07 Fevereiro 2024
As reações ao controverso documento do Vaticano sobre as bênçãos para casais do mesmo sexo e divorciados recasados levantam questões sobre o desenvolvimento da sinodalidade no catolicismo global.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University. O artigo foi publicado por La Croix International, 01-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fiducia supplicans, a declaração “sobre o sentido pastoral das bênçãos” que o Dicastério para a Doutrina da Fé publicou no dia 18 de dezembro passado, ocupou o debate eclesial durante este período entre a primeira sessão da assembleia sinodal sobre a sinodalidade que ocorreu em outubro de 2023 e a segunda sessão que ocorrerá em outubro de 2024.
Mas isso não significa que a declaração seja um documento sinodal. Na verdade, seu caráter sinodal é altamente discutível, por uma série de razões.
A primeira razão tem a ver com a forma como o documento surgiu e quem o escreveu. A declaração não expressa um consenso sinodal sobre as bênçãos para casais em “situações irregulares”. Não existe tal consenso neste momento. E não faz nenhuma referência ao Sínodo sobre a Sinodalidade. Fiducia supplicans contém apenas três citações da Amoris laetitia, a exortação pós-sinodal que o Papa Francisco emitiu em 2016, após as duas assembleias sinodais em 2014 e 2015, sobre o matrimônio e a família.
A nova declaração não parece ser um documento colegial, já que a Cúria Romana e as conferências episcopais não foram consultadas nem envolvidas em sua elaboração. O documento foi assinado pelo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, cardeal Víctor Manuel Fernández, e pelo secretário da seção doutrinal do dicastério, Mons. Armando Matteo. Depois, foi aprovado por Francisco “ex auditientia”.
Mas o fator mais importante para avaliar a natureza sinodal da Fiducia suplicans está em seu modo de recepção. Especialmente naqueles países onde os bispos e até mesmo conferências episcopais inteiras expressaram descontentamento ou oposição, ouvimos apenas os prelados, e não muito o povo. Isso foi visível especialmente na África, o continente que é o ponto crítico desta crise relativa à declaração.
O cardeal congolês Fridolin Ambongo Besungu, presidente do Secam (Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar), publicou uma declaração no dia 11 de janeiro em nome de seus coirmãos africanos. Ela se chamava “Nenhuma bênção para casais homossexuais nas Igrejas africanas”.
Ambongo, franciscano capuchinho e arcebispo de Kinshasa (República Democrática do Congo) desde 2018 e um dos nove conselheiros do Papa Francisco como membro do Conselho dos Cardeais (C9) desde outubro de 2020, observou que sua declaração “recebeu a aprovação” do papa e do cardeal Fernández. Isso sugere que a África foi dispensada da aplicação da declaração Fiducia suplicans, embora os contornos formais dessa dispensa especial permaneçam pouco claros.
Deixando de lado por um momento as considerações pastorais e doutrinais, o caso africano é interessante, porque levanta a questão do que é necessário para que um documento da Igreja (seja ele emitido pelo Sínodo ou não) seja recebido sinodalmente. Também expõe os desafios eclesiológicos da sinodalidade.
O cardeal Ambongo ignorou as posições mais positivas expressadas por algumas conferências episcopais na África, como a do Quênia, da África do Sul e – após a declaração do presidente do Secam em 11 de janeiro – dos bispos do Magrebe.
O cardeal de 64 anos impediu uma recepção sinodal do documento do Dicastério para a Doutrina da Fé ao adotar uma forma não colegial e ao mesmo tempo monárquica de reagir à declaração. A recepção sinodal de um documento da Igreja requer, entre outros fatores, tempo, espaço, vozes e linguagem.
Tempo: a reação negativa do cardeal Ambongo e das conferências episcopais que criticaram Fiducia supplicans foi quase instantânea e não concedeu às suas Igrejas locais (provavelmente também a alguns dos bispos) um tempo suficiente para estudar o texto. Essa forma imediata de tomar decisões representa uma recepção estritamente episcopal de um documento, e não sinodal.
Espaço: sinodalidade também significa reconhecer que vivemos em uma Igreja Católica maior e mais global, na qual, mesmo dentro da mesma Igreja continental ou nacional, existem culturas e sensibilidades muito diferentes. A sinodalidade é uma polifonia que exige a escuta de todas as diferentes regiões do corpo eclesial.
Vozes: uma recepção (ou rejeição) que vem apenas de (alguns) bispos não pode ser definida como uma recepção sinodal. A sinodalidade aceita o fato de que os bispos não são os únicos que falam em nome de suas Igrejas locais. Mas como as outras vozes – do clero, dos religiosos e das religiosas professos, dos leigos e das leigas – podem se expressar e ser ouvidas?
Temos conferências episcopais nacionais, mas as conferências de religiosos e religiosas não têm a mesma autoridade ou poder. E não existem conferências de leigos e leigas católicos (exceto na Alemanha e em algumas outras agregações que lutam para suprir o papel histórico da Ação Católica ou da JOC – Juventude Operária Cristã [no Brasil, pode-se destacar, talvez, o papel do Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB; n.d.t.]).
Linguagem: se o Vaticano II foi um “evento linguístico”, a sinodalidade é um processo linguístico. Em uma Igreja sinodal, a linguagem da crítica e até mesmo da oposição (e da rejeição) de um documento oficial emitido por Roma e pelo papa deveria ser caridosa – para dizer o mínimo – especialmente quando é expressada por um membro do colégio dos bispos e cardeal. Foi perturbador ouvir o cardeal Ambongo, líder de uma conferência episcopal continental e membro do C9, citar Vladimir Putin e a retórica da guerra anti-Ocidente do presidente russo como argumento em apoio à sua posição contra as bênçãos aos casais católicos do mesmo sexo.
Maria Elisabetta Gandolfi, editora-chefe da revista católica italiana Il Regno, destacou que o cardeal congolês conseguiu – em seus comentários de opinião – “associar Roma ao chamado Ocidente”, “despertar os fantasmas nunca enfrentados do colonialismo e do decolonialismo”; “ignorar toda consideração sobre a relação Igreja e sociedades democráticas” e “fazer de um tema moral e social” uma bandeira populista que só semeia divisão.
Ao longo da última década, descobrimos como a sinodalidade é realmente complicada. “O Sínodo dos Bispos é o ponto de convergência deste processo de escuta realizado em todos os níveis da vida da Igreja”, disse o Papa Francisco em 17 de outubro de 2015, naquela que pode ser descrita como a sua carta magna sobre a sinodalidade. “O caminho sinodal começa por escutar o povo, que ‘participa também da função profética de Cristo’, de acordo com um princípio caro à Igreja do primeiro milênio: ‘Quod omnes tangit ab omnibus tractari debet’”, afirmou.
Esse antigo princípio afirma que “o que afeta a todos deve ser aprovado por todos”. Mas, no que diz respeito à Fiducia supplicans, tem sido particularmente difícil saber se e como foi dada a “todos” na Igreja a oportunidade de receber esse documento de forma sinodal. O que aconteceu depois do dia 18 de dezembro parece mais uma réplica da recepção ou da não recepção da Humanae vitae, a controversa encíclica sobre a vida humana que Paulo VI publicou em 1968. Mas há duas diferenças importantes.
A primeira diferença é que as conferências episcopais da época adotaram uma linguagem muito mais cautelosa em seus esforços de adaptar o ensino do falecido papa sobre a contracepção às expectativas de suas Igrejas locais (por exemplo, a “Declaração de Winnipeg” da Conferência dos Bispos do Canadá).
A segunda diferença é que, em 1968, as vozes do laicato católico podiam ser ouvidas de forma mais nítida. Eles articularam sua discordância em relação à Humanae vitae, mas, ao fazê-lo, deixaram claro que não se opunham abertamente a todo o pontificado de Paulo VI.
Desta vez, a recepção da Fiducia supplicans foi dominada por alguns bispos e por vozes individuais dos profissionais do catolicismo anti-Francisco entre os leigos e as leigas na mídia. Francisco e o cardeal Fernández reagiram às suas críticas de forma defensiva, o que tornou a posição dessa declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé pouco clara. E, neste ponto, deveria ser explicado por que a África pode receber uma isenção nessa questão, enquanto a Alemanha ou outros países não podem obter tal isenção em outras questões.
O fato é que o caminho da Igreja Católica neste século não é apenas de uma conversão sinodal, mas também de uma conversão sinodal dentro de um processo turbulento de globalização do catolicismo. Isso tem sido muito visível durante o pontificado de Francisco e especialmente desde a publicação de Fiducia supplicans.
No mapa-múndi do catolicismo hoje não existem apenas culturas extremamente diferentes no que diz respeito à sexualidade, às pessoas LGBTQ e ao gênero. Existem também eclesiologias vividas de forma muito desigual.
A sinodalidade exige uma dinâmica diferente para assegurar a participação dos diversos componentes eclesiais na produção e na recepção do ensinamento da Igreja. O “quem é quem” das vozes católicas influentes na Igreja dos Estados Unidos não é o mesmo para a Igreja no Congo, na Suécia ou na Coreia.
Os bispos, o clero e o laicato (e as mídias católicas com uma agenda teológico-política) desempenham papéis muito diferentes em Igrejas diferentes. Mas alguns dos bispos, como o cardeal Ambongo, aparentemente ainda detêm uma voz, um voto e um poder de veto que outros bispos e outros membros da Igreja não têm.
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Fiducia supplicans e a não recepção de um documento não sinodal. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU