Em resposta ao Consenso de Washington – que concentra riquezas e abre espaço ao fascismo – PC chinês propõe a modernização pacífica. Ideia desafia a noção thatcherista do “fim das alternativas” e pode sacudir economia e geopolítica atuais.
A reportagem é de Pepe Escobar, publicada por The Cradle e reproduzida por OutrasPalavras, 24-10-2022. A tradução é de Maurício Ayer.
O relatório de trabalho apresentado pelo presidente Xi Jinping no início do 20º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh) neste último domingo, em Pequim, continha não apenas um projeto de desenvolvimento para o estado-civilização chinês, mas um projeto inclusivo para todo o Sul Global.
A fala de uma hora e 45 minutos de Xi apresentou uma visão resumida da íntegra do relatório de trabalho (disponível aqui), que trata bem mais em detalhe de uma série de temas sociopolíticos.
Essa foi a culminação de um complexo esforço coletivo que se estendeu por meses. Ao receber o texto final, Xi o comentou, revisou e editou.
Em poucas palavras, o plano diretor do PCCh tem duas vertentes: finalizar a “modernização socialista” entre 2020 e 2035; construir a China – por meio de uma modernização pacífica – como um país socialista moderno “próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso” até 2049, marcando o centenário da fundação da República Popular da China (RPC).
O conceito central do relatório de trabalho é a modernização pacífica – e como alcançá-la. Como sintetizado por Xi, “ele contém elementos que são comuns ao processo de modernização de todos os países, sendo, entretanto, mais marcado por características singulares do contexto chinês”.
De forma bastante coerente com a cultura confuciana chinesa, a “modernização pacífica” contém um sistema teórico completo. É claro que há múltiplos caminhos geoeconômicos que levam à modernização – segundo as condições de cada país específico. Mas, para o Sul Global como um todo, o que realmente importa é que o exemplo chinês rompe radicalmente com o monopólio “TINA” (“não há alternativa”, em inglês) na prática e na teoria da modernização.
Sem falar que ele rompe também com a camisa-de-força ideológica imposta ao Sul Global pelo autodefinido “bilhão dourado” (dos quais os realmente “dourados” mal chegam a 10 milhões). O que a liderança chinesa afirma é que o modelo iraniano, o modelo ugandense ou o modelo boliviano são tão válidos quanto o experimento chinês: o importante é perseguir um caminho independente para o desenvolvimento.
O histórico recente mostra que todos os países que tentam se desenvolver fora do Consenso de Washington são aterrorizados por guerra híbrida em múltiplos níveis. O país se torna alvo de revolução colorida, mudança de regime, bloqueio econômico, sabotagem pela OTAN – ou simplesmente bombardeio e invasão.
O que a China propõe ecoa por todo o Sul Global porque Pequim é o maior parceiro comercial de nada menos que 140 países, que conseguem entender com facilidade os conceitos de desenvolvimento econômico de alta qualidade e de autossuficiência em ciência e tecnologia.
O relatório ressaltou o imperativo categórico para a China de agora em diante: acelerar a autossuficiência tecnológica, uma vez que o Hegêmona parte para um tudo ou nada com o objetivo de inviabilizar o desenvolvimento tecnológico chinês, em especial no que se refere à fabricação de semicondutores.
Com a dimensão de um pacote de sanções do Inferno, o Hegêmona aposta na possibilidade de mutilar o impulso chinês para acelerar sua independência tecnológica em semicondutores e no equipamento para produzi-los.
A China, portanto, terá que se engajar em um esforço nacional de produção de semicondutores. Essa necessidade estará no cerne daquilo que o relatório de trabalho descreve como uma nova estratégia de desenvolvimento, movida pelo tremendo desafio de alcançar a autossuficiência. Em essência, a China irá fortalecer o setor público da economia, com as empresas estatais formando o núcleo de um sistema nacional de desenvolvimento de inovação tecnológica.
Quanto à política externa, o relatório de trabalho é muito claro: a China é contra qualquer forma de unilateralismo e contra todo e qualquer bloco ou grupo que se volte contra países específicos. Pequim se refere a esses blocos, como a OTAN e a AUKUS, como “pequenas fortalezas com muros altos”.
Essa visão está inscrita na ênfase dada pelo PCCh a um outro imperativo categórico: reformar o atual sistema de governança mundial, extremamente injusto para o Sul Global. É sempre fundamental nos lembrarmos de que a China, como um estado-civilização, vê a si mesma como, simultaneamente, um país socialista e a maior nação em desenvolvimento do mundo.
A questão, mais uma vez, é que Pequim acredita em “salvaguardar o sistema internacional que tem a ONU em seu cerne”. A maioria dos atores do Sul Global sabe que os Estados Unidos sujeitam a ONU – e seu mecanismo de votação – a pressões implacáveis de todo tipo.
É esclarecedor dar atenção aos pouquíssimos ocidentais que realmente sabem alguma coisa sobre a China.
Martin Jacques, até recentemente professor sênior do Departamento de Política e Estudos Internacionais da Universidade de Cambridge, e autor do que talvez seja o melhor livro escrito em inglês sobre o desenvolvimento chinês, mostra-se impressionado com o fato de a modernização da China ter ocorrido em um contexto dominado pelo Ocidente: “Esse foi o papel crucial do PCCh. Tinha que ser planejado. Podemos ver o quão extraordinariamente exitoso foi esse processo”.
A consequência é que, ao quebrar o modelo TINA centrado no Ocidente, Pequim acumulou os instrumentos que lhe conferem a capacidade de ajudar os países do Sul Global com seus próprios modelos.
Jeffrey Sachs, diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia, é ainda mais otimista: “a China se tornará líder de inovação. Eu espero e acredito que a China se converterá em líder de inovação em sustentabilidade”. Isso irá contrastar com o “disfuncional” modelo americano, que vem se tornando protecionista até mesmo nos setores de negócios e de investimentos.
Mikhail Delyagin, vice-presidente da Comissão de Política Econômica da Duma do Estado Russo, enfatiza um ponto crucial, que certamente não passou despercebido por atores do Sul Global: o PCCh “conseguiu adaptar de forma criativa o marxismo do século XIX e sua experiência no século XX às novas exigências, e implementar os valores eternos com novos métodos. Essa é uma lição de grande importância para nós”.
E esse é o valor agregado de um modelo direcionado ao interesse nacional, e não às políticas exclusivistas do Capital Global.
Implícita ao longo de todo o relatório de trabalho está a importância do conceito amplo da política externa chinesa: a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e seus corredores de conectividade comercial cruzando toda a Eurásia e a África.
Coube ao porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Wang Wenbin, esclarecer o rumo a ser tomado pela ICR:
“A ICR transcende a mentalidade antiquada dos jogos geopolíticos, de modo que criou um novo modelo de cooperação internacional. A ICR não é um grupo fechado que exclui os demais participantes, mas sim uma plataforma de cooperação aberta e inclusiva. Ela não representa apenas o trabalho isolado da China, trata-se de uma sinfonia executada por todos os países participantes.”
A ICR está intrinsecamente ligada ao conceito chinês de “abertura”. É importante lembrar também que a ICR foi lançada por Xi há nove anos – na Ásia Central (Astana) e posteriormente no Sudeste Asiático (Jacarta). Pequim aprendeu com os próprios erros e continua fazendo ajustes finos na ICR sempre em consulta com seus parceiros – desde Paquistão, Sri Lanka e Malásia até diversos países africanos.
Não é de surpreender que, em agosto do presente ano, o comércio da China com os países participantes da ICR tenha atingido a extraordinária quantia de US$ 12 trilhões, e que os investimentos diretos não-financeiros realizados nesses países tenha ultrapassado US$ 140 bilhões.
Wang está correto ao apontar que, após os investimentos da ICR em infraestrutura, “o Leste Africano e o Camboja têm rodovias, o Cazaquistão tem portos [secos] para exportações, as Maldivas têm sua primeira ponte sobre o mar e o Laos passou de um país sem acesso ao mar a um país conectado”.
Mesmo sob graves ameaças, que vão desde a política de covid-zero até sanções de todo tipo e a quebra das cadeias de fornecimento, o número de trens de carga expressos China-União Europeia continua a crescer, a Ferrovia China-Laos e a Ponte Peljesac na Croácia estão agora em operação, e as obras na Ferrovia de Alta Velocidade Jacarta-Bandung estão em andamento.
Por todo o extremamente incandescente tabuleiro de xadrez global, as relações internacionais vêm sendo reformuladas por completo.
A China e importantes atores eurasianos – da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), dos BRICS+ e da União Econômica Eurasiana (UEEA) liderada pela Rússia – estão todos propondo um desenvolvimento pacífico neste momento.
O Hegêmona, ao contrário, impõe uma avalanche de sanções (não é por acaso que os três países mais atingidos sejam potências eurasianas, Rússia, Irã e China), guerras por procuração de alta letalidade (Ucrânia) e todas as cepas possíveis de guerra híbrida para evitar o fim de sua supremacia, que mal durou sete décadas e meia, algo insignificante em termos históricos.
A atual disfunção – física, política, financeira, cognitiva – está atingindo um clímax. Enquanto a Europa mergulha em um abismo de devastação e trevas em grande medida autoinfligidas – um neomedievalismo expresso em termos politicamente corretos –, um Império internamente destruído recorre à pilhagem até mesmo de seus “aliados” ricos.
É como se estivéssemos testemunhando um cenário de Mackinder-doidão-de-crack.
Halford Mackinder, é claro, foi o geógrafo britânico que desenvolveu, em geopolítica, a “Teoria do Coração do Continente” (Heartland Theory), que influenciou fortemente a política externa dos Estados Unidos ao longo de toda a Guerra Fria: “Quem controla o Leste Europeu domina o Coração do Continente [Heartland], quem controla o Coração do Continente domina a Ilha do Mundo, quem controla a Ilha do Mundo domina o Mundo inteiro”.
A Rússia abrange onze fusos horários e está sobre até um terço dos recursos naturais do mundo. Uma simbiose natural entre a Europa e a Rússia é quase uma obviedade. Mas a oligarquia da União Europeia pôs tudo a perder.
Não é de admirar que a liderança chinesa veja esse processo com horror, porque um dos objetivos essenciais da ICR é o de facilitar o comércio ininterrupto entre China e Europa. Como o corredor de conectividade russo foi bloqueado por sanções, a China irá privilegiar os corredores que atravessam o Oeste Asiático.
Enquanto isso, a Rússia vem completando seu giro em direção ao leste. Os imensos recursos da Rússia, aliados à capacidade manufatureira da China e do Leste Asiático como um todo, projetam uma esfera de comércio/conectividade que vai além até mesmo da ICR. Ela está no cerne do conceito russo de Parceria da Grande Eurásia.
Em uma outra das reviravoltas imprevisíveis da história, Mackinder, há um século, talvez estivesse essencialmente correto ao afirmar que quem controla o Coração do Continente/Ilha do Mundo domina o mundo inteiro. Nada indica que o controlador venha a ser o Hegêmona, e menos ainda seus vassalos/escravos europeus.
Quando os chineses dizem que são contra blocos, a Eurásia e o Ocidente são efetivamente dois blocos. Embora ainda não formalmente em guerra entre si, eles, na verdade, já estão atolados até os joelhos no território da Guerra Híbrida.
A Rússia e o Irã estão na linha de frente – militarmente e no sentido de absorverem incessantes pressões. Outros atores importantes do Sul Global, sem alarde, tentam manter um perfil discreto ou, com menos alarde ainda, ajudam a China e os demais países a fazerem com que o mundo multipolar prevaleça em termos econômicos.
Como a China propõe uma modernização pacífica, a mensagem oculta do relatório de trabalho é ainda mais categórica. O Sul Global enfrenta agora uma séria escolha: entre a soberania e a modernização pacífica – corporificada em um mundo multipolar – ou a vassalagem explícita.