14 Novembro 2024
"Um papa pode dizer aos católicos que o aborto é um pecado, mas ao fazer declarações na casa alheia, sabia que estava quebrando as regras das relações internacionais", escreve Giancarla Codrignani, ex-deputada italiana pela Esquerda Independente e sócia-fundadora da associação Viandanti, em artigo publicado por Confronti, 11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alguém que vem do fim do mundo não conhece muito bem todas as palavras italianas, e talvez não quisesse atrair para si a críticas das corporações médicas. Essa é mais ou menos a justificativa expressa por alguém da Cúria que, com razão, considerou melhor encerrar a polêmica sobre as manifestações do papa sobre a interrupção voluntária da gravidez. Só que o Papa Francisco havia pronunciado as ousadas palavras “sicários” e “assassinos” - dirigidas a médicos e médicas - na Bélgica, onde o aborto é um direito e Francisco era um chefe de um Estado estrangeiro. Além disso, ele havia prestado homenagem no túmulo do Rei Balduíno, que, quando seu país votou sobre a regulamentação legal do aborto, valeu-se de um expediente formal e se suspendeu por um dia para não assinar o que ainda assim era a vontade de seu Parlamento.
Como se não bastasse, durante sua visita, Francisco tinha anunciado que, ao retornar a Roma, iniciaria o processo de beatificação do ex-soberano.
Um papa pode dizer aos católicos que o aborto é um pecado, mas ao fazer declarações na casa alheia, sabia que estava quebrando as regras das relações internacionais.
Com mais um agravante: de fato, em discursos oficiais, o primeiro-ministro belga, sem qualquer maior consideração por um papa, havia lembrado o escândalo dos abusos na Bélgica, inclusive do bispo emérito de Bruges Roger Vangheluwe (já reduzido ao estado laical), e Francisco havia expressado “vergonha” e “pedido perdão”. As palavras polêmicas haviam sido proferidas no dia seguinte, e o Presidente Alexander De Croo já havia reagido convocando o Núncio para confirmar o descordo pelas palavras do papa, definindo-as como “totalmente inaceitáveis” e enfatizando que: “A época em que a Igreja ditava lei ficou para trás”. Do ponto de vista católico, não é uma bela história e talvez estivesse certo quem pensava encerrá-la sem fazer muito barulho. O jornal Domani, de fato, minimizou a situação definindo as palavras do papa como: “Ideias de um idoso senhor”.
Mas a Itália? A Federação das Ordens Médicas ficou imediatamente indignada. Elly Schlein, líder da oposição, defendeu prontamente a dignidade das mulheres e a Lei 194, censurando seus limites devido à objeção de consciência reconhecida aos médicos que não intendem praticar os abortos nos hospitais públicos. Uma concessão necessária em 1978 para garantir a lei em um parlamento dividido que teve de aceitar a limitação, da qual, aliás, a Esquerda liberal nunca pediu a revogação.
O governo? Estava na mesma situação que o belga e, além disso, sendo soberanista, tinha com maior razão que convocar imediatamente o Monsenhor Petar Rajič, o novo Núncio na Itália e em San Marino, e defender a autonomia da Itália. Por seu lado, Meloni, que é astuta, deve ter pensado, com astúcia política, que, apesar do escândalo que eclodiu em outro lugar, poderia lhe ser útil no futuro mostrar não ter expressado um juízo sobre o assunto. Assim, pelo fato de não ter havido denúncia de parte de quem devia, houve menos discussão pública na Itália do que na Bélgica. Assim, perdeu-se uma oportunidade de reafirmar o princípio normativo da laicidade, que deve ser valorizada especialmente em um período em que as religiões correm o risco de voltar a conotar guerras, embora existam muitos caminhos para buscar formas de pacificação e preservação da esperança para todos, crentes e não crentes.
Entretanto, a declaração de Francisco levantou uma questão sempre candente, a ser aberta ou fechada conforme o interesse político: nas eleições (inclusive estadunidenses), o voto feminino é decisivo para as questões ligadas ao aborto.
A questão fundamental, no entanto, é: as mulheres na Itália serão mais uma vez “as acusadas”? De fato, elas já estão sob o fogo do Movimento Pró-Vida que, aproveitando a disponibilidade de alguns municípios, já começou a oficializar a presença de ativistas prontos para “assistir” as mulheres que se apresentam para a interrupção da gravidez. Sou católica e não sou uma fanática dos abortos: mas, ao lidar com a lei, vi em primeira mão o que acontecia no mundo clandestino, e me dói que, entre aqueles que lidam com a “vida”, ninguém pense que o que acontecia aqui entre nós não acontece em países do mundo onde as mulheres não têm direitos. Não são as leis do Ocidente egoísta, consumista e secularizado que são responsáveis pelas ofensas à vida “a partir da célula fecundada” (sem que as guerras jamais sejam mencionadas); e a ausência de autonomia até mesmo sobre os corpos (e almas) das mulheres, esmagadas por um “modelo único” aparentemente “neutro”, que na realidade é patriarcal e machista. Os direitos das mulheres serão benéficos para a sociedade. E para o Vaticano também.
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Sobre a questão dos médicos “sicários”. Artigo de Giancarla Codrignani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU