Em evento promovido pelo IHU, economista Luiz Gonzaga Belluzzo é enfático: “não dá mais. O modelo atual acabou, é disfuncional. É preciso reprimir os bancos e criar gestão da economia com poder do Estado”
Com a serenidade de quem já viveu muito, passou por vários governos e crises das mais variadas naturezas, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo abre sua fala de uma maneira bem peculiar, depois de ser apresentado. “Só quem tem biografia são os grandes pensadores. Eu tenho é história de vida para compartilhar com muitos”, diz com um sorriso nos lábios e um olhar afável. Pode não parecer, mas essa sua postura tem relação direta com o tema que abordou no ciclo de palestras Economia de Francisco. Possibilidades para uma outra Economia, pois ele acredita que a economia não se resume a números e técnicas e que também é preciso escutar os sinais do tempo. Aliás, sinais que, segundo ele, o papa Francisco capta muito bem. “Ele tem lucidez e é isso que marca sua encíclica, pois busca uma economia universal que sirva aos homens”, analisa.
Professor Belluzzo em conferência durante o ciclo Economia de Francisco. Possibilidades para uma outra Economia
Não é por acaso que Belluzzo destaca a percepção do pontífice acerca de “uma economia que sirva aos homens”, pois isso revela uma posição contrária às lógicas do capitalismo que, hoje, parece muito mais se servir dos homens. Mas todos sabem que o capitalismo é uma força potente e com uma incrível capacidade de se fagocitar, virando o jogo a seu favor. Ainda, questionado por um dos espectadores se, no fim das contas, uma outra economia é possível, Belluzzo responde: “é possível e inevitável”. Para ele, o atual modelo se tornou disfuncional e o Estado deve assumir as rédeas da economia, que há muito tempo vem sendo feita pelos bancos, que usam dos seres humanos para aumentar seus ganhos.
Transformações do capitalismo foi tema da revista IHU On-Line
Assim, para rever o poder do capitalismo de nosso tempo, Belluzzo ataca diretamente a perspectiva liberal que, na sua opinião, é o que sustenta e faz crescer o modelo de uma economia financeirizada. “Além disso, no mundo todo há inconformidade com as políticas de austeridade. É outra perspectiva que está condenada, acabou”, completa. Se houve um tempo em que o liberalismo permitiu crescimento e o capitalismo superou a pobreza, isso já é superado. “O problema é que agora tudo isso ‘virou a mão’. Não adianta ficar dizendo que não se pode mudar. Isso tem que ser mudado porque, afinal de contas, mudou a mão”, defende.
A conferência de Belluzzo, intitulada Papa Francisco e a crítica ao dogma de fé neoliberal. Limites e possibilidades para outra economia, ocorreu no final de novembro. Mas a íntegra da palestra está disponível aqui.
Embora sempre muito sensível, a tese do professor Luiz Gonzaga Belluzzo não está baseada somente em sinais que capta de seus sentimentos e desejos. Ele a elabora a partir de realidades bem concretas. A erosão do modelo neoliberal, por exemplo, é percebida até mesmo por organismos internacionais que sempre foram vistos como porto seguro para essas lógicas. “Há um documento do Fundo Monetário Internacional - FMI para os países membros do G20 que aponta que houve uma mudança provocada pela riqueza financeira e ainda muito intensificada pelas políticas econômicas atuais”, aponta.
O diagnóstico, segundo o professor, é que “vivemos a financeirização que coopta os próprios mecanismos de salvamento dos bancos centrais”. Logo, o boom financeirista acaba impedindo ações de gatilhos que poderiam ser acionados em momentos de crise, pois os próprios bancos centrais estão em dificuldades.
Belluzzo ainda acrescenta que essa armadilha vem sendo percebida “pelos empresários e pelos bancos privados”. “Parece que só o Brasil não entendeu isso”, acrescenta. O resultado, segundo ele, é como se a corrida para se salvar fosse uma corrida de Fórmula 1 e o Brasil entrasse nessa disputa “numa carroça puxada a burro”. “Não, não puxada a burro, mas a burros”, ironiza. “Se a ficha caiu até para o FMI, como saber por que a ficha não caiu por aqui? Acho que na verdade nem tem ficha para cair”.
A indignação de Belluzzo não é à toa, pois demonstra que o próprio avanço tecnológico tem revelado que a máxima de que o mercado é capaz de se autorregular e resolver seus problemas é uma perspectiva superada. “Veja o próprio exemplo da Pfizer no desenvolvimento da vacina contra a covid-19. É uma empresa privada que usa o aporte de governo para desenvolver sua tecnologia”, destaca. O economista ainda destaca que essa é uma tese que pode ser aprofundada a partir dos escritos de uma colega italiana. “Ela explica muito bem em seu livro como se dá e como pode ser viabilizada essa articulação entre o Estado e as empresas. O livro se chama ‘O Estado Empreendedor’ [Recife: Portfolio, 2014]”, recomenda.
O Estado empreendedor, de Mariana Mazzucato, é uma indicação de Belluzzo (Foto: divulgação)
Se o Estado é parceiro da iniciativa privada, terá possibilidade de ser forte e capaz de agir em situações de crise. Diferente da realidade brasileira, em que a concessão de benefícios durante a pandemia, por exemplo, se dá de forma emergencial por um tempo determinado, nessas condições talvez fosse possível pensar numa renda universal. Aliás, essa está entre as mudanças emergentes na economia de nosso tempo, segundo o professor Belluzzo. “É inevitável que pensemos num programa de renda universal e, quem sabe, até em modelos arquitetônicos de cidades visando atenção para os mais pobres”, reitera.
O economista sabe que ao fazer afirmativas como essas, logo se insurgem os paladinos do ajuste fiscal, com calculadoras em punho defendendo a redução dos gastos estatais. Mas, para Belluzzo, esse é outro dogma a ser abandonado na concepção de uma nova economia. Para ele, o caminho é cada vez mais o Estado presente, especialmente na atenção à saúde e assistência. “Veja a revolta no Chile recentemente, que ocorre justamente depois da onda neoliberal e das privatizações, especialmente na previdência social”, recorda.
No entanto, mais uma vez, lamenta que a gestão econômica no Brasil parece mais uma vez estar no sentido contrário. “Será que as pessoas não veem o que se passa fora de seu país?”, questiona em tom jocoso. “Aqui no Brasil, se fala em privatizar, o governo quer privatizar. Veja o que aconteceu no caso do Amapá [em que ocorreu o apagão recentemente]. O sistema foi terceirizado para uma empresa espanhola que não gasta em manutenção”, recorda.
E se o cenário é sóbrio, com gestores econômicos amarrados na ortodoxia neoliberal, como atravessar? Já se pode ver luz ao fundo? Belluzzo é questionado por mais um espectador, que pergunta se as eleições municipais deste ano já trazem sinais sobre essa emergente mudança. “Ainda não sei, também estou tateando e tentando entender o que houve”, justifica. Ainda assim, diz que percebe “uma corrida para a política tradicional, vista como uma forma de combate aos bolsonaristas”. Isso, para o professor, fica claríssimo quando se olha para a composição das Câmaras de Vereadores, com maioria de partidos do Centrão de relações bem estreitas com o velho radicalismo de direita.
O cenário de 2022, para Belluzzo, ainda vai depender muito da forma como as forças progressistas lerão os resultados de 2020. “Não vai mais ser possível seguir com fraturas. É preciso generosidade para superar as divergências pontuais”, observa. Mas, ao mesmo tempo, não observa que esse espírito generoso não parece estar no horizonte. “Me animei com o encontro entre o Lula e o Ciro Gomes, mas já desanimei quando vejo que a individualização acaba tomando as forças progressistas”, analisa.
Ainda muito receoso sobre apontar saídas, pelo cenário atual, o professor acredita que em 2022 acabemos por caminhos mais conservadores. “E isso vai dificultar muito a transição econômica que se precisa. O que já está lá, do ponto de vista liberal, não tem mais nenhuma viabilidade. Por isso acredito que o resultado mais provável seja uma coalizão conservadora para se livrar da família Bolsonaro, mas sem avanços em termos econômicos”, conclui.
Ao longo de toda sua conferência, Luiz Gonzaga Belluzzo demonstrou como a estratégia liberal vai se afixando no Ocidente e até como trouxe frutos. Para ele, o problema é que essa perspectiva já está vencida. “Houve, por exemplo, uma busca pela valorização do dólar e isso foi importante para definir as bases do chamado neoliberalismo, a abertura financeira e de capitais em muitos países”, recorda. No entanto, o problema é que o Brasil não soube se mover em outros sentidos quando se dá o esgotamento dessas lógicas.
Do outro lado do mundo, por exemplo, a China também passa por processos similares, mas segue por outros caminhos. Ele explica que essa abertura econômica permitiu que a China tanto se abrisse como também entrasse em outros mercados. “A prática manteve a supremacia americana, mas por conta da valorização do dólar e da perda de competitividade de exportações, ocorre um déficit que vai aumentar”, explica. O resultado é a saída de muitas empresas em busca de outros lugares para suas operações. “Detroit, nos Estados Unidos, sofre muito com isso. Vai de uma região industrializada para quase uma cidade fantasma”, recorda.
O professor lembra que esse movimento vai culminar com a reforma na China nos anos 1970. “Enquanto isso tudo gera um desequilíbrio nos anos 1980 a 2000, a China vai suportar taxas de crescimento de dez vezes mais que a América, tornando-se uma das economias mais dinâmicas do mundo”, diz. E é importante que se observe como se dá essa abertura chinesa, que não se agarra a uma ideia de liberalismo, mas vai buscar soluções para seus problemas locais de olho no mercado global sem abrir mão da força do Estado. “E veja que curioso: na pandemia, os Estados Unidos importaram máscaras da China feitas pela empresa 3M, uma empresa que nasce norte-americana”, observa.
Luiz Gonzaga Belluzzo ainda destaca que uma transformação econômica tem de levar em conta as questões ambientais, especialmente as transformações climáticas e todas as crises decorrentes delas. Aliás, crises que também transbordam a economia e se tornam questões humanitárias. “E veja, essa é outra questão e está na pauta de grandes organismos internacionais, e no Brasil ainda vivemos um negacionismo climático”, adverte. O professor lamenta que, diante de tamanha negação, o debate de outras matrizes energéticas, viáveis economicamente e que visam mitigar os efeitos do aquecimento global, acaba sendo cerceado no Brasil.
O tema volta à tona quando mais um espectador questiona Belluzzo sobre o desenvolvimento chinês feito ao custo de muita poluição e degradação. “Isso é verdade, houve muita poluição na China, mas isso já era. Eles já acordaram para isso e têm hoje o maior programa de energia solar e eólica do mundo”, responde. E parece que realmente, essa ideia de que desenvolvimento só se faz com sacrifícios de outras formas de vida é coisa do passado. “Já está claro que o desenvolvimento não pode ser concebido com as mesmas matrizes energéticas do passado”, reitera.
Mais uma vez, Belluzzo apreende a lucidez do papa Francisco quando provoca pensarmos numa outra economia. “Ele leva em conta tudo isso, sabe dessas transformações e está muito ligado nas oportunidades, como as que a tecnologia proporciona”, salienta. Para o professor, uma das mensagens mais fortes do pontífice é auscultar os sinais, que na pandemia têm ainda maior intensidade. Assim, quem sabe não concebamos saídas para uma outra economia. “E quem sabe esse caminho não seja pela própria tecnologia. Veja nós aqui [numa conferência remota, com palestrantes e espectadores em lugares diferentes], como essa tecnologia pode melhorar nossos contatos mesmo a distância. E ainda não sobrecarregamos, por exemplo, sistemas de transporte que devem ser repensados e melhor qualificados”.
Belluzzo não vê como assim tão distante o uso de veículos elétricos, para vencermos curtas distâncias, consumindo bem menos combustível e sobrecarregando menos estradas, pois também estaremos acessíveis por um clique. “Não podemos esquecer que isso também é proteção ao meio ambiente, o valor ambiental. Não adianta ficar falando de ONG; fico impressionado como perdemos tempo com isso enquanto a devastação aumenta. E isso, inevitavelmente, vai incidir sobre nosso agronegócio”, analisa.
É formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, também estudou Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Ingressou no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Econômico, promovido pela CEPAL/ILPES e graduou-se em 1969. Foi professor colaborador na Universidade Estadual de Campinas, onde doutorou-se em 1975 e tornou-se professor-titular em 1986. Entre 1974 e 1992, foi assessor econômico e secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987), durante o governo de José Sarney. De 1988 a 1990, foi secretário de Ciência e Tecnologia do estado de São Paulo, durante a gestão do ex-governador Orestes Quércia. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney).
Ainda fundou a Faculdades de Campinas – Facamp, juntamente com os economistas João Manuel Cardoso de Mello, Liana Aureliano e Eduardo da Rocha Azevedo. Em 2001, foi incluído no Biographical Dictionary of Dissenting Economists entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX. É considerado o melhor economista heterodoxo do Brasil, devido às suas interpretações, sugestões e críticas à sociedade brasileira, sob a ótica de Karl Marx e John Maynard Keynes. Foi ainda conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Foi presidente do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que opera a TV Brasil, emissora pública criada no Governo Lula. Fazia parte também, do conselho deliberativo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Foi consultor pessoal de economia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.