Inclusão produtiva no Programa Bolsa Família em Canoas: desafios políticos, éticos e metodológicos

  • Segunda, 27 de Agosto de 2018

Ampliar a análise e o debate sobre as realidades do Vale do Rio dos Sinos e da Região Metropolitana de Porto Alegre por meio de sistematizações de pesquisas e/ou experiências de intervenção é o objetivo do edital de publicação de trabalhos. Desde 2015, o Observatório da realidade e das políticas públicas do Vale do Rio dos Sinos - ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, promove o edital a fim de dar espaço para trabalhos que analisaram realidades a partir de diferentes perspectivas.

O segundo artigo é “Inclusão produtiva no Programa Bolsa Família em Canoas: desafios políticos, éticos e metodológicos”, de Adriane Vieira Ferrarini¹, Estelamaris de Barros Dihl², Jéssica Caroline Wallauer³ e Gustavo Oliveira⁴.

Eis o artigo.

A globalização capitalista tem legado importantes avanços tecnocientíficos, mas também o vertiginoso aumento das desigualdades e da pobreza – fenômenos históricos e persistentes no Brasil. Desde a Constituição Federal de 1988, a assistência social (AS) passou a ser um direito de cidadania. A partir de 2001, o governo brasileiro, a partir da Política de Transferência Condicionada de Renda, materializada no Programa Bolsa-família (PBF), assumiu sua responsabilidade para com o enfrentamento da pobreza. Frente à importância que a dimensão econômica adquire para o acesso a recursos (ainda que a pobreza seja comprovadamente um fenômeno multidimensional) e do trabalho como direito e como desejo das beneficiárias (DIHL, 2015), foi criada em 2011 a política de inclusão social e produtiva (ISP) no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). A ISP é um processo de fortalecimento de vínculos sociais, acesso a serviços, exercício de cidadania e inclusão em oportunidades mais efetivas de trabalho, com acompanhamento socioeconômico e garantia de renda. Ela envolve processos de informação, encaminhamento e monitoramento ao mundo do trabalho, à qualificação profissional e à elevação de escolaridade (FERRARINI & WALLAUER, 2015).

Contudo, beneficiárias do PBF apresentam desafios devido a maiores condições de vulnerabilidade social: baixa escolaridade, problemas crônicos de saúde, necessidade de prover cuidados domésticos (não atendidos pelos serviços sociais), moradia de risco, dificuldade de mobilidade urbana, etc. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) foi a principal ação de ISP, tendo avançado muito no período de três anos (com implementação em 89% dos municípios brasileiros), seguido do Programa de Promoção do Acesso ao Mundo do Trabalho (ACESSUAS), presente em 1.379 municípios em 2014 (MONTAGNER & MULLER, 2015).

Esta pesquisa teve o objetivo de analisar os principais avanços e limites das ações de ISP de beneficiárias do PBF no município de Canoas, o qual possui o terceiro maior Produto Interno Bruto  gaúcho, é sede de um distrito industrial e de grandes empresas nacionais e multinacionais, apresenta tradição no campo da economia solidária, agilidade na formalização de empreendimentos e ferramentas inovadoras – como o Banco de Currículos – para facilitar a contratação. Ademais, o município tem uma gestão de assistência social consolidada e uma boa rede de atendimento à população, além de ter sido um dos maiores demandantes de cursos do PRONATEC no Brasil à época e contar com equipe do ACESSUAS. Havia também uma rede extensa de iniciativas de ISP voltadas ao público do PBF.

Tratou-se de pesquisa qualitativa, cuja metodologia foi composta por cinco etapas: pesquisa exploratória, em que foram realizadas entrevistas com beneficiárias do PBF e com gestores públicos (da política de desenvolvimento social e de desenvolvimento econômico), bem como consulta a dados secundários; pesquisa-ação participante com gestores e técnicos da Secretaria de Desenvolvimento Social (SMDS); reuniões intersecretarias; entrevistas com gestores do MDSA e acompanhamento domiciliar a beneficiários do Programa Bolsa-família. A pesquisa teve início em 2014 e encontra-se na última etapa, que visa experimentar instrumentos produzidos ao longo da pesquisa. Destaca-se que, a partir de 2015, as vagas do PRONATEC para o público do PBF foram praticamente extintas e até 2016 não havia mais ações de qualificação profissional e renda ligada à SMDS. Ainda que o PRONATEC também tenha sido finalizado em nível federal, isso não reduz a importância do tema, dado o número de pessoas já qualificadas, a relevância da superação da pobreza numa agenda social brasileira cidadã e ampliação no governo federal da ISP para status de Secretaria Nacional.  

A fase exploratória da pesquisa demonstrou alto nível de reincidência das beneficiárias do PBF nos cursos de qualificação profissional (cerca de 70% do público tinha mais de cinco certificados); baixo número de ingresso no mundo do trabalho; ausência de um projeto de vida ligado ao trabalho e poucas oportunidades econômicas adequadas ao seu perfil. Tais evidências mobilizaram a pesquisa-ação participante com gestores e técnicos e oportunizaram a compreensão deste cenário e a produção de conceitos e metodologias de AS para a ISP. Na sequência, a iniciativa da Secretaria de Desenvolvimento Econômico de somar-se à pesquisa-ação para a construção de uma estratégia intersetorial de ISP com vistas à instauração de um desenvolvimento inclusivo no município não se consolidou, em boa parte pela ausência de uma participação assertiva da AS. Tal ausência pode ser atribuída às dificuldades usuais de intersetorialidade (paradigmáticas e metodológicas) e ao aumento de questionamentos teóricos e políticos que se instauraram no campo da AS, com claros reflexos em Canoas, em torno de a ISP ser ou não uma atribuição desta política. Contudo, a tendência recente de afirmação que a ISP na AS significaria perda de direitos sociais (SOUZA, 2016) ainda não se confirma no Brasil (FERRARINI, 2016), dada a não condicionalidade da ISP às beneficiárias do PBF, ainda que não se possa negar riscos futuros. 

O estudo conclui que em Canoas (assim como no Brasil, em geral) houve uma relativa eficiência operacional, ainda que acompanhada de limitações típicas da política pública brasileira, tais como serviços de baixa qualidade, estruturas e equipamentos precários e profissionais insuficientes. Acrescem também limites específicos: (1) organizacionais: carência da intersetorialidade em meio à estrutura burocrática fragmentada; (2) macroeconômicas: desigualdade, pobreza intergeracional e multidimensional e falta de oportunidades; (3) certa invalidação de iniciativas econômicas, mesmo quando acompanhadas de ganhos extraeconômicos (caso da economia solidária); (4) programática: baixa participação da população, expressa na relação dúbia entre a oferta dos cursos, demandas do mercado e habilidades dos usuários.

Apesar de a ISP suscitar um debate ainda controverso entre redução de direitos sociais ou autonomia, prestando-se tanto para interpretações conservadoras quanto emancipatórias, a pesquisa evidenciou que ela carrega em si uma matriz de articulação entre direitos sociais e econômicos e de um novo paradigma de proteção social – já preconizado nas legislações da AS. Contudo, isso requer intersetorialidade entre as políticas sociais e econômicas – e também com a educação e saúde – que é justamente o maior desafio, acompanhado da dificuldade de planejamento e gestão da ISP na AS e escassas oportunidades econômicas dignas. As pesquisas sobre o tema no Brasil são ainda escassas, apresentando-se como um campo que merece ser analisado em profundidade do ponto de vista teórico-conceitual, ético-político e metodológico, considerando as ações já empreendidas nos últimos anos, os recursos investidos e a premência da superação emancipatória da pobreza no Brasil.

[1] Adriane Vieira Ferrarini é Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) 
[2] Estelamaris de Barros Dihl é Mestre em Ciências Sociais pela UNISINOS
[3] Jéssica Caroline Wallauer é Mestre em Ciências Sociais pela UNISINOS
[4] Gustavo Oliveira é Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela UNISINOS

Referências:

DIHL, E. B. O Programa Bolsa-família como dispositivo para a inclusão produtiva: possibilidades e desafios. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos. São Leopoldo: Unisinos, 2015.

FERRARINI, A. V.; WALLAUER, J. C. Cartilha da inclusão produtiva de Canoas: acesso ao trabalho, emprego e economia solidária. São Leopoldo: Oikos, 2015.

FERRARINI, A. V. 40º Encontro Anual da ANPOCS. Inclusão produtiva na política de assistência social: workfare à brasileira ou ampliação de direitos? 2016.

MONTAGNER, P.; MULLER, L. H. Inclusão produtiva urbana: o que fez o Pronatec/Bolsa Formação entre 2011 e 2014. Cadernos de Estudos: Desenvolvimento Social em Debate 24. 2015.

SOUZA, F. Inclusão produtiva. In: FERNANDES, Rosa; Hellmann, Aline (orgs). Dicionário crítico: política de assistência social no Brasil. Porto Alegre, Editora da UFGRS, 2016.