A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado analisa o surgimento e as consequências do bolsonarismo num país com as características do Brasil.
A entrevista é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 26-10-2022.
Em meio aquela que está sendo definida como a eleição mais importante da história do Brasil desde a redemocratização, em 1985, estudiosos e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento têm se esforçado para compreender a nova força política que emergiu com vigor no País nos últimos anos.
Liderada por um ex-capitão do Exército, com carreira militar pífia seguida de quase 30 anos de mandato como deputado federal igualmente inexpressivos, Jair Messias Bolsonaro em poucos anos se tornou um importante líder político de uma parcela significativa da sociedade brasileira. Sua liderança hoje é tão relevante ao ponto de rivalizar uma disputa eleitoral acirrada contra Luiz Inácio Lula da Silva, cujo protagonismo na cena política do País tem sido moldado há mais de 40 anos.
Para tentar entender a ascensão da extrema-direita no Brasil e o bolsonarismo, fenômeno político que em poucos anos está fazendo desaparecer a chamada direita democrática, o Sul21 conversou com a antropóloga e cientista social Rosana Pinheiro-Machado. Professora titular da University College Dublin, na Irlanda, ela tem se dedicado a dirigir o WorkPoliticsBip, laboratório que investiga o nexo entre precariedade e extrema-direita no Sul Global.
Ao investigar e refletir sobre o crescimento da extrema-direita no mundo pelo olhar do Sul Global, Rosana rechaça o apelido de “Trump dos Trópicos” dado a Bolsonaro. Para ela, o impacto de uma figura como o atual presidente num país com a história do Brasil, forjada em séculos de escravidão e muita violência, se difere completamente do que representa a extrema-direita nos Estados Unidos ou na Europa. O contexto é outro. E o contexto muda tudo, analisa a pesquisadora.
“Se a gente pensar que o Bolsonaro é um ‘Trump dos Trópicos’, a gente não está pensando nas consequências, no Brasil, onde a democracia é muito mais frágil. As consequências de uma extrema-direita aqui são muito mais violentas. O que acontece no Brasil em termos de gênero, perseguição de professores, o que está acontecendo na Amazônia, é incomparável. Talvez o Brasil seja o caso mais radical hoje da extrema-direita no mundo”, analisa Rosana.
Por que você não acha correto chamar Bolsonaro de “Trump dos Trópicos”?
Isso faz parte de uma agenda de pesquisa de pensar a extrema-direita sob o viés do Sul Global. Toda a literatura acadêmica sobre a extrema-direita tende a pensar o tema pelo que vinha acontecendo no leste europeu e depois pelo Trump e o Brexit. A eleição agora na Suécia e na Itália leva isso a outro patamar, mas é sempre o ponto de vista europeu.
O problema é que quando a gente pega a expressão “Trump dos Trópicos”, a gente está pensando que o Bolsonaro é uma variação de algo que acontece nos Estados Unidos. Concordo sobre a importância de entender tudo em que Bolsonaro se inspira e copia, tanto do Trump como dos think tanks dos Estados Unidos, todo o ecossistema americano.
O problema, sob a perspectiva do Sul Global, é que o bolsonarismo tem impactos muito mais violentos se a gente pensar que é uma continuação do processo histórico brasileiro de autoritarismo e do conservadorismo. A democracia foi exceção por 40 anos, mas com o conservadorismo e o autoritarismo entranhado na alma das pessoas, e a gente fica revivendo uma continuidade com novas roupagens de um processo histórico. Claro que com novas roupagens tecnológicas e ideológicas muito mais ferozes.
Mas se a gente pensar que o Bolsonaro é um “Trump dos Trópicos”, a gente não está pensando nas consequências, no Brasil, onde a democracia é muito mais frágil. As consequências de uma extrema-direita aqui são muito mais violentas. O que acontece no Brasil em termos de gênero, perseguição de professores, o que está acontecendo na Amazônia, é incomparável. Talvez o Brasil seja o caso mais radical hoje da extrema-direita no mundo.
O Brasil é um país fundado em 300 anos de escravidão, ditaduras, muita violência, e apesar disso se criou a ideia do povo amistoso. A gente se enganou com essa ideia e Bolsonaro surge para dar voz ao sentimento violento de uma parcela da população que nunca deixou de existir?
A gente acreditou e vendeu a ideia de democracia racial e a exportou. E isso vem num processo de constituição da nação brasileira de apagamento da violência, de apagamento de uma história que é feita na escravidão, no estupro de mulheres negras, na tortura de homens negros e no dizimamento indígena.
Alguns elementos dessas populações, principalmente negras, foram apropriados como elementos de cultura nacional, desde a era Vargas, mas sem fazer a devida reparação histórica. A gente pega um elemento da cultura e transforma isso num processo de pura violência, que é o apagamento da própria violência. O Brasil sempre dizimou a população indígena, é um dos países que mais mata jovens negros no mundo, é o país que tem o quarto maior número de feminicídios no mundo e é o país que mais mata pessoas trans no mundo. E sempre foi isso.
E o Bolsonaro representa essa parte do conservadorismo que tem uma identidade muito forte, e do autoritarismo, porque são as duas coisas juntas. E cria esse novo movimento que hoje está muito coeso e que, enfim, nunca foi sobre democracia racial.
É possível incluir nessa análise a falta de uma Justiça de Transição no processo de redemocratização do Brasil nos anos 1980 e 1990? Ao contrário de países vizinhos, o Brasil nunca puniu os responsáveis pelos crimes da ditadura, o próprio Exército nunca foi responsabilizado e até hoje vigora a ideia de que os militares são eficientes.
Sim, 100%. É muito diferente da memória da ditadura que se tem no Chile e na Argentina, por não ter feito um processo de Justiça de Transição. Isso permite que a memória seja apagada, que é o mais grave, permite que milhões de pessoas no Brasil achem que a ditadura foi boa ou ‘não foi nada disso’. E isso se reflete na falta de currículos de como é ensinada a ditadura, porque milhões de pessoas não estudaram isso.
Não foi um fato punido, em que as pessoas foram trabalhadas como criminosas. Então se faz uma transição em que tudo é apagado, a gente faz as pazes, todo mundo recebe anistia e o impacto disso vai ser uma visão idealizada da ditadura militar. Ou simplesmente apagada. E isso faz com que o atual presidente, no dia em que vota para o impeachment (de Dilma Rousseff, em 2016), diga que faz em nome do [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi um dos torturadores mais perversos da história do Brasil.
Muitas pessoas nas periferias achavam que só o Exército poderia trazer ordem para o País de novo. E não eram pessoas ligadas à família de militares, eram pessoas que achavam isso mesmo, às vezes até no sentido de trazer valores que são positivos em termos de ser contra a violência. E isso abriu margem para o novo militarismo.
Assim como na ditadura, o inimigo hoje também é o mesmo, o comunismo. Como se lida com isso em 2022?
É uma obsessão que as pessoas têm, uma coisa arraigada, um medo desesperado em nome de uma ditadura comunista e, em nome disso, aceitando outras formas de ditaduras que são sanguinárias e que fazem exatamente o que as pessoas teriam medo numa ditadura comunista. A ameaça do comunismo é uma mentira, mas a ameaça do fascismo é uma realidade. Isso no fundo reflete o pavor dos princípios mais igualitários numa sociedade calcada no autoritarismo e numa lógica extremamente individualista. E também o velho horror aos pobres, porque o comunismo é a fantasia de que todo mundo vai ser pobre.
As formas de comunicação hoje mudaram radicalmente e estão no centro da disputa política, com o bolsonarismo sendo muito eficiente. Como enfrentar essa nova realidade e os influenciadores nas redes sociais?
Participei de um seminário na embaixada da Espanha chamado “Desafios da comunicação política”, com os maiores especialistas do mundo, e ninguém sabe como fazer. A extrema-direita sempre teve, de alguma maneira, o monopólio dessa comunicação porque a lógica autoritária e simplista age por medo e fake news. O rádio teve um papel fundamental e ainda tem. E mesmo que o rádio não seja bolsonarista, é o dia inteiro noticiando problema, morte, assassinato, roubo e aquilo vai gerando um ódio na pessoa, uma raiva do mundo. E as redes sociais elevaram isso numa potência inimaginável, com a desinformação descarada como projeto e numa evolução muito rápida, porque a gente não conseguiu vencer as fake news do WhatsApp.
E o ecossistema vai mudando por diferentes redes. Podcast, TikTok, Instagram… não era decisivo, nem existia tanto. E a gente está correndo atrás. A tua pergunta sobre como fazer… eu não sei, a gente sempre diz que tem que disputar, tem que ser um projeto contínuo da esquerda, não só durante a eleição. O mundo não vai ser mais como era antes e a gente vai ter que aprender.
Alguns defendem que o campo progressista use os mesmos métodos, o que lhe parece?
Sou absolutamente contra a ideia de copiar as táticas deles, tenho medo que isso aconteça. A gente vê algumas pessoas defendendo isso em nome de um “bem maior”, mas isso é a lógica deles, porque eles também acreditam que é para um “bem maior”. Existe a importância de disputar as redes e regulamentar as redes, no sentido de haver algum controle sobre conteúdos violentos e criminosos. Não pode neonazista falar como fala hoje.
Também tem fatores socioeconômicos. Tem que avançar para uma sociedade com maior distribuição de renda e igualdade, com menos desigualdade para que as pessoas sejam menos contagiadas. Esse fenômeno veio para ficar, não tem como parar. Tem que transformar a sociedade para que as pessoas sejam menos vulneráveis. Todas as pesquisas do mundo mostram que quanto mais desigualdade, mais penetração da extrema-direita.
Isso se relaciona com a impressão de que nada “cola” no Bolsonaro, não importa o que ele faça ou fale?
O bolsonarismo foi criando uma identidade tão forte que não é mais sobre valores, é sobre a reafirmação do seu próprio conservadorismo. Bolsonaro pode fazer qualquer coisa que as pessoas vão dizer que é mentira ou que não importa. Esse é um processo de psicologia de massas e de antropologia, de criação da identidade do “nós contra eles” que é primário na formação de estar no mundo. Se você está com Bolsonaro e você vai reafirmando, reafirmando, vai passando por diversas pautas, é sobre pertencimento, sobre um lugar no mundo e reafirmar a própria verdade.
Independente de quem vencer a eleição, tudo indica que será por uma diferença pequena e o Brasil sairá dessa eleição como uma sociedade muito fraturada. Como você analisa o futuro do País nas condições de uma sociedade muito dividida?
Acho que nos próximos anos irá se manter essa fratura, é um processo que veio para ficar, não tem o mínimo sinal da gente sair disso. O Brasil vai ser esse por muito tempo. É revolucionário o processo, no sentido de que é o fim de uma ideologia que acreditou na democracia racial.
Acho que o bolsonarismo sai até mais forte dessa eleição, mesmo perdendo, porque demonstrou ser resiliente e está cada vez mais coeso. Nunca vi a força do bolsonarismo tão forte como agora. Antes tinha um núcleo duro de 20%, agora o núcleo duro cresceu demais, é praticamente todo mundo que vota com o Bolsonaro.
Na hipótese do Lula ganhar, que com suas alianças ele consiga falar com outros setores, inclusive do empresariado, com a elite econômica, porque ele vai precisar mais do que nunca de amplas alianças para conseguir governar. Se não começar a ter melhoras muito rápidas, com resultados… e mesmo com resultados, as pessoas vão dizer que não existe o resultado. Vão ser anos muito duros. Se a sociedade avança, vão dizer que não está avançando. Assim como hoje tem uma crise econômica e se diz que não, que o País está crescendo. A gente está vivendo num mundo paralelo.