Tudo é jogo. Mas não um jogo onde o prazer reside no mero ato de jogar, e sim um sistema de sanções e recompensas que interfere em diferentes âmbitos da vida. Chamam isso de gamificação. Aplicativos para aprender idiomas, memorizar lições na escola, para ser mais competitivo no trabalho, para planejar gastos pessoais, sistematizar o tempo livre… Uber, Amazon, Facebook proporcionam aos seus usuários jogos simpáticos que, além de obter valiosas informações, injetam uma competitividade agressiva e estressante.
A reportagem é de Esther Peñas, publicada por ctxt, 09-11-2024.
Adrian Hon (Reino Unido, 1982), fundador da empresa de videogames Six to Start (criadora de alguns tão populares como Zombies, Run!), reflete sobre os perigos, os excessos e a falta de ética de certos processos de gamificação em seu ensaio Te la han jugado (Alianza).
Por que a gamificação triunfou em quase todos os aspectos de nossa vida? Significa que somos muito mais infantis que antes?
A gamificação, em geral, trata as pessoas como crianças, sim. Parte disso é muito visível na sua estética (uso de cores vibrantes, a mensagem sempre apoiada em animações, uso das recompensas) e parte na sua simplicidade de uso, que não requer altas habilidades nem uma grande (nem média) inteligência. Conseguimos jogos muito mais fáceis, mais simples, mais divertidos, e isso é bom. Mas acho que onde a gamificação nos considera mais infantis, e nos trata como tal, é na falta de autonomia e independência que oferece aos usuários. Não permitimos que as crianças tomem decisões importantes porque pensamos que não são suficientemente maduras para isso; com frequência, as manipulamos ou somos condescendentes com elas, e isso é o mesmo que acontece com a gamificação fora do âmbito dos videogames.
Que o nosso mundo se pareça cada vez mais com um jogo significa que ele é cada vez mais virtual, menos real?
Sim. Claro, isso faz parte da tendência ancorada na pós-modernidade e na ‘modernidade líquida’, além dessa ideia de Baudrillard de que nada é real. A novidade é que os jogos são mais interativos e pessoais, e permitem às pessoas viverem em suas próprias bolhas virtuais.
Quais são as consequências de confundir a realidade com um sistema de gamificação?
O perigo é que substituamos nossos próprios valores e motivações pelos que a gamificação nos proporcionou. Um exemplo claro: se nos obcecarmos com aplicativos de fitness, podemos fazer tanto exercício que acabamos nos machucando. Ou, se nos obcecarmos com os programas de recompensas das companhias aéreas ou os do Starbucks, podemos tentar maximizar nossos pontos fazendo voos desnecessários ou comprando cafés sem fim. Também pode haver problemas mais sutis, como interiorizar a ideologia neoliberal, promovida por muitos videogames de um jogador, acreditando, no fim das contas, que somos os únicos protagonistas do universo, capazes de resolver os grandes mistérios ou de mudar o mundo por conta própria, como no QAnon, uma das principais teorias da conspiração.
Originalmente, o jogo era uma das ações lúdicas por excelência, inúteis, na medida em que não tinham valor de troca. O que aconteceu para que o jogo se tornasse o grande avaliador de eficiência e rentabilidade?
Os jogos podem não ter tido um valor de troca no passado, mas sempre tiveram algum tipo de valor social ou de reputação. No entanto, a gamificação se tornou uma ferramenta para que as empresas impulsionem a eficiência e a rentabilidade, sim, sem dúvida. Isso ocorreu por várias razões. A primeira é que os videogames se associaram, em nossa cultura, a características totalmente positivas, desejáveis, inocentes, e a gamificação absorveu esse brilho. A segunda é que a tecnologia da internet e dos smartphones permite que nosso desempenho no trabalho possa ser rastreado a qualquer momento. A terceira razão é a descoberta de que muitos trabalhadores tolerarão (pelo menos por um tempo) o uso da gamificação como uma forma de feedback e motivação para seu desempenho no trabalho, talvez porque a associem a esses sentimentos positivos. O fato de que muitos videogames envolvem acumular pontos ou posses se ajusta muito bem com as empresas que incentivam os trabalhadores a fazerem e trabalharem mais.
A dialética recompensa/punição, de que modo afeta a criatividade e a liberdade humana?
A recompensa e a punição são uma forma muito antiquada de estimular a motivação humana; é fundamentalmente um comportamentalismo radical, como defendido por B.F. Skinner. Temos modelos de motivação melhores que incorporam ideias de autonomia, competência e relacionamento. Essas ideias são mais difíceis de incluir na gamificação básica, que aposta nas recompensas e punições e, portanto, os tipos de comportamentos que são medidos e promovidos com a gamificação frequentemente deslocam a criatividade e a liberdade.
Esse jogo que incorpora o sistema capitalista dinamita a socialização?
Acho que limita a socialização. As pessoas podem se adaptar e encontrar formas de socializar em quase qualquer circunstância, até mesmo em sistemas e competições gamificados. Mas não acho que a gamificação capitalista dê espaço para formas enriquecedoras de socialização, porque são mais difíceis de medir ou ocorrem de maneiras mais sutis.
O fato de que jogaram com a gente significa que há muita sofisticação por parte de quem gamifica nossas vidas ou que estamos menos atentos?
Recuso-me a culpar as pessoas porque alguém jogou com elas. É como culpar as pessoas por não atravessar uma rua rápido o suficiente, quando, na verdade, o que precisamos são semáforos e faixas de pedestres. As pessoas que estão mais conscientes e têm experiência em gamificação aprenderão a ignorá-la ou desativá-la, mas a maioria da população está ocupada com outras coisas e tem muitas distrações para prestar atenção. Os designers de gamificação podem ser muito sofisticados, é verdade. Buscam maximizar a lealdade do usuário e os lucros, e podem realizar experimentos comportamentais em milhões de pessoas de maneiras que surpreenderiam os psicólogos de vinte anos atrás.
Como saber que um jogo está se tornando perverso?
Há jogos perversos, mas principalmente há jogos que não se ajustam ao que acreditamos que vamos obter deles, porque são os jogos que nos controlam e, portanto, que obtêm muito mais informações nossas do que nós daríamos se soubéssemos que estão nos extraindo. Ou jogos que não cumprem nossa expectativa. Isso é difícil de saber quando se está jogando. Alguém que começa a usar Duolingo (um aplicativo para “aprender idiomas”) pode gostar porque torna o aprendizado de palavras estrangeiras um pouco mais divertido, mas, depois de um ano, se dá conta de como seus sistemas gamificados o motivam a passar muito mais tempo do que tinha planejado na aplicação. Saber palavras em outro idioma não implica falá-lo. Talvez percebam que existem formas melhores de aprender. Trata-se de aprender com o tempo.
Que ética a tecnologia deveria ter?
Essa é uma pergunta muito ampla e complexa! Gostei muito de ler um livro que pode responder por mim muito melhor do que eu faria: Technology and the Virtues, de Shannon Vallor, uma filósofa da tecnologia, que fala sobre como a tecnologia pode ser desenvolvida e utilizada para o florescimento humano.
Para sair ileso desse grande jogo, que conselhos pode nos dar?
Tente perceber quando os aplicativos, ou as gamificações de empresas ou organizações estão usando pontos e insígnias para te motivar, e se pergunte se realmente quer fazer aquilo pelo que está sendo recompensado, ou questione-se se “ter mais pontos” é útil para você, e é desejável. E, sobretudo, pondere se há alternativas aos aplicativos gamificados que poderiam ser mais baratas ou mais eficazes.