“A modernidade está constituída sob a bússola do poder”. Destaques da semana

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Cristina Guerini | 20 Julho 2024

Vivemos tempos em que a barbárie demonstra que não conseguimos avançar como civilização e, por isso, muitas vezes não percebemos o outro, os pobres, a natureza e o mundo que nos cerca. Diante às incertezas, promovemos guerras, atacamos os povos nativos e expulsamos os migrantes. A semana começou marcada pelo tiro que poderá consolidar uma vitória de Trump nos EUA. O Brasil ganhou notoriedade pela violência sem fim aos povos indígenas, com ataques em diferentes estados. Permanecemos em guerra, com avanço do militarismo e destruindo o planeta. Esses e outros assuntos nos Destaques da Semana do IHU.

Confira os destaques na versão em áudio.

Estupidez

Atravessamos uma crise civilizatória sem precedentes. As guerras, a fome, a miséria humana, a violência, a retomada da corrida armamentista e o colapso climático estão no cerne deste imbróglio que nos conduz à possível extinção da vida humana.

Para o escritor Rob Riemen este é o “tempo da estupidez”, porque há uma crise de intelectualidade e um abandono do sentido da Universitas. Na sua última obra, ele soa o alerta: “se continuarmos focando todos os aspectos da nossa sociedade no útil, no utilitário, se continuarmos no que Nietzsche previu como a transmutação dos valores, os principais deles não serão mais os espirituais e a qualidade que dão à vida, mas serão definitivamente substituídos, como estamos vendo, pela obsessão pela quantidade”.

Cilada

Após as últimas eleições do Parlamento Europeu e ao cenário que se desenha no no pleito norte-americano, soa bastante perspicaz a pergunta que Riemen faz: “se as pessoas fossem menos estúpidas, elegeriam as mesmas pessoas que estão no poder?”. Com bem pontua o sociólogo e jornalista Ignacio Ramonet, é fácil cair nessa cilada, pois “o discurso da extrema-direita se torna apetitoso para quem vê o mundo desabar sob os seus pés”. Em Porto Alegre, a capital dos gaúchos, a direita agencia a cidade por meio de "políticas conduzidas pelo ecossistema da direita porto-alegrense". Trata-se de "uma rede entre agentes – pessoas, empresas e organizações – que 'elegem representantes políticos, alteram legislações, instituem políticas públicas, controlam processos decisórios e fazem negócios que impactam profundamente o presente e o futuro da cidade'”.

O sonho acabou

Essa semana o atentado contra Donald Trump poderia desenhar uma mudança nas eleições dos EUA, mas não é isso que as pesquisas recentes têm mostrado. Mas, independente do ataque, os Estados Unidos já são uma potência em declínio. “Trata-se agora, apenas, de prolongar um morticínio muito lucrativo e, se possível, criar outros", analisa Cesar Benjamin. O atentado ainda alimentou a figura messiânica do candidato Republicano, que foi “protegido pela mão de Deus” e escolhidos pelos evangélicos – e também por muitos católicos conservadores – para presidir o país.

🇺🇬🇺🇸 A melhor reconstituição do atentado a Trump foi feita por crianças do Uganda. pic.twitter.com/GvHC9LirOP

Convenção Nacional Republicana

A escolha de J. D. Vance para vice na chapa de Trump foi vista com entusiasmo pelos católicos. A Convenção Nacional Republicana aconteceu essa semana, mas podemos dizer que faltou legenda para descrever todas as bizarrices que assistimos. Foi um sinistro show que enalteceu o discurso nacionalista cristão. Mas, o ápice do evento foi discurso de Trump, que mais uma vez trouxe um vazio de mentiras e muitos ataques. Sobrou até para o presidente de El Salvador, que tem violado sistematicamente os direitos humanos, inclusive prendendo e torturando crianças.

 

 

Eliminação dos migrantes

A eleição nos EUA recupera o lema “America First”, que visa exterminar os inimigos internos: migrantes. A Europa também não tem uma boa política migratória e a presença da Primeira-Ministra italiana Giorgia Meloni na Líbia mostra que “os migrantes são vítimas de poderes impiedosos dos quais a Europa é aliada e apoiadora. Eles, em fuga, lutam contra uma realidade concreta. Nós, deste lado do mar, lutamos com entidades imaginárias, fantasmas gerados pela propaganda política, e esses fantasmas são reais”, coloca Domenico Quirico.

Aporofobia e a fábrica de inimigos forjada no autoritarismo

A definição do filósofo fala por si: “a aporofobia é muito mais que xenofobia. Não se despreza e odeia a todos os estrangeiros, mas aos estrangeiros pobres”. Para Castor Ruiz, “em cada país há uma certa singularidade na fabricação do inimigo ou no tipo de inimigo que se fabrica para legitimar a aceitação social dos neoautoritarismos. Destaca-se a estigmatização da figura do emigrante, como sendo a ameaça social mais grave que muitas sociedades enfrentam. Como consequência, projeta-se nos migrantes todos os estigmas da figura de um inimigo que irá destruir a ordem social dos países nos quais eles estão migrando. Na perspectiva do inimigo, o migrante foi projetado como uma ameaça para a sobrevivência da ordem social e como consequência se tornou a causa principal dos maiores problemas sociais como desemprego, inflação, superávit público, gastos sociais, etc. Uma grande parte dos novos movimentos autoritários se consolidaram fabricando a xenobofia como uma arma política e o migrante como o principal inimigo da ordem social e da pátria”.

É guerra...

...contra os povos indígenas. Enquanto fica cada vez mais claro que precisamos adotar saídas ancestrais para tentar salvar o que resta no planeta, o Brasil declarou guerra contra os povos indígenas. A semana ficou marcada por violentos ataques sistemáticos aos indígenas de Norte a Sul no país. A fiscalização até aumentou, mas não impediu que os garimpeiros continuassem a degradar as terras Yanomami. O povo Parakanã, mesmo após a desintrusão, segue sendo ameaçado.

Salvar os animais

Continuamos com o Pantanal ardendo e seco. Nesse cenário, urge salvar a fauna das chamas para preservar o futuro do bioma. Muitos artistas se uniram em defesa dos animais silvestres na música “Defaunação”, alertando para os perigos da extinção dos animais. Além disso, o consumo de carne e o sofrimento dos animais também foram colocados em perspectiva por aqui.

Tchau, mundo! Estamos de partida

Apocalíptico, mas pode ser nossa realidade em breve, segundo o editor da revista Nature: "Chegamos muito recentemente à Terra e vamos embora em breve". Pelo andar da carruagem, em especial por aqui, temos a impressão que a profecia vai se concretizar. “Se o modelo atual do agronegócio for mantido, com pressão sobre o capital natural e com grandes impactos ambientais, a atividade pode ruir. A viabilidade de 74% das atuais terras agrícolas na fronteira da Amazônia com o Cerrado pode ficar comprometida até 2060”. Belo Monte é outra pedra no nosso sapato, que contribuiu para a destruição a Amazônia e, portanto, para a crise climática. Na esteira das ações humanas, agora a exuberante floresta tem seus rios entrando em ebulição e botos morrendo de calor. É a amplificação da crise climática. É o apocalipse.

Bússola do poder

“A modernidade está constituída sob a bússola do poder”. A frase dita por um colega faz menção ao frenesi provocado pela nova corrida armamentista. A OTAN quer a guerra e, para isso, acelera o relógio que pode culminar na terceira guerra mundial. Os Euromísseis estão de volta, agora ainda mais mortais, graças a ajuda da Inteligência Artificial – IA. As previsões indicam que na próxima década 30% dos soldados serão robôs. Uns estão se preparando para a guerra e outros já estão afundados nela.

Gaza e Ucrânia

A situação de Gaza se torna cada dia mais desumana e vil. Bebês e crianças continuam sendo vítimas, enquanto os soldados israelenses seguem com forte ofensiva de ataques aos civis. Um drama que não passa na TV e que se consolida como um genocídio brutal. A Ucrânia segue dependendo dos aliados para continuar duelando com a Rússia, esta que, segundo Harari, pode ser o ator que vai fazer surgir um novo imperialismo.

 

Inimigos internos: uma criança estuprada a cada seis minutos

Os dados do Fórum de Segurança Pública mostram que nos Brasil eles estão dentro dos lares de milhares de meninas e crianças: mais de 60% dos casos de estupro de vulneráveis acontecem dentro de casa. São 83.988 meninas abusadas no país; uma a cada seis minutos. A maioria delas é negra e 61,6% é de crianças até 13 anos. Na esteira dessa epidêmica violência de gênero, conversamos com a professora Taysa Schiocchet, que foi taxativa: "vivemos uma cultura do estupro". Ela apontou as falhas do famigerado PL do Estupro, que visa criminalizar as vítimas de abusos que abortarem. A irmã Ivone Gebara voltou a comentar a questão do aborto essa semana.

 Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Condenados à ordem, mas sem progresso”

O sociólogo José de Souza Martins deu mais umas pinceladas no quadro do atraso brasileiro. Para ele, “o Brasil é um País capitalista de um peculiar capitalismo atrasado, marcado por contradições peculiares, subdesenvolvidas, não as contradições típicas das citações e reproduções contidas nos manuais de ideologia política nem nos manuais de economia desenvolvimentista determinantes de uma sociedade condenada à ordem, mas sem progresso”. E falou da tarefa que as ciências sociais têm a cumprir para interpretar a sociedade: “as ciências sociais, entre nós, não têm enfrentado o desafio de interpretar nossa sociedade como ela é, optando sobretudo pela interpretação do que ela não é e provavelmente não será. Nós tendemos a analisá-la como se fosse de fato uma sociedade capitalista porque achamos que o é. Mas achar não é próprio da ciência”. Martins já falou ao IHU sobre o assunto: acesse aqui.

Caminho da paz ao estilo Picasso

“Construamos alternativas de êxodo da atual civilização da mercadoria e do desperdício como faria Picasso, quando pintava suas grandes obras. O artista espanhol costumava sobrepor várias perspectivas diferentes da mesma imagem até criar uma pintura onde o belo e o abstrato se uniam com maestria. Reconhecendo a complexidade da tarefa, utilizemos o seu método para propor múltiplas opções – sobrepostas, temporárias e sucessivas – diante da falta de sentido criada pela civilização do capital”. A proposta de um caminho alternativo é dos juízes do Tribunal dos Direitos da Natureza, Alberto Acosta e Enrique Viale.

Entre tropeços e esperanças

As discussões em torno do Sínodo sobre a Sinodalidade continuam dividindo opiniões. Temos os conservadores atacando abertamente o caminho sinodal. Para outros, o documento de trabalho divulgado recentemente traz emoção. Enquanto há teólogos que alegam que “a Igreja institucional continuará repetindo velhos moldes vazios, formas e palavras sem alma nem vida”. O debate seguirá e nós continuaremos acompanhando.

Desejamos uma boa semana a todas e todos!