letais da austeridade. Pensemos no drama causado pela austeridade almofadinha do governador Eduardo Leite. Na medida em que mais informações vão emergindo, já se compreende que Porto Alegre tem um sistema de proteção contra enchentes do Guaíba que deveria funcionar muito bem. Seu mal funcionamento deve recair sobre os anos e anos de gestão orçamentária mais austera, que aumentaram o tamanho da catástrofe. Os anos e anos de gestão orçamentária mais austera, sem manutenção, modernização e ampliação do sistema de diques e comportas cobram agora o seu preço no acúmulo de mortos e doentes, de perda de produto e de empresas. Restaria, ainda, a pergunta fria: qual será o valor presente dos fluxos de caixa de recursos economizados em comparação com os gastos extraordinários para fazer o RS voltar à normalidade? Esse seria um caso mais adequado para se fazer uma auditoria da dívida pública. Esse é o curioso caso em que o corte de gastos causa dívida.
O ministro Paulo Pimenta argumenta muito bem: não se está lidando com um caso normal e medidas a altura devem ser tomadas. Ele já percebeu que as vozes preocupadas com o resultado primário já se alevantam, tentando se colocar acima de quaisquer preocupações. Acontece que tem gente morrendo e os problemas da enchente sequer começaram. Quando as águas caírem, o acúmulo de desgraças superará em muito as cenas terríveis que inundam o noticiário diário e as redes sociais.
O ministro está politica e economicamente certo em sua posição. Não se pode imaginar que as rotinas existentes acima de todos e o respeito ao novo arcabouço acima de tudo, sejam adequadas para resolver o desafio da salvação e da reconstrução. Certamente, a prioridade para o equilíbrio fiscal é obscena.
Contudo, sua análise ainda está incompleta ou é parcial. E aqui, colocamos o problema sobre a liberação de recursos somente após uma catástrofe irromper, desapossar e matar pessoas: por que recursos não poderiam ser liberados antes de uma emergência humanitária desse porte, por meio de uma política de prevenção a catástrofes? O que aconteceu com o país, que passou por uma pandemia, e parece não ter entendido que emergências humanitárias serão uma ameaça cada vez mais frequente em nosso mundo?
Essa catástrofe, do ponto de vista de um país como o Brasil, não será algo extraordinário. Ao menos não é o que o dia a dia vem demonstrando. Infelizmente, a normalidade é a enchente, a seca, o aumento dos níveis dos mares, o aumento da temperatura, em cidades mal preparadas por anos e anos de baixos investimentos e de serviços públicos insuficientes.
O princípio de austeridade provoca uma terrível repetição com resultados cada vez mais exaustivos para o governo e a população. De fato, conviveremos, se nada for feito, com os seguintes fatos estilizados: haverá um evento extremo mensal, as infraestruturas depreciadas e não adequadamente dimensionadas serão vencidas, morrerá um monte de gente, muita coisa será destruída, operações de socorro mais ou menos improvisadas terão início, rituais de velório dominarão o país e especialistas do mercado financeiro lembrarão da importância das contas públicas diante das necessidades orçamentárias extraordinárias e não-dimensionadas.
Para escapar do princípio da austeridade e de seu ciclo de repetição mortífera, é preciso reorientar a lógica das medidas econômicas. Elas devem estar realmente a altura dos desafios de longo prazo com os quais a sociedade brasileira deverá conviver e substituir o ambiente de emergência permanente.
A agressividade dos eventos extremos coloca diversas cidades e o meio rural em situação de muito maior risco do que os modelos existentes podem calcular. Todo o país, e não só o RS, vive uma emergência climática com catástrofes em potencial. Os especialistas, certamente, devem estar com suas antenas ligadas para a região serrana do Rio de Janeiro. Há um atraso enorme nas obras de macrodrenagem que tem que se resolver o mais breve possível no menor tempo. Ou alguém duvida que o que se viu em Petrópolis não se repetirá no fim deste ano? Seria possível aos mesmos especialistas listarem um número de áreas de risco que mereceriam maiores, muito maiores investimentos em prevenção de acidentes, como é o caso do fatal encontro entre as águas do Paraíba do Sul com as toneladas de escória da CSN, em Volta Redonda. O abastecimento da água da cidade do Rio de Janeiro está em xeque. Para continuar no Rio, diante dos fatos recentes, caberia perguntar se as usinas nucleares de Angra dos Reis estão protegidas de uma subida de nível das águas do mar.
A capacidade de adaptação por meio de ações para aumentar a resiliência é o desafio da hora, sem falar nas ações para promover uma economia mais sustentável. Se trata de vidas, da proteção da saúde e da saúde mental das populações, da preservação da economia e, por que não, também das contas públicas.
Vamos privilegiar, nesse ponto, as contas públicas. Mal as vítimas foram contabilizadas e já há preocupações com a meta de superávit e com variações marginais na curva de juros da dívida. Convivendo com a emergência humanitária, está em formulação, nos ministérios da Fazenda e Planejamento, a proposta de desvinculação das aposentadorias ao salário mínimo e dos gastos de saúde e educação em relação às receitas tributárias. Esse tipo de prática faz lembrar o conceito recém-criado de bolsonarismo moderado, que incorpora a dimensão do terrorismo fiscal sem o uso de palavrões. Isso não quer dizer, contudo, que não se deva ter cuidado com o desperdício nas contas públicas. Ao contrário, ele deve ser tratado numa acepção mais elevada.
Diante dos desafios colocados pela repetição de eventos extremos, a solução do problema fiscal não é limitar o socorro e a reconstrução. Limitar o socorro quando é necessário, é aceitar a morte e a destruição, especialmente para os mais vulneráveis. Nesses casos, é preciso ampliar os gastos e sempre será. Mas, então, não seria o caso de antecipar gastos para evitar outros no futuro? Se é verdade, e quem hoje pode negar, que eventos extremos continuarão a ocorrer, matando muita gente e destruindo a economia, por que viver de emergência em emergência? Pense, quando menos, no que isso provoca de estresse sobre as contas públicas. Não seria melhor antecipar os desastres com o melhor conhecimento disponível e criar condições para evitá-lo, mitigar as consequências e desenvolver sistemas de socorro mais adequados?
Será inevitável escalar os investimentos em prevenção de desastres, tais como os de macrodrenagem, de relocalização da produção e das moradias, do fortalecimento de pontes e estradas já existentes como, ainda, valorizar infraestruturas redundantes para diminuir a exposição aos riscos, sem descuidar de esquemas de salvação bem ensaiados caso algumas das novas estruturas falharem. A palavra “escalar” é para lembrar de que serão necessários aumentos relevantes e rápidos nesses investimentos. Não adianta ficar procurando uma solução de mercado, como a privatização da gestão de diques e comportas. É preciso investir no limite do que a economia brasileira pode dar, e não no limite fictício dado pelas contas públicas. É preciso montar um grande PAC de investimentos em reforço e modernização da infraestrutura de proteção das cidades e das demais regiões onde haja gente vivendo e atividade econômica.
O único sentido ético e político razoável na economia do país, é ultrapassar o princípio de austeridade e a pseudo responsabilidade fiscal, por ele, defendida. Esse princípio não combate a catástrofe; ele é a própria catástrofe que como uma sombra recai, ilimitadamente, sobre tudo, e produz despossessão e morte. E nem o governo do presidente Lula será poupado de se alinhar à catástrofe e à morte se mantiver o arcabouço fiscal. Só o aumento do gasto público em estruturas que tornem o país mais resiliente aos eventos extremos, mobilizando os recursos materiais, preservará vidas, além das próprias contas públicas. Fora disso, é ceder ainda mais para austeridade, que já nos mergulhou na fome, na insegurança, no desalento, na morte e no fascismo.
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Como evitar tragédias como a do RS? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU