Ao longo de 2018 o ObservaSinos trabalhou na criação e publicação do Especial do Trabalho Vale do Sinos. A série histórica do ObservaSinos aborda grandes temas sobre o mundo trabalho entre os anos de 2003 e 2016, período de grande movimentação e transição econômica, política e social no Brasil. Os dados analisados são dos 14 municípios do Conselho Regional de Desenvolvimento - Corede do Vale do Rio dos Sinos, região de atuação do Observatório.
Em uma parceria com a Beta Redação, do curso de Jornalismo da Unisinos, o Especial do Trabalho expandiu sua região de análise para Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Os dados coletados e as matérias produzidas foram uma realização dos alunos da editoria de Economia, que utilizaram os tópicos do Especial do ObservaSinos como fio condutor.
A Beta Redação é um projeto de integração de diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em seis editorias. O objetivo da Beta Redação é proporcionar aos jornalistas em fase final de formação uma vivência intensa da realidade profissional, fomentando a experimentação e o exercício crítico do Jornalismo, em contato direto com o público.
Eis o texto
O alto nível de instrução gera mais oportunidades, mas ainda não garante melhor remuneração
A reportagem é de Alessandro Garcia, Igor Mallmann, Júlia Ramona Michel, Khael Santos e Nicole Roth, publicada pela Beta Redação, 03-10-2018
Dados obtidos na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) permitem analisar o impacto do grau de escolaridade sobre a distribuição de renda do trabalho em Porto Alegre. De acordo com os últimos números disponíveis na RAIS, datados de 2016, a capital dos gaúchos somava 711 mil trabalhadores registrados. Destes, 47% estavam empregados no setor de Serviços. Já, ao comparar com dez anos atrás, o total de empregados com carteira assinada era de 635 mil.
Dois setores de atividade econômica registraram um aumento significativo na qualificação da mão de obra: 1) administração pública e 2) agropecuária, extração vegetal, caça e pesca. Em ambas as áreas, a porcentagem de trabalhadores com ensino superior completo dobrou no decênio analisado. A área de atuação da administração pública, a propósito, é a que conta atualmente com a maior parcela de graduados entre todos os setores com 69%.
A construção civil, por outro lado, teve o menor índice de profissionais formados atuando em 2016 — apenas 6%. E, no comparativo, o único setor que apresentou queda no percentual de trabalhadores com ensino superior completo foi o de Serviços, cujo índice decaiu de 32% em 2006 para 23% em 2016.
Infográfico: Porcentagem de trabalhadores com Ensino Superior completo por setor
Para Guilherme Stein, doutor em Economia e professor do PPG em Economia da Unisinos, o setor de administração pública é uma área que, em média, os salários são maiores, uma vez que ocupações em setores públicos tendem a se traduzirem em salários melhores. “Além disso, a maior parte dos concursos públicos exige que você tenha ensino superior. Então, por definição, você terá pessoas com maior formação a nível superior”, salienta Guilherme Stein.
No que diz respeito ao setor que engloba agropecuária, extração vegetal, caça e pesca, além de citar o fenômeno que indica um crescimento no nível de escolaridade dos brasileiros a partir da década de 1990, o professor aponta que esta é uma área com bastante suporte tecnológico. “Faz sentido que nessa área haja um aumento maior [de renda] na medida em que você coloca mais tecnologia e mais máquinas. Assim, você exigirá um maior preparo das pessoas”, argumenta Guilherme Stein.
Da escolha da profissão à realidade do mercado
Não é de hoje que encontra-se pessoas formadas em uma área, mas que, após a conclusão da graduação, atuam em outra. Douglas Oscar, 28 anos, pertence a essa realidade. Formado em física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas, atualmente, trabalhando com Inteligência de Mercado, ele afirma que as oportunidades na área de formação escolhida são bem restritas. “Se tu não for atuar como professor de física, tuas opções são bem escassas. Pela falta de investimentos, o Brasil não é um polo muito atrativo para essa área”, comenta.
Mas, mesmo não exercendo sua profissão por formação, o analista de dados garante que consegue trazer parte do aprendizado de sala de aula para o desenvolvimento de suas tarefas diárias em seu trabalho. De acordo com Douglas Oscar, muito da questão lógica e de cálculos matemáticos pertencentes à física contribuem para realizar, por exemplo, uma análise de comportamento de mercado. Ele enfatiza que o conhecimento de fórmulas facilita muito no momento da elaboração de relatórios. “A inteligência competitiva é um segmento que trabalha muito com números e contas. Na hora de calcular a variação de uma determinada taxa, eu não encontro dificuldades”, assegura.
Atuando como gestor de uma equipe multidisciplinar na Plugar Data & Intelligence, empresa localizada em Porto Alegre, Rafael Barcellos, 34 anos, graduou-se em direito há 11 anos. Porém, desde então, tem contato com a formação apenas na hora de prestar assistência jurídica para a empresa. No mais, é responsável por elaborar propostas técnicas para prospectar clientes que estejam interessados nos serviços de inteligência de mercado. “Como as propostas exigem, em alguns momentos, um linguajar um pouco mais rebuscado, o meu domínio gramatical garante total segurança no momento de escrevê-las”, explica.
A multidisciplinaridade do escritório não assusta o empresário Rafael Barcellos. “É interessante para um engenheiro químico entender o comportamento de uma empresa em redes sociais e sua estratégia de comunicação. Por outro lado, o jornalista, que não gosta muito de números, entenderá a dinâmica econômica do agronegócio”, exemplifica o CFO da Plugar. O advogado por formação vê nesse estilo de trabalho uma grande oportunidade para o crescimento dos colaboradores. Com uma equipe formada por jornalistas, sociólogos, administradores e, até mesmo, engenheiros, ele enxerga um grande potencial de aprendizagem para os profissionais diante desse ambiente bastante diversificado.
Renda média dos trabalhadores da capital gaúcha
A capital gaúcha, nos último 10 anos, registrou um leve aumento na renda média dos trabalhadores. Dividindo a mão de obra por grau de instrução, nota-se que até os analfabetos tiveram um acréscimo nos rendimentos mensais médios — enquanto que, em 2006, recebiam o equivalente a R$ 936 com a correção monetária pela inflação oficial, em 2016 passaram a ganhar R$ 1.260.
Infográfico: Renda média por grau de instrução em R$
No outro extremo, os profissionais com ensino superior completo também tiveram um pequeno aumento de renda média, que passou de R$ 5.317, em 2006 para R$ 5.476 no anos de 2016, em valores corrigidos. A única faixa de escolaridade, conforme os dados da RAIS, que registrou um leve declínio na renda média foi a de pessoas com ensino superior incompleto. Esses profissionais recebiam o equivalente a R$ 2.744 em 2006 e passaram a ganhar R$ 2.669 em 2016.
Ao considerar o aumento de renda em Porto Alegre, verificado entre 2006 e 2016, Marília Verissimo Veronese, doutora em Psicologia e professora do PPG em Ciências Sociais da Unisinos, propõe que esse crescimento de remunerações está associado a um período da economia global em que as commodities estavam valorizadas e o mercado interno aquecido. Ela conclui que houve uma política de Estado que proporcionou um empoderamento de classes sociais menos favorecidas economicamente a partir de programas sociais, como o Bolsa Família. Porém, Marília Veronese faz a seguinte observação: “Não houve nenhum movimento de mudança do modelo econômico — os banqueiros e as grandes elites ficaram como elas sempre estiveram: mandando no jogo”, afirma.
Setores que sofreram redução salarial
Entre 2006 e 2016, cinco dos oito setores econômicos contidos na classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tiveram desvalorização salarial de profissionais formados: 1) serviços industriais de utilidade pública, 2) construção civil, 3) comércio, 4) agropecuária, extração vegetal, caça e pesca e 5) indústria de transformação. Nesse último setor, ocorreu a queda mais significativa. Em 2006, pessoas graduadas recebiam, com correção da inflação, R$ 8.284. Já, em 2016, a renda média da Indústria de transformação reduziu para R$ 6.776.
Infográfico: Renda média de graduados em R$
O doutor em sociologia e professor do PPG em Ciências Sociais da Unisinos, Luiz Inácio Gaiger, sugere uma explicação plausível para entender essa desvalorização salarial: mudança de local de trabalho. Ou seja, não se pode reduzir o salário de um trabalhador sem que ele tenha sua carga horária reduzida ou mude de emprego. Além do mais, a conquista do diploma não é garantia absoluta de maiores salários. É preciso considerar o capital cultural de uma pessoa, que diz respeito às competências profissionais de alguém. “Por isso, há trabalhadores que não são graduados, mas que mantêm seus empregos devido a sua grande experiência em determinado setor”, considera Luiz Gaiger.
Já a professora Marília Veronese, justificou que a queda de rendimentos dos cinco setores está relacionada a questões macroeconômicas. “Atribuo isso ao ‘desinvestimento’, digamos assim, na industrialização. Em 2014 e 2015, tivemos o início de uma crise geral em termos de mercado de trabalho e mercado externo. Somos ainda um país exportador de commodities. O preço das commodities caíram, e fomos prejudicados por isso. Mas, claro, que esses preços são manipulados globalmente pelos mercados, de forma que é muito instável basearmos a nossa economia em exportação de commodities”, avalia a professora.
Observa-se que as commodities representavam 65% do valor das exportações brasileiras, em 2014, conforme levantamento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). E, ao analisar as dez primeiras posições no ranking de produtos mais exportados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), nota-se que todas são ocupadas por commodities, como soja, minério de ferro e petróleo.
Três setores que registraram valorização salarial
Por outro lado, a renda média do profissional com formação em nível superior teve aumento nas áreas da administração pública, serviços e extrativa mineral. Nessa última, por exemplo, passou-se de uma média salarial equivalente a R$ 13.754 em 2006 para R$ 14.733 em 2016. Para efeito de comparação, no setor de extrativa mineral um graduado ganha mais do que quatro vezes o salário de um profissional com superior incompleto, que recebe R$ 3.664. E, com relação a renda de um analfabeto, são 11 vezes mais.
Nas áreas que envolvem a administração pública, porém, a diferença salarial entre os graus de instrução é menor. Se um formado recebe R$ 5.308, alguém com curso superior incompleto ganha R$ 3.245. Já um analfabeto, em média, recebe R$ 1.379 — ou seja, quase quatro vezes menos o salário de uma pessoa formada.
O retorno da escolaridade é outro aspecto muito analisado por economistas. Segundo Guilherme Stein, é possível pensar na educação como um investimento financeiro — ou seja, para cada real investido em educação, quantos centavos serão atribuídos a mais no salário?
“Existem estimativas que falam que um ano a mais estudando, no ensino superior, agrega de 10% a 11% a mais na sua renda, em média. E uma outra pesquisa, realizada no Rio Grande do Sul, mostrou que a taxa interna de retorno gira em aproximadamente 20% no Estado”, compara Guilherme Stein, professor de economia. A taxa interna de retorno consiste em um indicador expresso em valores percentuais que compara o investimento inicial e as despesas futuras com o seu rendimento para mostrar se o retorno será vantajoso ou não. Esse último dado, de 20%, foi comparado entre quem concluiu o ensino médio com quem formou-se no ensino superior.
Foto: Flickr/Gunnar Bothner-By
Porém o alto nível de escolaridade, mesmo fortalecendo o mercado, ainda não é garantia de melhor remuneração. Marília Veronese, professora e psicóloga, reconhece que nem sempre o grau de instrução mais elevado assegura um trabalho bem remunerado e estável. Ela traz um exemplo do próprio meio acadêmico: “nós estamos nos deparando com muitos profissionais formados, pela facilidade maior de alcance aos mestrados e doutorados, que estão desempregados. São profissionais com doutorado ou até pós-doutorado, que não conseguem uma colocação. Se conseguem, é uma colocação muito ruim”, ressalta. Ao mesmo tempo, a docente reforça que a qualificação profissional não se trata só do retorno financeiro, mas também de um modo das pessoas crescerem como cidadãos e seres humanos.