Espírito da Nova República e da Constituição de 1988: eis o que está em jogo na eleição de domingo. Entrevista especial com Rubens Ricupero

Para o diplomata, o governo de Jair Bolsonaro pôs fim a período iniciado em 1985. Num eventual segundo mandato, o objetivo seria a construção de um Estado autoritário

Foto: José Cruz | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 28 Outubro 2022

O Brasil teve dois grandes momentos no período denominado Primeira República. No primeiro, até 1930, as marcas são o coronelismo, a dobradinha do “café com leite”, como se de fato ainda não estivéssemos maduros suficientes para essa forma de governo. O segundo, extrapolando um pouco o período da Primeira República, que podemos mais ou menos demarcar entre 1930 e 1964, trouxe avanços, chegando a tocar a camada mais pobre da população. Esse momento foi, no entanto, brecado por um regime de repressão ditatorial. Para o professor e diplomata Rubens Ricupero, é somente em 1985, quando abrimos a Segunda República, que retomamos os trilhos para a consolidação de um efetivo Estado democrático. Só que a viagem dessa locomotiva teve sua velocidade reduzida nesses últimos quatro anos. “Bolsonaro põe fim ao período iniciado em 1985 com o término do regime militar e a fundação da Nova República”, constata.

É por isso que, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele avalia que uma eventual reeleição “representaria provavelmente a conclusão da obra de demolição a que Bolsonaro se referiu explicitamente, isto é, à necessidade para ele, primeiro, de demolir o que tinha sido feito pelos predecessores desde a volta do regime civil”. Assim, destaca que é preciso termos clareza do que está em jogo no pleito de 30 de outubro: “a retomada do espírito da Nova República e da Constituição de 1988, resumida em democracia crescentemente participativa, redução da desigualdade e fortalecimento do Estado de direito e dos direitos humanos”.

De outro lado, Ricupero convida a olharmos a alternativa da frente ampla, capitaneada por Lula, para além da polarização esquerda versus direita. “Não se trata, de fato, de eventual vitória de Lula, pessoalmente ou do PT, como partido. O primeiro turno deixou claro que nem Lula nem o PT possuem clara hegemonia, domínio suficiente para governar sozinhos. Sem a inclusão de Alckmin e de tudo o que representa – uma ampla coligação de forças democráticas de centro e centro-direita –, é provável que Lula teria perdido já no primeiro turno”, avalia. “Aliás, o próprio Lula reconhece essa realidade ao se cercar visivelmente de Marina Silva e Simone Tebet, deixando na sombra figuras como Dilma ou gente mais identificada com a esquerda e com seu partido, que seguramente lhe custariam votos no Brasil fora do Nordeste”, completa.

Ver essas e outras tantas forças políticas juntas é focar na emergente reconstrução de um Brasil vilipendiado. Como aponta Ricupero, os desafios são muitos e, ainda, muitos de extrema urgência. “De saída, Lula precisará dissipar o medo que uma parcela da população tem dele e do PT, organizando um governo inclusivo e adotando políticas pacificadoras e prudentes. Só por meio de coligação de ampla envergadura conseguirá reconstruir, com o Congresso e os partidos principais, um relacionamento estável e responsável. Sobre essa base é que se poderá edificar uma política econômica e social de retomada do crescimento com redistribuição de renda”, indica.

Rubens Ricupero na Unisinos
(Foto: Rodrigo W. Blum | Unisinos)

Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, ocupa a Cátedra José Bonifácio, da USP. Empossado em janeiro, cabe a ele conduzir os trabalhos neste ano do bicentenário da Independência.

Diplomata de carreira desde 1961, exerceu, entre outras, as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984-1985), assessor especial do presidente José Sarney (1985-1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e do Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco. Serviu de embaixador na Itália e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, órgão da ONU, deixando o cargo em setembro de 2004, quando se aposentou como diplomata. Entre suas obras, destacamos A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017).

Confira a entrevista.

IHU – Qual sua análise quanto ao momento que estamos vivendo, nessa verdadeira guerra que tem se tornado a campanha eleitoral no Brasil?

Rubens Ricupero – O que se passa no Brasil não é original. É o reflexo, com as características particulares do país, da crise que afeta a democracia representativa nos Estados Unidos, na Europa, nas regiões de tradição política ocidental, em países tão diversos entre si como a Itália e a Suécia. As causas desse fenômeno histórico são muitas e complexas. Não existe uma explicação consensual geralmente aceita para o movimento que ainda se desenrola em torno de nós, sem que se vislumbre aonde chegará. De todo modo, a discussão da crise mundial da democracia extrapola os limites desta entrevista.

No caso do Brasil, os antecedentes imediatos, se não suas causas, datam das manifestações de 2013, da falta de resposta adequada à insatisfação revelada pelas manifestações com um sistema incapaz de fornecer à população serviços básicos de educação, saúde, transporte público e segurança; a incapacidade da eleição de 2014 de atender ao anseio por um sistema político menos disfuncional; os erros de política macroeconômica que conduziram à grave recessão de 2015-2016; o aumento do desemprego, o impeachment de Dilma Rousseff. O encadeamento de tantos desastres criou condições que possibilitaram à operação Lava Jato desfechar um golpe talvez fatal na confiança nas instituições democráticas e no Estado de direito.

Na frustração dos anseios de mudança, a Lava Jato adquiriu dimensões que um processo policial-judiciário nunca teria atingido em situação normal. Sua duração exagerada, mais do dobro do que as Mãos Limpas, na Itália, provocou, durante mais de quatro anos, a desmoralização da política, dos partidos, do Congresso, do sistema judiciário, dos políticos em geral, com efeitos que perduram até hoje, como se viu com a recente eleição ao Congresso dos protagonistas da operação. Subestima-se, entre nós, o impacto devastador da Lava Jato, mediante o efeito cumulativo de denúncias incessantes, de métodos tóxicos espetaculares de oitenta operações quase semanais, o espetáculo de empresários e políticos algemados ocupando boa parte do noticiário dos jornais televisivos, o apoio praticamente unânime da imprensa.

Cólera reprimida, raiva impotente e a verdadeira guerra

Ainda não se percebe na justa medida como essa operação fora de controle teve a responsabilidade maior em desencadear a cólera reprimida, a raiva impotente dos setores médios da sociedade, finalmente, a violência do que a pergunta chama de “verdadeira guerra” da campanha. Esquece-se que operações muito mais curtas e menos graves como as campanhas anticorrupção, de Carlos Lacerda, e da “banda de música”, da UDN nos anos 1950 e 1960, foram invariavelmente acompanhadas por explosões trágicas de cólera e violência que levaram ao suicídio de Getúlio Vargas, às quarteladas de Aragarças e Jacareacanga no começo do governo JK, concorrendo também para o golpe militar de 1964.

A essas causas conjunturais, deve-se acrescentar, de um lado, o impacto desestabilizador das mídias digitais no sentido de permitir o recurso maciço a técnicas de distorção cognitiva da realidade muito bem exploradas por figuras sem nenhum compromisso com a verdade como Trump e Bolsonaro.

Polarizações

Do ponto de vista estrutural de longo prazo, o primeiro turno confirmou a tendência da polarização crescente do eleitorado entre camadas da sociedade de renda muito baixa e os setores menos vulneráveis ou mais prósperos. Essa divisão encontra expressão geográfica na nítida diferença de comportamento eleitoral entre regiões mais pobres, como o Nordeste e o Norte, de um lado, e o Sul, o Centro-Oeste do agronegócio, o interior de São Paulo, de outro, afetando, inclusive, a consciência de uma identidade nacional unificada e solidária.

IHU – Como compreender o flerte que parte do eleitorado de Jair Bolsonaro parece ter com pautas que atentam contra o Estado democrático de direito?

Rubens Ricupero – A resposta básica se encontra no que ficou dito na primeira pergunta: insatisfação com governo, congresso, Justiça, sistema político-partidário, cada vez mais disfuncionais, no sentido de acumulação de privilégios sem a contrapartida de prestação de serviços, agravada pela percepção de generalizada corrupção difundida pela Lava Jato.

IHU – Afinal, o que está em jogo nas eleições de 2022?

Rubens Ricupero – Em poucas palavras: a retomada do espírito da Nova República e da Constituição de 1988, resumida em democracia crescentemente participativa, redução da desigualdade e fortalecimento do Estado de direito e dos direitos humanos. De certo modo, a eleição de Bolsonaro põe fim ao período iniciado em 1985 com o término do regime militar e a fundação da Nova República. Sua eventual reeleição representaria provavelmente a conclusão da obra de demolição a que Bolsonaro se referiu explicitamente, isto é, à necessidade para ele, primeiro, de demolir o que tinha sido feito pelos predecessores desde a volta do regime civil.

Essa demolição seria a condição prévia para, num segundo mandato eventual, construir um Estado autoritário, começando pela conclusão da obra já avançada de desvirtuamento da Constituição de 1988 e do seu sistema de garantias de direitos individuais e sociais.

IHU – Uma vez saindo vencedor nas eleições de 30 de outubro, quais serão os desafios imediatos da coalizão articulada por Lula?

Rubens Ricupero – Gostei da formulação da questão: não se trata, de fato, de eventual vitória de Lula, pessoalmente ou do PT, como partido. O primeiro turno deixou claro que nem Lula nem o PT possuem clara hegemonia, domínio suficiente para governar sozinhos. Sem a inclusão de [Geraldo] Alckmin e de tudo o que representa – uma ampla coligação de forças democráticas de centro e centro-direita –, é provável que Lula teria perdido já no primeiro turno.

Mesmo com essa coalizão, a campanha vem demonstrando o grau de divisão do país quase que rachado ao meio. Aliás, o próprio Lula reconhece essa realidade ao se cercar visivelmente de Marina Silva e Simone Tebet, deixando na sombra figuras como Dilma ou gente mais identificada com a esquerda e com seu partido, que seguramente lhe custariam votos no Brasil fora do Nordeste. A conclusão aponta claramente para a necessidade de consolidar essa ampla aliança de forças democráticas além das eleições, como pré-condição de um terceiro e efetivo governo Lula.

Mais uma vez não se trata de algo inédito: já no seu primeiro governo, em 2003, Lula se cercou de personalidades como Henrique Meirelles, Roberto Rodrigues, Furlan e outros, alargando muito o alcance de seu apelo original. Diante da polarização e da radicalização atuais, muito mais graves do que vinte anos atrás, ele terá praticamente de reconstruir, dentro do seu governo, o centro político do país, destruído na campanha, se quiser readquirir condições de tratar com o Congresso e governar efetivamente.

IHU – Como rearranjar um país fraturado e, ainda, assegurar o Estado democrático e a recuperação econômica e social?

Rubens Ricupero – O desafio se assemelha ao enfrentado pelo primeiro governo civil depois do regime militar. Fiz parte, como assessor do Dr. Tancredo Neves e, em seguida, do presidente José Sarney, daquela equipe. A prioridade nº 1 então, e agora, consistiu em unificar o país, reduzir a polarização, reconstruir a democracia e os direitos humanos por meio da elaboração da Constituição de 1988.

Em seguida, foi preciso enfrentar a “herança maldita” deixada pelos militares: inflação fora de controle, crise da dívida externa, atendimento de expectativas de população empobrecida. A primeira parte do desafio foi um êxito que se concluiu com a promulgação da nova Constituição. A segunda tarefa se prolongou por vários governos até a solução do Plano Real e do fim da crise da dívida no governo Itamar Franco.

Desta vez, será parecido. De saída, Lula precisará dissipar o medo que uma parcela da população tem dele e do PT, organizando um governo inclusivo e adotando políticas pacificadoras e prudentes. Só por meio de coligação de ampla envergadura ele conseguirá reconstruir, com o Congresso e os partidos principais, um relacionamento estável e responsável. Sobre essa base é que se poderá edificar uma política econômica e social de retomada do crescimento com redistribuição de renda.

IHU – Do ponto de vista econômico, que caminhos o senhor vislumbra para o Brasil a partir de 2023?

Rubens Ricupero – Haverá problemas imediatos, de curto prazo, sobretudo o desequilíbrio fiscal originado pela gastança do governo atual para tentar se reeleger e questões de prazo médio e longo. A prioridade maior será para o Executivo recuperar do Congresso o poder constitucional de elaborar o orçamento como principal ferramenta da política econômica. Terá de reduzir ou eliminar significativamente o terreno excessivo cedido pelo enfraquecido governo Bolsonaro à avidez do Centrão.

Para isso, os primeiros meses de governo serão decisivos para o reexame de itens como as emendas de relator, as emendas secretas e todas as mudanças que deram aos congressistas do Centrão o poder de lançar mão, sem transparência nem controle, de quase toda a pequena parcela do orçamento livre de vinculações. Em vez de desperdiçar esses preciosos recursos em projetos municipais sem racionalidade econômica, será necessário comprometer os parlamentares com despesas que tragam retorno em termos de crescimento e justiça social, como foi, por exemplo, o Programa de Metas de Juscelino.

Com a inflação relativamente controlada e apoiado na política conduzida pelo Banco Central, o novo governo terá condições de estabilizar a situação macroeconômica e gerar condições para a volta de investimentos produtivos.

IHU – Gasto social ou austeridade econômica, teto de gastos. São realmente essas duas saídas que temos? Ou seria possível conceber outros caminhos?

Rubens Ricupero – Esse binômio representa uma simplificação reducionista da complexidade do desafio econômico. Pressupõe que o novo governo tenha de atuar dentro da camisa de força das características atuais, o que não é o caso. Para tanto, o futuro governo deve preparar antes da posse um plano que possibilite:

1º) reforma tributária baseada em propostas já amadurecidas e inspiradas na unificação dos cinco impostos cumulativos incidindo no consumo e sua substituição por um imposto de valor agregado;

2º) mudança do imposto de renda a fim de torná-lo mais progressivo, reduzindo a carga dos contribuintes de renda menor e elevando a dos que ganham mais;

3º) redução substancial com vistas à eliminação de isenções e privilégios fiscais;

4º) revisão da não taxação de dividendos.

Tais mudanças permitiriam reduzir a exagerada concentração de renda no topo da pirâmide. Também dariam fôlego à arrecadação, aliviando, ao mesmo tempo, setores exageradamente sacrificados pela carga tributária como a indústria de transformação.

Do lado da despesa, é inadiável um esforço para racionalizar e unificar, no possível, os numerosos programas sociais. A iniciativa criaria condições para concentrar o gasto nos programas direcionados aos setores mais vulneráveis: mulheres pobres chefes de família, crianças, beneficiários do Bolsa Família. Tornaria viável pagar benefícios maiores a quem mais precisa. O mesmo empenho de racionalização da despesa deveria se aplicar aos gastos com educação e a todos os demais setores sociais.

IHU – Diante da crise climática, muitas vozes têm surgido pelo mundo para apontar que é preciso concebermos outra economia. Como o senhor vê essa perspectiva? Que economia seria essa e, nesse sentido, que autores poderíamos ler para nos inspirar?

Rubens Ricupero – O aquecimento global impõe a adoção pelo mundo inteiro de economia de baixo carbono, como etapa para a redução quase total da dependência em relação aos combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás em menor escala). Os países que saírem na frente terão vantagem sobre os retardatários. O Brasil apresenta condições favoráveis para ser um dos primeiros a construir uma economia verde de produção e consumo por duas razões principais.

A primeira decorre da circunstância de que o país já se distinguia antes por um grau bem menor de dependência da energia fóssil por possuir uma matriz energética na qual as fontes de energia limpa e renovável ocupam nível elevado, tanto a mais tradicional, da eletricidade gerada por usinas hidrelétricas, quanto as inovadoras, em especial a eólica, a solar, a oriunda de biomassa (etanol da cana de açúcar), no futuro o hidrogênio líquido ou gasoso etc. Essa característica faz com que seja muito mais viável, e de menor custo para o Brasil, realizar a transição para a energia verde do que para a imensa maioria de países mais dependentes em particular do carvão, caso da China, da Índia, da maioria das economias ocidentais.

A segunda razão tem a ver com a agropecuária e a Amazônia. A parcela maior da contribuição negativa do país em termos de emissão de gases de efeito estufa vem desses dois setores, agro e Amazônia. Em ambos, dispomos de soluções técnicas e de gente capacitada para aplicá-las: o programa Agricultura de Baixo Carbono – ABC, os projetos de associação agricultura-pecuária-floresta, o plano de controle e repressão ao desmatamento adotado com êxito pela ministra Marina Silva e a facilidade de reatualizar o plano, de recriar as equipes do Ibama e do ICMBio que foram desmobilizadas pelo atual governo, além dos recursos disponíveis do Fundo Amazônia, mais de três bilhões de reais, não utilizados pelo governo Bolsonaro desde sua posse.

Com base nessas condições, o novo governo deveria sinalizar desde o começo a mudança radical da política ambiental no sentido de retomar o plano de prevenção e combate do desmatamento, de destinar recursos muito maiores do Plano Safra ao programa ABC, ao reflorestamento e medidas, como as elencadas no relatório do Observatório do Clima, para fazer do Brasil a única grande economia a atingir não só a neutralidade de carbono, mas o estatuto de carbono negativo, isto é, de absorver mais carbono do que emite, em benefício para a redução do aquecimento global. Criaria igualmente uma situação muito favorável à atração de investimentos de fundos financeiros para obras de infraestrutura verde, para o mercado de certificados de carbono, para projetos de manutenção da floresta em pé e reflorestamento.

Leituras

Quanto às leituras, há hoje muita coisa publicada sobre a transição para a economia verde, mas, em minha opinião, melhor que livros de caráter teórico é acompanhar os relatórios dos organismos da ONU especializados em meio ambiente, o PNUMA, por exemplo, ou os relatórios periódicos do IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudança do Clima. Também vale a pena conhecer as políticas e legislações adotadas nessa área pela União Europeia, referência em matéria de vanguarda ambiental.

IHU – E o senhor, o que tem lido? Por que a opção por essas leituras e o que elas têm lhe dito?

Rubens Ricupero – Como escrevo o tempo todo, tenho tido menos horas vagas para leituras que não se relacionam diretamente com o que escrevo: relações internacionais, história diplomática, problemas de geoestratégia etc. Neste ano, ocupo a cátedra José Bonifácio da USP, que concentrou suas atividades numa reflexão crítica sobre o bicentenário da independência.

Como resultado dos trabalhos da cátedra, lançamos em setembro, pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), o livro Balanço e desafios do Brasil no Bicentenário da Independência, com ensaios de vários autores, uma introdução minha sobre o sentido de comemorar o bicentenário e o texto, até agora inédito no Brasil, da última conferência pronunciada em Paris por José Guilherme Merquior sobre a “história dos sonhos” e projetos que os brasileiros sonharam para o país, livro disponível gratuitamente no site da EDUSP e do Instituto de Relações Internacionais da USP.

A obra, organizada pelo professor Ricupero, pode ser baixada gratuitamente aqui 

Imagem: divulgação

Entre os livros que li para a preparação dos trabalhos da Cátedra e do livro, destaco a magnífica obra de José Murilo de Carvalho, intitulado Cidadania no Brasil: o longo caminho (Civilização Brasileira, 2021), e a notável tese de Pedro Herculano de Souza sobre A desigualdade vista do topo (Hucitec, 2018).

A obra de José Murilo de Carvalho (esquerda) é uma das recomendações de leitura do professor Ricupero para esses tempos.
A outra é a tese de Pedro Herculano de Souza | Imagem: divulgação

Além da introdução do livro, redigi vários ensaios: O Itamaraty como organização produtora de conhecimento, para edição comemorativa dos Cadernos do Centro de História e Documentação Diplomática – CHDD, da Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG; Relação entre Estado e desigualdade no Brasil; o texto da conferência De Napoleão a Putin: o Brasil num mundo em constante transformação, no ciclo 200 Anos do Brasil da Academia Brasileira de Letras coordenado por José Murilo de Carvalho; o texto em inglês Not a Happy Anniversary for Brazil, conferência pronunciada na abertura do ciclo sobre o bicentenário organizado pela Universidade de Yale; o texto igualmente em inglês Is the War in Ukraine a Threat to the Survival of the United Nations?, além de escritos menores. Como se vê, não me sobra muito tempo para leituras sem relação direta com o que escrevo.

Espiritualidade, teologia, religião, história

Quando posso, leio livros de espiritualidade, teologia, religião, história. Terminei há dias a obra do teólogo suíço Hans Urs von Balthasar sobre a Meditação cristã. Recentemente li por prazer, não por motivos profissionais, Russia Against Napoleon, do historiador inglês Dominic Lieven; 1812 Napoleon’s Fatal March on Moscow, de Adam Zamoyski; Passeport Diplomatique, de Gérard Araud.

Estou lendo mais ou menos ao mesmo tempo Penser la Révolution Française, de François Furet; La Vie de Sainte Therèse d’Avila, de Marcelle Auclair; Le premier homme, de Albert Camus; I Remember: An Autobiographical Interview, de Karl Rahner; Jésus Voici l’homme, de Bernard Sesboüé, SJ; Deus onde estás, livro ainda inédito de meu querido amigo, o grande teólogo brasileiro Mário França Miranda, SJ.

Bernard Sesboüé está entre os teólogos lidos pelo professor Ricupero 

Imagem: divulgação

Não quero dar a impressão de que sigo um plano determinado com firmeza. Na verdade, leio de modo intermitente e com frequência interrompo e deixo de lado um livro, durante meses ou para sempre. Nem sempre consigo chegar ao fim das leituras que começo. Sinto saudades da época em que lia mais ficção e poesia, de que sempre gostei muito. O último grande ficcionista que foi uma revelação para mim foi o escritor alemão W. G. Sebald, morto prematuramente num acidente na Inglaterra. Quando o descobri, li com paixão o que tinha escrito, mas foi há alguns anos. No passado, lia muito romances policiais como literatura de evasão, sobretudo Georges Simenon. Há muito, porém, que não descubro um bom escritor nessa área. Agora que meu trabalho na cátedra começa a diminuir, planejo voltar à literatura.

No país de Balzac

O que me dizem os livros? Em geral, me fazem descobrir mundos novos, quando são bons. Uma vez um colega me contou que ouviu por acaso, numa cerimônia no velho Itamaraty do Rio de Janeiro, a conversa de dois diplomatas aposentados que não se viam há muito tempo. Um perguntou ao outro o que andava fazendo e ele respondeu: “Estou agora morando no país de Balzac”. Gostei da expressão porque era assim que me sentia. Durante anos, habitei também, sucessivamente, no país de Balzac, de Maupassant, de Pirandello, de Charles Dickens, de Joseph Conrad, de Thomas Mann, e de outros, sem esquecer o Monteiro Lobato de minha infância pelo qual tinha tanto entusiasmo que aos onze anos de idade, em 1948, acompanhei sozinho, a pé, seu enterro em São Paulo.

Gostaria de recuperar esse entusiasmo dos velhos tempos. Os livros de história me trazem prazer e informação nova, os de religião ajudam a alimentar minha fé no Evangelho de Jesus Cristo.

IHU – Como manter a esperança diante do Brasil e do mundo que temos vivido por esses tempos?

Rubens Ricupero – É difícil dizer o que está pior, mais sombrio, de futuro mais ameaçador, se o Brasil ou o mundo. Ultimamente, tendo a achar que é o mundo. No Brasil, temos a esperança de, no segundo turno da eleição, iniciar um ciclo mais alentador de nossa história, começar o terceiro século independente com ânimo de reduzir a desigualdade em todas suas formas – de renda, de riqueza, de discriminação de raça e cor, de gênero etc. – de edificar uma sociedade mais fraterna e solidária. No mundo, vejo mais razões de inquietação que de alento.

Não há sentido, creio, em ser otimista ou pessimista sobre o futuro. O que é a esperança em termos não religiosos? É a confiança na possibilidade de que o futuro pode ser melhor que o presente, como em geral acreditamos que o presente tem sido melhor que o passado. Possibilidade, nunca certeza. Precisamos da ação humana a fim de transformar possibilidade em realidade, partindo do pressuposto de que as condições do contexto externo não anulem e tornem estéril o esforço.

Não creio em nenhum tipo de determinismo histórico ou cultural, não acredito que um país esteja condenado à grandeza ou ao desastre, acho que as duas alternativas sempre existem. Também penso que nada dura para sempre, nada é irreversível, para o bem ou para o mal. Acabamos de ver nos Estados Unidos, com o governo Trump, como até uma das democracias mais antigas e sólidas do mundo pode de repente sofrer um retrocesso imprevisível. Já se tinha visto isso na Itália do fascismo (agora novamente), na Alemanha do nazismo, semanas atrás na Suécia. Assistimos ao espetáculo quase inverossímil da sucessão em poucos meses de vários primeiros-ministros no Reino Unido, outrora o modelo da democracia ocidental e motivo de inveja de todos.

Inclusão

Na situação do Brasil, além da eleição que, espero, permita refundar a democracia, o Estado de direito, a proteção dos direitos humanos, dos povos originários, da floresta e dos biomas em geral, vejo como razão crível para ter esperança o processo de inclusão de milhões de pessoas até agora excluídas da sociedade, da educação, da universidade, da saúde e que começam a ser integradas. Um exemplo é o da política das cotas que possibilitou, em poucos anos, que a porcentagem de estudantes de povos originários ou afro-brasileiros se tornassem mais de 50% nas universidades públicas.

Recordo sempre de história que sucedeu comigo quando eu era secretário-geral da UNCTAD e passava uns dias na casa de meu amigo, o ex-diretor do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus, em Bayonne. Foi em 1998 ou 1999, véspera do ano 2000, do novo século, do terceiro milênio. Discutia-se se tínhamos causas críveis para esperar que o novo milênio fosse melhor que o anterior. A primeira resposta, que nunca esqueci, foi de Camdessus, que disse:

“Creio que o futuro será melhor devido à emancipação da mulher, à circunstância de que, pela primeira vez na história da humanidade, a mulher começa a poder aspirar a ser igual ao homem em oportunidade. É como se a humanidade houvesse vivido por milênios utilizando apenas metade do cérebro e agora começa a utilizar também a outra metade.”

É o que penso igualmente:

“Como imaginar que possa ser pior que o Brasil do passado de escravidão ou do presente de exclusão, um Brasil que começa a incluir milhões de mulheres e homens até agora injustamente excluídos?”

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