“Sem uma reconstituição dos pactos pela redemocratização é muito provável que surjam movimentos muito piores e mais letais que o bolsonarismo”, afirma o doutor em História Social
A repetição das palavras fascista, nazista, terrorista e genocida “em todas as esquinas (…) não nos auxilia no amadurecimento da discussão sobre as questões gravíssimas que circundam o bolsonarismo”, adverte Daniel Afonso da Silva, na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Ao examinar o bolsonarismo como “algo em construção, maturação e ebulição” no país desde 2004, o historiador propõe uma distinção entre o bolsonarismo e a extrema-direita. Enquanto o primeiro é “produto dos traumas legados pela nossa redemocratização”, a segunda “supõe muitas coisas”, “tem muitos tipos e para vários gostos” e “historicamente e por definição é uma corrente de pensamento político que participa do cotidiano político europeu desde a Revolução Francesa porque, desde a Revolução Francesa, franceses e europeus reagem hostilmente à brutalidade das rupturas do processo revolucionário”.
Entre esses dois fenômenos, Silva enfatiza a existência de uma “razão bolsonarista” que se manifesta não somente no país, mas no mundo todo, como uma espécie de marca deste século porque “é produto das angústias e dos desafios amplificados no século XXI”, uma consequência das desigualdades econômica, cultural, social e intelectual que, no mundo inteiro, “é brutal”. A razão bolsonarista no contexto nacional, esclarece, “é uma clara reação brasileira ao conjunto desse mal-estar societário mundial”.
Daniel Afonso da Silva (Foto: Arquivo pessoal)
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP e pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris. Leciona na Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. É autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (Paraná: Brazil Publishing, 2019).
IHU – Em artigo recente, o senhor disse que a razão bolsonarista “não é precisamente uma ‘extrema-direita’. Trata-se de algo muito mais sutil e mais radical”. Pode explicar em que consiste a “razão bolsonarista”? O que a caracteriza e a diferencia da extrema-direita?
Daniel Afonso da Silva – Indo à sua pergunta, ela demanda uma reação – não necessariamente uma resposta – em camadas. Vou me deter em três camadas. Uma primeira de natureza conceitual. Outra ancorada em história. E uma última mais conjuntural.
O choque das tormentas do domingo, 8 de janeiro, me levou a uma reação, de início, fortemente emocional. Um misto de perplexidade e espanto. Embora demasiado anunciada e programada uma manifestação intensa contrária ao presidente Lula da Silva, jamais se imaginaria que ela fosse desembocar numa profanação daquela magnitude horrenda. Eu acompanhava o noticiário daquele domingo em multiplataformas e notava que os comentaristas também seguiam perplexos e espantados. Viam, como nós todos, um espetáculo televisionado indigno e horroroso.
Quem tem alguma idade, lembrou-se inevitavelmente do 23 de fevereiro de 1981 espanhol, o 23-F, quando o tenente-coronel Antonio Tejero Molina, da Guarda Civil espanhola, tomou de assalto a Congresso dos Deputados em Madri onde se deliberava sobre os destinos da Espanha após a renúncia do presidente Alfonso Suárez. Não necessariamente tenho essa idade toda, mas como vivi na Espanha e convivi com muitos espanhóis e catalães que tinham essa experiência muito nítida na memória e na retina, diante dos incidentes do último dia 8, em Brasília, logo me vieram à mente os recuerdos del 23-F. O pessoal da minha geração tem na memória e na retina as imagens do golpe fracassado na Venezuela em 2002. Um golpe criminoso e televisionado.
23-F Coronel tejero, golpe de estado:
Falo disso para dizer que, diante da perplexidade e do espanto frente às imagens de Brasília do dia 8 de janeiro, acredito que todos nós submergimos na procura de palavras, expressões e razões para tamanho desatino. Mas não se tardou a se reproduzir os batidos termos “fascistas”, “terroristas”, “nazistas” e afins que foram normalizados no vocabulário corrente. Todas essas denominações estiveram presentes, inclusive no discurso do presidente Lula da Silva desde Araraquara. Mas, num plano mais amplo, elas participam do debate público brasileiro, de modo praticamente obsessivo, desde muito. Com a emergência do capitão à presidência da República, porém, esses chamamentos viraram o pão de cada dia do debate. Todo tipo de ação, motivação ou expressão contrário a certo espectro político ou ideológico passou a ser qualificado de “fascistas”, “terroristas”, “nazistas” e mesmo “genocida”.
Sou sensível às razões que conduzem as pessoas em geral – e até o presidente da República – a lançar mão desses termos usados e batidos. Mas, ao mesmo tempo, noto que o emprego abusivo deles, particularmente agora neste terceiro ou quarto turno das eleições presidenciais de 2022, empobrece o debate e enfraquece a nossa compreensão dos desafios que aqueles incidentes do 8 de janeiro anunciam.
Se todo o simpatizante do capitão Jair Messias Bolsonaro for “fascista”, “terrorista”, “nazista”, “genocida”, fico honestamente me perguntando que denominação utilizar para os organizadores dos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos; os norte-americanos que mantêm dezenas de pessoas presas em Guantânamo sem julgamento nem perdão desde o pós-11 de Setembro; os integrantes do Estado Islâmico que até outro dia apareciam em nossos televisores ou em seus canais no YouTube decapitando cristãos e ocidentais sem a menor contrição; um Salah Abdeslam, um dos autores do atentado no Bataclan, em Paris, em 13 de novembro de 2015; os irmãos Kouachi, Saïd e Chérif Kouachi, que barbarizaram a sede do Charlie Hebdo em janeiro de 2015; o cidadão que decapitou um professor de história – no caso, Samuel Paty – simplesmente porque, sendo professor de história, lecionava história.
Note bem, repito: sou sensível às razões que conduzem à doxa da bien-pensance brasileira a encontrar fascistas, nazistas, terroristas e genocidas em todas as esquinas. Mas precisamos reconhecer que isso não nos auxilia no amadurecimento da discussão sobre as questões gravíssimas que circundam o bolsonarismo.
Após nos limparmos desse linguajar de ocasião e eivado desses termos imprecisos e nada ambientáveis aos fenômenos hodiernos que nos marcam, acredito que precisamos promover certo recuo analítico e empregar algum rigor conceitual para podermos avançar na discussão. Esses recuos e rigor demandam retornos à história. Não necessariamente para a promoção de uma historicização de conceitos. Mas, talvez, para uma historicização de questões históricas, sem a qual fica impossível dimensionar a complexidade da reflexão sobre em que consiste a “razão bolsonarista” e por que motivo ela não é bem uma “extrema-direita”.
Sou, aqui, novamente sensível às razões que conduzem as pessoas a classificar o bolsonarismo como “extrema-direita”. O próprio capitão Jair Messias Bolsonaro, enquanto candidato e presidente, mobilizou essa aproximação. Ela é conveniente para todas as partes. Bolsonaristas e antibolsonaristas. Mas acredito que elas seguem integralmente inconsequentes para o caso em questão.
“Extrema-direita” supõe muitas coisas. A expressão “Extrema-direita” nunca deve ser empregada no singular. “Extrema-direita” tem muitos tipos e para vários gostos. Veja o caso de Marine Le Pen, na França, Heinz-Christian Strache, na Áustria ou Geert Wilders, na Holanda. Todos são reconhecidamente de “extrema-direita”. Todos se autodeclaram de “extrema-direita”. Mas nenhum deles é, seriamente, identificado como “fascista”, “terrorista”, “nazista” ou “genocida”.
Isto posto, avancemos ao essencial. “Extrema-direita”, historicamente e por definição, é uma corrente de pensamento político que participa do cotidiano político europeu desde a Revolução Francesa porque, desde a Revolução Francesa, franceses e europeus reagem hostilmente à brutalidade das rupturas do processo revolucionário. Na viragem do século XIX ao XX, esse sentimento ganhou corpo partidário e aceitação política no ambiente democrático. Tudo em função dos traumatismos morais, intelectuais e culturais causados pela guerra franco-prussiana. Se, por um lado, aquele biênio 1870-1871 possibilitou a unificação da Alemanha, por outro lado, ele conduziu a uma radicalização de toda a vida política e social francesa e europeia. Frações importantes das elites, e mesmo de segmentos intermediários franceses e europeus, jamais aceitaram o “abandono” de Alsácia-Lorena. E, por isso, jamais esqueceram. O affaire Dreyfus – frequentemente mobilizado por extremistas franceses e europeus ainda hoje – foi uma mostra radical desse “não esquecer”, que não tardou a virar ressentimento. Um ressentimento que alimentou a impetuosa humilhação conduzida pela França ao encontro da Alemanha (e da Itália) nas discussões sobre a paz, em Versalhes, após a Grande Guerra de 1914-1918. Como bem antecipou o economista John Maynard Keynes, que participou daquelas discussões no pós-guerra, uma paz marinada em ressentimentos não gera nada diferente de mais ressentimentos. E esses ressentimentos acumulados acabaram por originar a emergência dos reais extremismos e partidos de “extrema-direita” do século XX traduzidos em nazismo, fascismo, franquismo, salazarismo e afins.
Numa aferição demasiado rápida de algo extremamente complexo, é, portanto, possível perceber que a negação dos efeitos do terror revolucionário da Revolução Francesa foi naturalizando sentimentos e, em seguida, convicções e, por fim, partidos de cunho extremista, ultranacionalista e, por vezes, populista e plebiscitário. Depois da Segunda Guerra Mundial, o objetivo geral foi impedir, a qualquer custo, a sobrevivência desses partidos de “extrema-direita”. De modo um pouco mais detalhado, a agenda mundial dos liberais do Mundo Livre, franqueada pelos Estados Unidos e encarnada pelos aliados europeus, foi dividida em:
a) conter o avanço soviético,
b) desnazificar a Europa e
c) decidir sobre o destino da Alemanha.
O efeito simbólico da destruição de Hiroshima e Nagasaki representou uma novidade dissuasória impressionante. Entretanto, quando o diplomata norte-americano George Kennan demonstrou ao presidente Truman que os soviéticos estavam dispostos a verdadeiramente morrer pela sua causa stalinista, não se viu outra forma de se “proteger a democracia” que contendo Stálin. Nessa contenção se inaugurou a Guerra Fria a partir de 1947. Durante a Guerra Fria, nada alimentou mais os extremismos de “extrema-direita” que os processos de descolonização.
A independência da Índia causou certamente muitos traumas aos ingleses. Mas nada parecido com o que o processo de independência da Argélia provocou – e ainda hoje provoca – nos franceses, europeus e afins. Enquanto os franceses recebiam o seu herói, o general Charles De Gaulle, pelas ruas de Paris quando da liberação do julgo nazista do governo de Vichy em 1944, os argelinos iniciavam as tensões políticas e sociais que iriam promover a violentíssima guerra pela descolonização da Argélia.
A “questão argelina” é decisiva para a compreensão da evolução da “extrema-direita”. Os acordos protagonizados pelo general Charles de Gaulle, entre 1958 e 1962 para pôr fim ao conflito, reabilitaram os ressentimentos nacionalistas extremistas típicos da “extrema-direita” em toda parte. Os adeptos da Argélia francesa não concordaram com a “abdicação” de porção do território francês. Essa discordância foi traduzida na criação da agremiação Front National, partido de “extrema-direita”, criado e liderado por Jean-Marie Le Pen em 1972 e inspirador de muitos análogos por toda a Europa.
Com a saída dos Estados Unidos dos acordos financeiro-econômicos de Bretton Woods, com as sucessivas crises de petróleo da década de 1970, com as crises econômicas subsequentes e com o desemprego em massa no espaço europeu, esse extremismo de “extrema-direita” foi se galvanizando no tecido social. Com o fim da Guerra Fria, em 1989-1991, a situação ficou ainda pior. Em lugar de prosperidade, viu-se o aumento do desemprego massivo e das angústias sociais. Termos como fraturas sociais, territórios perdidos e perdedores da globalização foram emergindo para esboçar uma realidade demasiado dramática. Tudo isso seguiu jogando água no moinho da “extrema-direita”, que, não ao acaso, chegou ao segundo turno das eleições presidenciais francesas em 2002 com o Front National e Jean-Marie Le Pen. O choque francês de 2002 foi desconcertante. Criou-se uma espécie de união nacional, onde adversários políticos históricos se unificaram para fazer barragem à ascensão do “extremo-direitista” Jean-Marie Le Pen. O esforço surtiu resultado. O presidente Jacques Chirac foi reeleito com 82% do sufrágio.
Mas Jean-Marie Le Pen e o seu Front National seguiram no páreo, vivos e altivos e influenciado partidos de “extrema-direita” no mundo inteiro.
Essa rápida digressão, em si, já indica pistas para se entender por que a “razão bolsonarista” não é bem a expressão de uma “extrema-direita”. Mas para explicitar a percepção que procurei avançar no artigo gentilmente mencionado, acredito ser importante uma rápida apreciação da conjuntura brasileira que permitiu a emergência do bolsonarismo.
Antes de tudo, é preciso notar que o capitão Jair Messias Bolsonaro – diferentemente de Marine Le Pen, na França, Heinz-Cristian Strache, na Áustria, Geert Wilders, na Holanda, Viktor Orbán, na Hungria ou Silvio Berlusconi, Matteo Salvini e Giorgia Meloni, na Itália – é um homem sem partido. Um cidadão que não necessariamente se autodeclara de “extrema-direita” e, talvez, nem saiba do que se trata. Portanto, desde a saída, precisamos reconhecer que existem incompatibilidades intransponíveis entre o bolsonarismo, que não é um partido, e um partido de “extrema-direita”. Gestos grosseiros, deselegantes, politicamente incorretos como os praticados pelo capitão Bolsonaro e por diversos de seus acólitos não são, por si só, a expressão de uma “extrema-direita”. Dito isso, avancemos.
Procuro entender o bolsonarismo como algo em construção, maturação e ebulição. Algo que pode ser visualizado em, ao menos, três camadas. A camada dos ideólogos do movimento – aqueles que o constroem mental e ideologicamente. A camada intermediária, a de maturação, composta por daqueles que emprestam seus nomes ao escrutínio do público em processos eleitorais – e, aqui, inclui-se o próprio Jair Messias Bolsonaro. E, por fim, a camada da ebulição, composta pelas massas, pelos homens-rebanho, geralmente ignaros mesclados à canalha lunática que se permitiu a promoção daqueles episódios do dia 8 de janeiro e outros.
Feita essa caracterização, podemos avançar sobre o vivo do tema. Um tema demasiado fluido e que merece alguns supostos para o seu devido enquadramento. O primeiro suposto precisa reconhecer que o bolsonarismo não é algo banal nem trivial. O segundo suposto precisa considerar que o bolsonarismo é um dos fenômenos mais complexos do cotidiano político brasileiro contemporâneo. Por fim, o terceiro suposto precisa naturalizar que desprezar a complexidade do bolsonarismo é subestimar a sua força.
Apresentados os supostos, avancemos para a abordagem conjuntural.
O bolsonarismo, em sua dimensão brasileira, é produto dos traumas legados pela nossa redemocratização. Há certo consenso na literatura especializada que sugere que a nossa Nova República – inaugurada pelo presidente Tancredo de Almeida Neves em 1985, consubstanciada pela Constituição de 1988 e afirmada diuturnamente desde então – possui três fases de estabilização. A estabilização política entre 1974 e 1994, a estabilização econômica de 1995 a 2002 e a estabilização social de 2003 a 2010. Essas ondas de estabilização só foram possíveis devido à existência de “acordos não escritos entre cavalheiros” para sustentar a evolução e consolidação democrática no país.
Perceba-se que o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em lugar de fragilizar, reforçou a democracia. A presidência de Fernando Henrique Cardoso, mesmo com a crise da reeleição, promoveu o mesmo reforço democrático. O período do presidente Lula da Silva não foi muito diferente: o Brasil saiu em 2010 mais democrático que entrou em 2003. Mas foi nesse período de 2003 a 2010 que o “acordo não escrito entre cavalheiros” começou a mudar e a alimentar as bases do bolsonarismo a partir de 2004.
Em 2004, ocorreram dois incidentes conexos importantíssimos para a compreensão da emergência do bolsonarismo. O primeiro foi o engajamento do Exército brasileiro na Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti – Minustah. O resultado dessa ação foi o imediato levantamento da moral das tropas. A questão militar e dos militares foi pessimamente tratada a partir de 1985. Os constituintes encaram essas demandas com desdém, ignorância e, não raro, revanchismo. As chagas abertas pelos porões do regime militar seguiam vivas demais em 1986-1988, o que claramente contaminou a discussão sobre a sorte dos militares sob o regime democrático. Com a participação do Brasil no processo de estabilização do Haiti, o Exército foi empoderado.
As novas gerações de recrutas passaram a viver um glamour e um reconhecimento que apenas os oficiais muito antigos algum dia conheceram. Isso conduziu à reabilitação de certo ufanismo ao Brasil dos militares e grande nostalgia do próprio regime militar. Tudo isso ficou explícito nas comemorações que se fizeram por ocasião dos 40 anos da efeméride de 1964. Bem ou mal, a partir dali, teve início uma verdadeira hipertrofia da presença de militares e de assuntos militares no cotidiano brasileiro. Segmentos militares e não militares passaram a defender abertamente e fora dos quartéis a classe e seus feitos pretéritos. Eis aí, no meu entender, o início de tudo: o começo do bolsonarismo.
No ano seguinte, em 2005, fomos todos acometidos pelo escândalo do mensalão. As performances do então deputado Roberto Jefferson de encontro do então todo poderoso ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu, seguem nítidas na retina e na memória de todos que viram e viveram aquele período.
Eu vivia o cotidiano acadêmico e cultural da Universidade de São Paulo naquele momento. Lembro-me bem da preocupação generalizada. O fuzuê foi imenso. Acreditava-se que a tragédia havia vencido a esperança e que o déficit de governabilidade do presidente Lula da Silva poderia impor retrocessos inimagináveis, inclusive um eventual retorno ao regime militar. Professores históricos e notáveis da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH foram mobilizados para proferir as suas impressões quase diariamente. Lembro-me bem do filósofo Paulo Eduardo Arantes dizendo abertamente que o PT havia acabado, que não passava de uma “organização criminosa”. Lembro-me do sociólogo Francisco de Oliveira, da filósofa Marilena Chaui e do saudoso Plínio de Arruda Sampaio endossando esse mesmo entendimento. Olhando retrospectivamente, é impressionante notar que essa percepção de atores inquestionavelmente vinculados à esquerda e a lutas verdadeiramente democráticas serviu de argamassa para o discurso de gente situada em espectro ideológico diametralmente oposto e materializado em experiências do Instituto Millenium, criado em 2005 e do Movimento Endireita Brasil, criado em 2006.
Ambos, Millenium e Endireita, nasceram sob a égide de ideais liberais, ultraliberais, conservadores e ultraconservadores à procura de um partido ou movimento genuinamente à direita que lhes abraçasse. Todos apostavam no fim do PT e procuravam uma alternativa ao PSDB. Com a areia movediça da profunda crise política e partidária causada pelos escândalos do mensalão, seus simpatizantes foram aumentando. E, entre eles, muitos indivíduos radicais, alguns conservadores tradicionais e muitos militares, policiais e agentes de segurança pública. Eis aí, no meu entender, a grande sinergia para o bolsonarismo crescer.
Outro momento importante da contextualização ocorre em 2010-2011. Nas eleições presidenciais de 2010, a candidata a sucessora do presidente Lula da Silva começou claudicante. O candidato José Serra esteve às voltas com a vitória em vários momentos. Os segmentos à esquerda, que já haviam abandonado o PT e estavam embarcados de cabeça na agremiação PSOL, foram mobilizados para participar do “salvamento mãe do PAC”. Surgiu, ali, a expressão “o silêncio dos intelectuais”. Só não consigo me lembrar se antes ou depois de uma bolinha de papel na cabeça do candidato José Serra machucá-lo a ponto de ter que recorrer à UTI. Seja como for, ao final, Dilma Rousseff foi eleita.
Uma vez no poder, ela instaurou a Comissão Nacional da Verdade e, se não bastasse, controlou-a quase que pessoalmente. Com isso, o que era para ser uma revisão histórica e moral virou rapidamente uma disputa política sobre a verdade da abertura “lenta, gradual e segura” que conduziu à redemocratização. Isso tudo causou a fúria de variados segmentos da Forças Armadas, e notadamente de membros do Exército.
Permita-me mais um parêntesis antes de seguir.
É de se lembrar – e esse detalhe pode ser extremamente importante para a compreensão do resto – que, na transição de presidência em 2010-2011, decidiu-se que a sucessora deveria manter dois ministérios e dois ministros imexíveis: Fazenda e Defesa, Guido Mantega e Nelson Jobim.
Nelson Jobim fora um ministro estrategicamente decisivo para o segundo mandato do presidente Lula da Silva. Em 2008, às vésperas da crise financeira, o Brasil virou special partnership da União Europeia e assinou vultosos contratos de cooperação militares com a França sob a presidência de Nicolas Sarkozy. A imensa complexidade dos interesses nisso tudo envolvidos não teria chegado a bom tom sem a presença e a personalidade marcantes do ministro Nelson Jobim à frente do Ministério da Defesa com a missão de pacificador das tropas. Na transição presidencial, a decisão de mantê-lo na função adveio certamente dessa sua eficiente devolutiva aos comandos dados, mas também da necessidade de manutenção de continuidade e estabilidade que a mentalidade militar possui. Pois já nos primeiros momentos da presidência de Dilma Rousseff a questão militar erigiu à luz do dia e o ministro Jobim, em defesa dos seus, comprou brigas que protagonizaram o início da primeira crise ministerial daquele governo nascente em 2011.
Lembremos que a tensão entre o ministro Jobim e a presidente da República fora tamanha que o gaúcho de Santa Maria desautorizou publicamente a integralidade das mulheres investidas pela presidente em cargos de expressão, chegando a afirmar que Gleisi Hoffmann e Ideli Salvatti mal conheciam Brasília.
Não é de duvidar que o pano de fundo dessa exasperação estivesse ancorado justamente nos contratempos gerados pela instauração da Comissão Nacional da Verdade. Seja como for, a partir desse momento, a instabilidade permanente da presidência de Dilma Rousseff já estava contratada e os militares começavam a debandar da embarcação lulo-petista-dilmista. Eis aí, no meu entender, o caminho de Damasco do bolsonarismo nascente.
Recapitulando, portanto:
Esses momentos serviram de bases históricas para a emergência do bolsonarismo que, a partir dali, precisaria de poucas peças para começar a funcionar.
Uma dessas peças veio com a profusão de protestos das noites de junho de 2013. Outra consistiu na quase anomia que esses protestos causaram. A terceira residiu nos desmandos da Operação Lava Jato. Consoante a essa Operação, emergiu a ambiência de criminalização de políticos. Nessa ambiência, não se tardou a desmoralização de todo tipo de agente público. A peça seguinte foi a demonização da política. Junto disso veio a obsessão pela “nova política” com novos atores preferencialmente “não políticos” – como se dizia à época, a necessidade de substituição das “cabeças brancas” pelas “cabeças pretas”.
Todas essas variáveis já atuavam em alta e perfeita sinergia no biênio 2013-2014. Careciam somente de mais dois fatores: um nome e uma estrutura de pensamento. O nome veio com Jair Messias Bolsonaro. A estrutura de pensamento veio com Olavo de Carvalho.
Nada indica que essa trajetória de emergência do bolsonarismo tenha promovido namoros prolongados do movimento com a “extrema-direita”. O nacionalismo dos militares é militar. As convicções dos liberais e conservadores iam, inadvertidamente, ao encontro de maior abertura do país à globalização. Jair Messias Bolsonaro, em si, um típico oportunista, jamais teve nada muito bem-organizado na cabeça. Olavo de Carvalho é um detalhe a partir do qual pretendo retornar adiante.
IHU – Por que, na sua avaliação, a razão bolsonarista é algo específico do século XXI? Que elementos contribuem para que ele seja um fenômeno deste século?
Daniel Afonso da Silva – Prometo um comentário mais sucinto a esta sua pergunta. Ainda não explicitei completamente o que me parece ser a “razão bolsonarista”. Mesmo assim, vou direto ao coração da sua questão. Entendo a “razão bolsonarista” como algo do século XXI porque ela é produto das angústias e dos desafios amplificados no século XXI.
No plano político, estes primeiros anos do século XXI têm nos brindado com a tragédia da política. Não simplesmente porque temos presenciado o féretro recorrente de democracias, mas especialmente porque isso que entendemos como política foi rebaixado a níveis jamais imaginados por Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Richelieu, Talleyrand-Périgord ou Tocqueville.
Não quero ser deselegante tampouco exacerbadamente exagerado, mas ninguém minimamente consciente e educado pode imaginar que Jair Messias Bolsonaro, Donald J. Trump, Volodymyr Zelensky e outros inomináveis pulhas à frente de cargos supremos em países relevantes são algo diferente da derrota da política.
Quando se passa do Executivo ao Legislativo e se observa a qualidade dos parlamentares, a sensação não é outra que a de franco desespero. Todos temos em mente a dimensão burlescamente trágica da participação dos deputados federais e senadores brasileiros no endosso do pedido de afastamento e, em seguida, do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Foi incrível. Impressionante. Mas se aquilo não bastasse, mais incrível ainda foi a aprovação retroativa, no apagar das luzes de 2022, das contas públicas do ano-calendário 2014, que serviram de alicerce para a tese das pedaladas fiscais que justificou o impeachment de 2016.
Como não se desesperar?
Quando se passa do Legislativo ao Judiciário, tudo vira ainda mais constrangedor. Muitos dos embates dos ministros supremos – recuperem da memória dos fights entre Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes para ficar apenas num exemplo – lembram disputas paroquiais interioranas de banana republic. São cenas indignas. Ponto. Nós, contribuintes brasileiros, não as merecemos. Ponto final.
Todo esse rebaixamento, nos três níveis de poder estabelecido, é verdadeiramente real, espetacular e desesperador. Mesmo assim, sempre me recordo do contraponto aludido pelo nosso ilustre embaixador Marcos Azambuja ao questionar sobre o parâmetro para esse rebaixamento. Em seu questionamento, ele nos lembra – da altura dos seus quase 90 anos de vida e 70 de alto funcionário público brasileiro exemplar – que o passado talvez não fora pavimentado por políticos, parlamentares e homens da lei mais dignos de suas funções que os atuais. No fundo, talvez, no passado tudo ignorávamos, mas, hoje, tudo sabemos.
A ponderação do nobre embaixador é muito consequente – mesmo que seja difícil concordar totalmente depois das presidências de Donald J. Trump nos Estados Unidos e de Jair Messias Bolsonaro no Brasil, onde o “nunca antes na história deste país” nunca foi tão verdadeiramente eloquente e dramático – e me permite abordar diretamente a sua questão.
Dito de modo direto, a “razão bolsonarista” é típica do século XXI porque hoje sabemos. Hoje sabemos que as desigualdades econômica, cultural, social e intelectual no mundo inteiro é brutal. Até o último quartel do século XX, ouvíamos falar. Tínhamos impressões. Líamos algo aqui ou ali. Depois da popularização do acesso a toda sorte de tecnologia informativa em broadcast, streaming e mídias sociais, somos todos os oito bilhões de habitantes bombardeados diuturnamente e em tempo real com as imagens, sons e sentimentos das fraturas humanas e sociais especializadas pelo mundo inteiro. Se nada disso bastasse, essa ultramassificação de informações, conhecimentos e notícias permite a construção de uma consciência transnacional das agruras locais, nacionais, regionais e mundiais.
Por ser assim, vejamos.
O desemprego e a desocupação em massa são uma realidade crescente no mundo inteiro desde os anos de 1980. Os fragorosos participantes dos protestos de Seatle, em 1999, tinham, como palavra de ordem, o embate dos 80%, pobres e miseráveis, contra os 20%, ricos e muito ricos. Doze anos depois, em 2011, os incansáveis animadores do Occupy Wall Street – e Occupy toda parte: creio que nenhuma grande cidade do Ocidente ficou sem aglomeração similar – já se diziam os 99%. Viraram os 99%, pobres e miseráveis, contra o 1%, ricos e muito ricos. Ou seja, hoje sabemos e hoje nos mobilizamos – ou deveríamos nos mobilizar – globalmente.
Se me permite, gostaria de mencionar rapidamente um saudoso historiador catalão a quem devo intelectualmente muito, que é Josep Fontana i Làzaro. Fontana i Làzaro terminou a vida em projetos extraordinários que resultaram nos livros Por el bien del imperio e El futuro es un país extraño. Ambos os livros promovem uma profunda reflexão documentada sobre a história mundial após 1945 e, especialmente, sobre o pós-crise financeira de 2008. Sobre a crise de 2008 – que nos aflige até hoje –, Josep Fontana escreveu mais ou menos o seguinte: “as pessoas não compreendem, não percebem ou não querem ver, mas essa crise está solapando conquistas sociais, intelectuais, culturais e morais que nem o fascismo e o nazismo juntos conseguiram destruir”. O que o impecável historiador catalão está nos informando é que outra peculiaridade do século XXI – além do imperativo do hoje sabemos – é a indisfarçada indiferença ao trágico e o desavergonhado desprezo pelo peso da história em nossas vidas. As pessoas querem ser felizes. Querem viver sem dor nem rugas. Querem distância do memento mori. Mas não percebem que, vivendo assim, conduzem a si e a todos a uma ambiência de inevitável rebaixamento de expectativas.
Entrevista a Josep Fontana:
Permita-me somente mais uma digressão antes de voltar diretamente à pergunta. Outra peculiaridade do século XXI, no Brasil e algures, e inteiramente relacionada às duas anteriores, é a imposição do mantra soixante-huitard francês da dérision, déconstruction, destruction como regra de convívio social. Olhando bem de perto, esse mantra, protagonizado pelas vedetes francesas do pós-estruturalismo que foram Deleuze, Guattari, certo Foucault, quase todo Derrida e a sua French theory, produz implicações práticas e diretas sobre referências básicas de convívio social no Ocidente que são família, nação, trabalho, estado, escola e afins. Ou seja, o século XXI tem destruído essas referências básicas da vida – e aqui não quero dizer que essas referências não merecem o devido reparo ou modificação como, aliás, vêm recebendo há séculos. Entrementes, com essa destruição, somos todos lançados nisso que que Zygmunt Bauman denominou de “mal-estar da pós-modernidade”. Esses temas todos são muito delicados e sobre eles já se produziram bibliotecas inteiras.
Voltando e respondendo frontalmente à sua questão: a “razão bolsonarista” é uma clara reação brasileira ao conjunto desse mal-estar societário mundial.
IHU – Pode nos dar alguns exemplos de como a razão bolsonarista se manifesta internacionalmente?
Daniel Afonso da Silva – É muito importante a sua questão e ela me permite retomar elementos que sugeri em comentários anteriores.
Veja bem, tomando por supostos que 1) a “razão bolsonarista” é uma clara reação brasileira ao mal-estar intensificado pela pasmaceira do século XXI e 2) que essa pasmaceira se deve a) a uma redução de expectativas frente à consciência generalizada da brutalidade da desigualdade econômica, cultural, social e intelectual no mundo inteiro e b) a uma progressiva destruição de preceitos básicos de convívio social no Ocidente que são família, nação, trabalho, estado, escola e afins, a “razão bolsonarista” tem a intenção de reconstruir certo mundo desabado.
Pode parecer contraditório quando lembramos que o capitão, deputado e presidente Jair Messias Bolsonaro alardeou desde sempre e aos quatro ventos que iria “descontruir tudo que está aí”. Mas, olhando de perto, não há nenhuma contradição. Note bem, como mencionei acima, o bolsonarismo é disperso em camadas. Jair Messias Bolsonaro é uma coisa e a “razão bolsonarista”, outra. E é justamente por isso que considero que o bolsonarismo, a partir de sua “razão bolsonarista”, vai se perpetuar no cotidiano político brasileiro com ou sem o clã Bolsonaro.
Voltando ao ponto, como afirmei, a “razão bolsonarista” tem a intenção de reconstruir certo mundo desabado. Mas como ela procura a efetuar essa reconstrução?
Um primeiro reflexo que esboço diante desta questão é sugerir, a todos que desejam entender a “razão bolsonarista”, que leiam Olavo de Carvalho. A bien-pensance brasileira desprezou irresponsavelmente a presença das ideias de Olavo de Carvalho no nosso cotidiano político nacional. Os acadêmicos, os artistas, os intelectuais e a gente letrada da grande imprensa fizeram com o falecido guru da Virgínia o que, em outros tempos, fizeram com o escritor Paulo Coelho. No caso do autor de As Valkírias, o deslize foi remediado com a sua aceitação na Academia Brasileira de Letras. No caso do autor de O imbecil coletivo e O jardim das aflições, a negligência deu vazão à viabilização da chegada de um literalmente estúpido à presidência da República de um país-continente de 220 milhões de habitantes.
Como perdoar o complexo acadêmico-artístico-intelectual-midiático brasileiro por isso?
Um dos núcleos da ofensiva de Olavo de Carvalho é justamente a dita “guerra cultural”. Como isentar os nossos paladinos da cultura – majoritariamente, perdoa-me dizer, doutores do saber em universidades – por nada antever, nada informar e nada do olavismo verdadeiramente combater?
Um mea culpa, após o desastre, está sendo muito corretamente realizado por segmentos acadêmicos e universitários nitidamente de esquerda. Dos vários exemplos, menciono o caso da excelente revista Rosa, ancorada na Universidade de São Paulo. A revista Rosa é uma versão renovada da antiga revista Fevereiro. Ambas são revistas academicamente sérias que tiveram como idealizador o saudoso Ruy Fausto. Ruy Fausto foi um trotskista ou marxista ou marxólogo até o fim da vida e, portanto, não possui nenhuma suspeição de ser bolsonarista, olavista, direitista ou coisa que o valha. Ele, Ruy Fausto, salvo melhor juízo, foi o primeiro filósofo brasileiro, acadêmico reputado, professor emérito da USP, professor aposentado da Sorbonne em Paris e especialista em Marx, a realizar um estudo detido da obra de Olavo de Carvalho. Diferentemente de muitos, ele procurou entender sem desqualificar o guru. Singrando pelas veredas abertas por Ruy Fausto, muitos acadêmicos sérios passaram a se dedicar à compreensão de Olavo de Carvalho e de sua relação com o bolsonarismo. Quem abre hoje a revista Rosa pode nela, portanto, encontrar várias análises consistentes sobre a obra e o pensamento de Olavo de Carvalho.
Mas bem antes da revista Rosa e de Ruy Fausto se aplicaram em Olavo de Carvalho, Alexandre Borges, Martin Vasques da Cunha, Felipe Moura Brasil – quem compilou o livro mais vendido de Olavo de Carvalho, que é O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota – e muitos outros estudiosos e, em algum momento, seguidores dos ensinamentos do guru da Virgínia reconstituíram à exaustão os elementos para a compreensão da emergência de Olavo de Carvalho como referência do bolsonarismo no Brasil.
Vou indicar rapidamente apenas alguns marcadores para fundamentar o que vou, aqui, argumentando.
Olavo de Carvalho é conhecido da opinião pública brasileira desde os anos de 1970. Mas foi a partir de fins dos anos de 1990 que a sua presença ficou incontornável. Por ausência de público e trabalho, ele emigrou para os Estados Unidos em meados dos anos de 2000. Desde lá, ele organizou cursos e passou a se posicionar nas redes sociais e na internet. Primeiro no antigo Orkut e depois em plataformas e sites para comercializar seus cursos. A partir da insurgência brasileira da onda liberal, conservadora, ultraliberal e ultraconservadora após os escândalos do mensalão em 2005, Olavo de Carvalho passou a ser uma espécie de “consultor ad hoc” de muitos dos frequentadores e simpatizantes do Instituto Millenium, do Movimento Endireita Brasil e dos próprios círculos militares. Quando da eclosão dos protestos das noites de junho de 2013, ele já possuía um público cativo imenso e uma insofismável influência sobre aqueles que ansiavam por alternativas ao “esquerdismo” do PT, PSDB e PMDB. Isso tudo foi tão verdade que, à época, já eram comuns pichações ou cartazes com o dizer “Olavo tem razão”. Um dizer que não tardou a virar um verdadeiro mantra difundido e compartilhado massivamente em postagens de Facebook e afins.
A maior parte dos movimentos de contestação ao establishment e à presidência Dilma Rousseff depois das eleições de 2014 esteve alicerçada nos conselhos desse mago da Virgínia. Após o impeachment de 2016, o deputado Jair Messias Bolsonaro já era um pop star subterrâneo, como vai brilhantemente documentado no recente livro O ovo da serpente da jornalista Consuelo Dieguez. Ele, o capitão, era extremamente aclamado no Congresso pelos seus pares nanicos e pelos interiores do Centro-Oeste, Norte e Sul do país onde a rejeição ao lulo-petismo-dilmismo havia se tornado irremediável desde os escândalos do mensalão e, mais ainda, após as noites de junho de 2013. Foi, portanto, ali, no pós-impeachment de 2016, que os seguidores de Olavo de Carvalho passaram a militar nas mesmas trincheiras e sonhar os mesmos sonhos dos entusiastas do deputado capitão.
Como se menosprezou tudo isso? Como ninguém notou que o enamorado da memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra era matreiramente letal como o seu homenageado? Como se permitiu o cultivo desse verdadeiro ovo de serpente?
A segunda parte da minha resposta à sua questão demanda justamente uma apreciação sobre o que, em essência, sugere Olavo de Carvalho para a reconstrução do certo mundo desabado.
Ele, Olavo de Carvalho, sugere basicamente o que todo conservador ou ultraconservador erudito e letrado sugere: uma revisão mental das consequências práticas do Iluminismo, a saber:
a) o “assassinato de Deus”,
b) a profanação dos fundamentos do cristianismo e
c) a destruição do Ocidente.
Ocidente, cristianismo, Deus não são temas nada triviais – e digo isso sob o controle seguro de seus ilustres leitores e frequentadores aqui do IHU. Mesmo assim, são esses temas que Olavo de Carvalho mobiliza para forjar um projeto de reconstrução da sociedade brasileira. Um projeto talvez seja demasiado. Um conjunto de intenções talvez fique mais adequado. Veja bem, rediscutindo Ocidente, cristianismo e Deus, Olavo de Carvalho propõe, direta ou indiretamente, a reconstituição das referências para família, nação, trabalho, estado, escola e afins.
A sua pergunta específica é como a “razão bolsonarista” se manifesta internacionalmente. Oras, a discussão que Olavo de Carvalho propõe aos seus seguidores – que depois viraram militantes do bolsonarismo – é a mesma que circunda as várias tendências dos neocons norte-americanos que chegaram ao poder com o presidente George Bush em 2000 e se afirmaram no cotidiano político dos Estados Unidos a partir do 11 de Setembro de 2001, a mesma que anima os afeitos ao ressurgimento do tea party também nos Estados Unidos após a crise financeira de 2008 e exatamente a mesma que ambienta a alt-right de Steve Bannon, ideólogo do trumpismo e de extremismos mundo afora.
Fora dos Estados Unidos é possível encontrar ramificações dessa discussão em vários países e autores. Para ficar em apenas um país e um autor, chamo a sua atenção para o jornalista Éric Zemmour, que abdicou de uma carreira jornalística de prestígio na França para se dedicar exclusivamente à atividade político-partidária a partir de 2020-2021.
Milhares na rua por Éric Zemmour, outros tantos contra:
O caso de Zemmour é bem sintomático e serve de paradigma para a sutileza que venho argumentando a propósito da “razão bolsonarista” e de sua relação com a “extrema-direita”. Éric Zemmour se autodeclara ultraconservador e gaullista. Dito de modo franco, trata-se de um conservador de viés autoritário. Ele publicou vários livros e ensaios explicitando o rebaixamento francês, o pessimismo europeu e o declínio do Ocidente. O seu livro mais eloquente tem por título Le suicide français.
E, só como parêntesis, vale perceber que Le suicide français teve sucesso editorial na França similar ao sucesso de O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, de Olavo de Carvalho no Brasil.
Em algum momento após os atentados de islamistas radicais na França de 2015, Éric Zemmour passou a combater o conjunto dos partidos políticos e dos espectros ideológicos franceses – e, nesse ínterim, mais direta e duramente a “extrema-direita” de Marine Le Pen.
Mas, afinal, o que quer Zemmour? Qual é a síntese de seu pensamento político?
De modo sucinto, é possível dizer que ele propõe o seguinte:
1) Há uma grande modificação demográfica na França (e na Europa) que conduz a França a não mais se reconhecer como França.
2) Essa modificação demográfica se deve à proeminência de imigrantes, majoritariamente árabes, que se recusam a adotar os preceitos ocidentais e laicos da República Francesa.
3) Como, por um lado, não falam francês nem professam valores ocidentais, e, por outro lado, possuem níveis de reprodução humana superiores aos dos franceses, esses estrangeiros tendem a se impor pelo peso numérico, le poids du nombre.
4) Tudo isso conduz a um rebaixamento da influência da França na Europa e no mundo.
5) O fim da França (enquanto ente de referência de valores) é o fim da Europa e o fim da Europa é a aceleração do fim do Ocidente.
Esses supostos de Éric Zemmour indicam outra coisa que não simplesmente as demandas históricas da “extrema-direita”. Há, sim, aí, um nacionalismo exacerbado. Mas há também e sobretudo uma demanda de ressignificação dos fundamentos do Ocidente que estão ancorados no cristianismo e em certa razão de Deus; aliás, A razão de Deus é um dos livros mais importantes do notável jornalista e economista J. Carlos de Assis e serviu de inspiração o meu artigo A razão bolsonarista.
Éric Zemmour, ao propor a ressignificação dos fundamentos do Ocidente, aproxima-se de Olavo de Carvalho e Olavo de Carvalho dele e, assim, alimentam a “razão bolsonarista”. Para deixar essa aproximação ainda mais evidente, basta ler com respeito e atenção o texto Trump e o Ocidente, do embaixador Ernesto Araújo. Sob vários aspectos, considero esse texto do “Arnesto” como um dos mais importantes da “razão bolsonarista”. Nele encontramos uma síntese do pensamento de Olavo de Carvalho focado em vivificar o Ocidente e uma dimensão prática do que se pode – ou se poderia – fazer para levar a cabo esse empreendimento. Em tudo isso, reside a dimensão internacional da “razão bolsonarista”.
IHU – Quais as causas da erosão social e por que esse ideário deixou de existir?
Daniel Afonso da Silva – Acredito já ter mencionado aspectos dessas questões nos comentários anteriores. De todo modo, vou avançar outro argumento rápido para deixar a ideia ainda mais bem embasada.
Progresso e prosperidade são, em grande medida, preceitos modernos que irrigaram e são irrigados pela Modernidade. A crítica e a crise que lançaram as bases para as revoluções do século XVIII trouxeram consigo o imperativo da razão frente ao imperativo de Deus. Progresso e prosperidade passaram a ser doravante franqueados pelo imperativo da razão, hegeliana ou não. A mesma razão que conduziu às Guerras Totais, à bataille de la Somme, à carnificina de Stalingrado, à humilhação de Vichy, ao sem-nome de Auschwitz.
Como seguir sustentando preceitos que animaram esses extremos?
Hannah Arendt, em passagem luminosa, vaticinou que as Guerras Totais foram como uma explosão e o dia seguinte. Tudo virou caco. Inclusive o projeto moderno. Como reconstruir? O erudito Erich Auerbach, que nos legou o impressionante Minesis, foi ainda mais enfático ao sinalizar que, em verdade, um tipo de civilização estava desaparecendo para jamais refluir. É para tentar tudo reconstruir e fazer refluir que, desde o pós-1945, se procuram, portanto, alternativas à Modernidade.
De um lado, construiu-se o arranjo pós-modernidade. Um arranjo amplo, dinâmico, complexo, mas que não resolve o problema – e, talvez, até os amplie. De outro lado, foram desenvolvidos os estudos culturais, os subaltern and postcolonial studies, em feição mais localizada e combativa, os estudos do grupo Modernidade versus Colonialidade levados a cabo majoritariamente pelos latino-americanos Anibal Quijano, Walter Mignolo, Edgardo Lander e outros e, ainda, mais recentemente, a proposta decolonial do porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres. Tudo isso é bom, competente, interessante, mas ainda não conseguiu lançar as bases para verdadeiramente se suplantar, por exemplo, a hegemonia do dólar, das multinacionais notadamente norte-americanas e o lobby irresistível desses países do hemisfério norte.
O colapso da modernidade: multipolaridade, decolonialidade e desocidentalização | Walter Mignolo
Deixa-me dar um exemplo mais concreto.
Fala-se muito na ascensão da China, no Sul Global e no declínio do poderio norte-americano. Há bibliotecas inteiras sobre o assunto. Virou politicamente correto tratar disso tudo com ares triunfalistas. É “nobre” desejar o declínio norte-americano e a ascensão da China. Mas coloquemos os pés no chão e analisemos os dados. A China é hoje a segunda maior economia do mundo. A primeira segue sendo os Estados Unidos da América. Qual a diferença do produto – digo, do PIB – entre um e outro? Faço essa pergunta aos entusiastas da ascensão chinesa só para perceber a perplexidade de seus semblantes.
Vamos aos fatos.
Os Estados Unidos possuem um PIB aproximadamente dez trilhões de dólares superior ao PIB chinês. Em 2021, sob efeito da pandemia, essa diferença caiu para aproximadamente sete trilhões. Mas, em 2022, tudo indica que, após a consolidação dos dados, a diferença voltará a aumentar. Estamos falando de 25, 26 trilhões de dólares aos norte-americanos e 16, 17 trilhões, aos chineses. As pessoas não se dão conta, mas o hiato entre o PIB norte-americano e o PIB chinês é quase similar a dois terços do conjunto do PIB somado das outras oito principais economias do mundo – o Brasil incluso. Só para lembrar, o Brasil é uma das dez principais economias do mundo desde 1979-1982 e hoje tem um PIB de aproximadamente 1,4 trilhão de dólares.
Como superar essa predominância do dólar e dos Estados Unidos? Como superar a violentíssima extraterritorialidade geradora de vulnerabilidades nefastas que essa predominância conduz?
O segundo aspecto não menos importante diz respeito à categoria renda, e nesse quesito os estudos do economista mexicano Jaime Ros são implacáveis.
Partindo de variáveis metrificáveis como renda per capita, PIB per capita, PIB por trabalhador, anos de escolaridade etc., Ros promove uma hierarquização de países em 1. Renda alta, 2. Renda médio-alta, 3. Renda média, 4. Renda médio-baixa e 5. Renda baixa. Partindo dos critérios aferidos, os Estados Unidos e parte majoritária dos países europeus figuram como países de renda alta, o Brasil fica entre os países de renda média e a China, pasmem, fica abaixo do Brasil na condição de país de renda médio-baixa. Não precisa dizer muito mais. Há um gap imenso entre os fatos e os desejos. Chamar a atenção para isto não é ser “americabobo”, como o chapairo que quase virou embaixador, nem “sinofóbico”, como o embaixador que quase teve que virar chapeiro. Nada disso. Trata-se de sondar a vida como ela é. Ou, como diz o geógrafo Michel Foucher, é reconhecer que “o mundo é real, independente de nossas animosidades ao encontro dele”.
Dito de maneira direta, os frutos da Modernidade seguem aí. O progresso e a prosperidade dos europeus e norte-americanos seguem uma verdade verdadeira quando comparados aos demais países “menos modernos”. Mas nem o American way of life nem le rêve européen fazem alguém, interno ou externo nos Estados Unidos ou na Europa, sonhar.
IHU – O que está sendo gestado no lugar desse ideário? Outras ideias de progresso não estão em curso?
Daniel Afonso da Silva – Aqui darei uma resposta enfática: não sei. Mas suspeito que o núcleo da “razão bolsonarista”, enquanto ramificação de todas essas tendências mundiais que estamos aqui conversando, tende a desesperadamente frear o declínio e a decadência do Ocidente. O resto, pelo visto, vê-se depois.
IHU – Em que medida a adesão de pessoas a movimentos bolsonaristas ou à razão bolsonarista, de modo geral, é também um sintoma da crise da democracia?
Daniel Afonso da Silva – Excelente pergunta. Veja bem, o que chamamos de democracia e sistema representativo, tem tempos que não existem mais. Um presidente da República é, não raramente, um mero relações públicas. Vive engessado, soterrado em afazeres inúteis e de fruição imediata. O conjunto dos parlamentares é traduzido em bombeiro, apagador de incêndio. Quero dizer com isso que os nossos governantes, no Brasil e alhures, com raríssimas exceções, apenas reagem. Estão submersos em problemas infindáveis que não dão conta de entender e, muito menos, organizar e hierarquizar.
Tome o caso da pandemia de covid-19. A inoperância e impotência das autoridades públicas foram generalizadas. Nenhum representante público em qualquer lugar do mundo pode se orgulhar do que se passou. Como explicar para a população nacional e para a coletividade internacional que países tão tecnologicamente avançados como Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos, China foram incapazes de antecipar a hecatombe que foi a pandemia?
Há um estrategista francês que aprecio muito que se chama Hubert Védrine. Hubert Védrine foi secretário geral da presidência de François Mitterrand, chanceler francês durante a presidência de Jacques Chirac. Ele escreveu um livro que considero formidável sobre a pandemia. O título do livro é Et après.
Nesse livrinho – que hoje já conta com várias edições corrigidas e ampliadas –, Védrine demonstra que as principais agências de segurança dos principais países do mundo – Estados Unidos, França, Alemanha incluídos – vinham anotando, em seus Planos Estratégicos ou Livros Brancos de Defesa Nacional, a possibilidade de uma crise sanitária mundial e disruptiva desde 2008. A pergunta que ele apresenta no livro e que torno minha aqui é a seguinte: por que os países não se anteciparam? A resposta parece prosaica, mas é a mais plausível: está fora de moda pensar em problemas. Não é politicamente correto nem faz bem para a vitalidade eleitoral. Ninguém se arrisca a nada. O custo político e moral pode ser fatal. Paulo Eduardo Arantes toca neste mesmo ponto, mas por vias diferentes, em seu notável O novo tempo do mundo. Vivemos tempos de apagadores de incêndios, diz ele. O longo prazo – quero dizer, depois de amanhã – realmente não existe. Nele, como dizia Keynes, estaremos efetivamente todos mortos. E deixou de valer a pena nisso pensar.
A “razão bolsonarista”, para o bem e para o mal, reivindica mais ação e menos reação. Por tanto, uma reversão dessa tendência à apatia.
No entanto, a ação bolsonarista prática durante a presidência de Jair Messias Bolsonaro foi essa tragédia que se vê até sem querer ver. Como diria o falecido Joelmir Beting, nesse tipo de “prática, a teoria é outra”.
IHU – Quais são os riscos da razão bolsonarista para a democracia?
Daniel Afonso da Silva – Por tudo que vimos conversando até aqui, suspeito que esteja clara a complexidade do tema e dos problemas. Nesse sentido, quero avançar lentamente algumas impressões para um fenômeno complexo, dinâmico, em mutação, maturação e consolidação que é o bolsonarismo.
O ponto inicial de tudo pode ser olhar melhor e mais humildemente para as tormentas do 8 de janeiro de 2023 no Brasil.
Ainda não há, dez dias depois dos eventos, um veredicto sobre aquelas tormentas tampouco massa verdadeiramente crítica para análise. Mesmo assim, permito-me uma platitude que nos impõe reconhecer que é evidente que algo cheira muito mal no reino da Dinamarca.
Veja só: os indivíduos que tocaram o terror na Praça dos Três Poderes são inegavelmente ignaros. Afoitos, aflitos e desesperados. “Galileus”, como diria o último apóstolo. São lunáticos, que não passam de mão de obra essencialmente uberizada do bolsonarismo. São aqueles que figuram na base da pirâmide que sugeri acima.
Mas o que veio depois das tormentas?
Uma inegável instabilidade imensa que jogou o presidente Lula da Silva, a primeira-dama Janja e a cadelinha Resistência no corner.
Note bem: como explicar que a mais pesada estrutura institucional de um país importante como o Brasil se deixa violentar pelo primeiro aventureiro? A resposta a essa pergunta não joga água limpa no moinho do otimismo ambiente tampouco ameniza o mau-cheiro que aturde a todos.
Segunda questão: como justificar o bate-cabeça entre Brasília (Ministério da Justiça), Rio de Janeiro (Clube Militar) e Araraquara (onde estava o presidente) sobre a instauração de uma Garantia da Lei e da Ordem ou de uma intervenção setorial?
Terceira questão: até que ponto é razoável que o chefe do executivo do Distrito Federal, e, portanto, alguém que passou pelo sufrágio universal, seja sumariamente afastado da função pelas mãos ligeiras de um ministro do Supremo Tribunal Federal?
Quarta questão: não sei se você teve acesso à decisão do ministro Alexandre de Moraes em relação aos incidentes daquele domingo. A decisão dele vai contida no Inquérito 4.879 e instrui, essencialmente, a “Imediata desocupação de todos os prédios públicos federais em todo o território nacional, e dissolução dos atos antidemocráticos realizados nas imediações de quartéis e outras unidades militares, valendo-se para tanto do uso de todas as forças de segurança pública, inclusive dos Estados da Federação e do Distrito Federal.”
A primeira parte – “imediata desocupação de todos os prédios públicos federais em todo o território nacional” – parece irrepreensivelmente perfeita. E por razões já demasiado evidentes. Mas o que dizer da sequência onde se decide pela “dissolução dos atos antidemocráticos realizados nas imediações de quartéis e outras unidades militares”? Detenhamo-nos um pouco nisso. Primeiro: o que são atos antidemocráticos? Segundo: eram todos antidemocráticos os atos promovidos nas imediações dos quartéis? Terceiro: é razoável a desmobilização de dependências privadas que acomodam as aglomerações bolsonaristas? Como um ministro do Supremo Tribunal Federal determina algo tão violentamente desabonador dos direitos fundamentais de ir e vir, livre manifestação e protesto sem a mínima contestação ou problematização da opinião pública nem dos próprios parlamentares, aclamados representantes do povo?
Quinta questão: foi bonita, simbólica e forte a marcha ao Supremo Tribunal Federal realizada pelo presidente Lula da Silva acompanhado dos governadores e ministros da Corte. Mas para onde foi e onde está o presidente da República desde então? O homem sumiu...
Eu poderia seguir inserindo questionamentos. Mas, por estes poucos, já se percebe o quanto tudo cheira mal. Muito mal. E cheira pessimamente por uma única e simples razão: o rompimento do “acordo não escrito entre cavalheiros” pela redemocratização.
Explico.
Um presidente da República de um país-continente, sério, importante, diverso, dinâmico e relevante no plano internacional como é o Brasil não cabe num cárcere. Nos Estados Unidos ou na França já se matou ou tentou matar o presidente da República. Também já se ameaçou prender. Mas nunca se prendeu. Nunca. O caso do Watergate do presidente Nixon, o affaire Monica Lewinsky do presidente Clinton ou os “empregos fictícios” do presidente Jacques Chirac eram motivos de sobra para que cada um desses nobres senhores fizesse visitações em pernoites ao submundo das repartições prisionais de suas repúblicas. Mas o “acordo de cavalheiros” em seus países é para valer. Isso que o jornalista Pepe Escobar ajudou a popularizar no vocabulário político brasileiro como deep state [estado profundo], é uma verdade insofismável nesses países. No Brasil, claramente, ainda não.
Permita-me sumarizar, rapidamente, o caso da França sob o general Charles De Gaulle.
Veja só, a França depois de 1940 estava fadada à irrelevância e o general De Gaulle a restaurou. Mas por que rememorar tudo isso? Rememoro para, talvez, muito humildemente sugerir aos identitários de plantão no governo ou fora dele que leiam menos Chimamanda e mais Maquiavel. Nada contra Chimamanda. Mas deixem, por favor, essa literatura para dias calmos. Os dias de hoje são de desespero. Note bem, o general De Gaulle só conseguiu fazer o que fez por ter mobilizado toda a estrutura mental e espiritual desses homens de Estado inspirados no pragmatismo realista saído de Maquiavel, Hobbes, Locke e afins. Numa passagem marcante de sua definição de interesse nacional, ele, o general, aduziu o seguinte: em primeiro lugar a França, em seguida o Estado e ao final o Direito. Essa hierarquização de prioridades é que permitiu, essencialmente, a França deixar a irrelevância e voltar a ser a França depois de 1940. Ou seja, em nosso caso: primeiro o Brasil, em seguida o aparato burocrático brasileiro projetado como Estado e, por fim, o Direito.
O presidente Lula da Silva só conseguiu fazer o que fez em seus dois mandatos do início deste século porque levou às últimas consequências essa métrica. E não foi ao acaso que o embaixador Rubens Ricupero, claramente o mais relevante diplomata brasileiro de sua geração, notou muito argutamente que o presidente Lula da Silva, que transferia o cargo para a sua sucessora, só tinha paralelo no general Charles De Gaulle.
O que se passou no Brasil depois de Lula I e II?
A Operação Lava Jato hipertrofiou a presença do Judiciário no cotidiano dos demais poderes assim como na alma do Estado. Inverteu-se a pirâmide, e cometeu-se o maior crime de lesa-à-pátria numa democracia que foi a prisão do presidente Lula da Silva em 2018.
Essa situação precisa ser dita, redita e novamente dita.
O trauma causado pela prisão do presidente da República é insofismável. País sério não prende presidente da República. Ponto.
O impeachment do presidente Collor de Mello e o da presidente Dilma Rousseff foram, ambos, à sua maneira, frágeis. Basta uma leitura mais detida das peças de convicção de um e outro casos. Mesmo frágeis e, portanto, muito contestáveis, eles não causaram danos maiores ao andamento estrutural da política brasileira. A prisão do cidadão, do ator político e do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, maculou indelevelmente a honra dos cavalheiros que fizeram a redemocratização e, hoje, transitam taciturnos por aí. Ou seja, diferentemente do que bem argumenta o importante sociólogo mineiro Leonardo Avritzer, com toda a vênia, o movimento “pendular” talvez não sirva para abarcar e explicar totalmente o que ocorreu no Brasil em 2014-2018. Todas as manobras que conduziram à prisão do antigo metalúrgico do ABC e retirante de Garanhuns arrebentaram a massa puntiforme do pêndulo. O pêndulo se inutilizou. Não existe mais. E poderíamos seguir discutindo isso longamente.
Primeiro a prisão, depois a soltura.
Como suportar uma estrutura de Direito que faz o que fez e segue incólume? Quem vai reparar os 580 dias de tormento e lamento, mais que do prisioneiro, de uma nação inteira mobilizada na Vigília Lula Livre diante da carceragem da Superintendência da Política Federal no Paraná ou em vigília silenciosa na solidão de seus pensamentos absortos pela perplexidade diante de tamanha brutalidade? Quem pode suportar que os responsáveis diretos por toda essa, com o perdão da palavra, pantomima sigam livres, elegíveis e eleitos deputados e senadores e ninguém, com verdadeira capacidade de arbitrar, se levanta? Que país é este?
A ausência de reparação e a impossibilidade de remediação estão no fundamento de toda a onda de hostilidade e suspeição que submerge o país e que vai seguir nos assombrando. Sua pergunta era sobre os riscos da “razão bolsonarista” para a democracia brasileira. Sendo curto depois de ter sido longo, acredito que ou bem reconstituímos “o acordo não escrito entre cavalheiros” pela redemocratização ou estamos fadados a uma agonia sem fim. E aqui me permito ser, talvez, fortemente dramático: sem uma reconstituição dos pactos pela redemocratização é muito provável que surjam movimentos muito piores e mais letais que o bolsonarismo.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Daniel Afonso da Silva – Quero reafirmar que a “razão bolsonarista” veio para ficar e tende a se proliferar com ou sem o capitão e a sua família. E, por fim, quero desejar que os nossos dias sejam bons.