Uma nova estratégia para as lutas climáticas. Entrevista com Andreas Malm

Integrantes do movimento Ende Gelände (Fim de linha). (Foto: Tim Wagner | 350 .org – Flickr CC)

26 Setembro 2022

 

Grandes manifestações não bastam, sustenta pensador ecossocialista. Ele sugere causar danos às empresas poluidoras e sacudir agenda política com projetos como Green New Deal – que associam defesa do ambiente à criação de ocupações dignas.

 

A entrevista é publicada por Contretemps e reproduzida por Outras Palavras, 22-09-2022. A tradução é de Maurício Ayer.

 

Em 2021, o ativista e pesquisador sueco Andreas Malm, um personagem de influência crescente nos movimentos ambientalistas da Europa, publicou um livro provocador. “Como explodir um gasoduto: aprendendo a lutar num mundo em chamas”[1] era o título. Malm, que tem 46 anos e é professor de Ecologia Humana na Universidade de Lund, disse ser necessário perturbar o cenário atual. A crise climática escancara-se. O planeta está em chamas ou sob as águas, mas os governantes recusam-se a agir e as corporações trabalham para que tudo permaneça como é. A crítica sem dentes acaba se convertendo em mera retórica, sustentou ele.

 

A trajetória teórica e militante de Malm começara antes. Em 2010, ele filiou-se a uma organização trotsquista sueca que mais tarde incorporou-se ao Partido de Esquerda. Em 2016, publicou “Fossil Capital”, em que propõe ao ambientalismo deixar de criticar genericamente a indústria e o desenvolvimento – para se concentrar na denúncia dos combustítveis fósseis e na luta pela transição energética. Seus diálogos com ecologistas multiplicam-se. A escritora Naomi Klein, impressionada por suas posições, considerou-o “um dos pensadores mais originais no tema da mudança climática.

 

Na entrevista a seguir, concedida à redação da revista francesa “Contretemps”, é possível conhecer algumas de suas ideias. Malm, que se vê como pensador marxista, julga indispensável envolver os trabalhadores na luta contra a mudança climática – daí seu apoio a propostas como o “Green New Deal”, que articulam a redução das emissões de CO² com garantia de trabalho digno e renovação das infraestruturas. Mas é pouco otimista sobre o papel dos sindicatos (muito aferrados a conservar os postos de trabalho atuais). Vê na juventude, que articulou as greves climáticas dos últimos anos, um sujeito essencial – inclusive porque pode não ter planeta habitável para viver.

 

Mas julga ser necessário ir além dos protestos: por maiores que sejam, eles terminam sem impor perdas ao sistema que promove o aquecimento. “Se os governos não são capazes de adotar um tributo sobre a emissão de CO², nós devemos fazê-lo”, diz ele, ao sugerir ações que causem prejuízos reais às corporações diretamente ligadas à poluição.

 

Também parece atenta e refinada sua visão sobre o “tecnologismo”, a crença em que a catástrofe ambiental será solucionada, de alguma maneira, pela introdução de novas técnicas. Malm vê na geoengenharia – grosso modo, a tentativa de criar espelhos na atmosfera, que reflitam a luz solar e provoquem um resfriamento do planeta – um risco ambiental e político. Os Estados muito poderosos que fossem capazes de implantar o processo ganhariam poder geopolítico gigantesco, frisa ele. E ao apenas mitigar os efeitos da queima de combustíveis, sem enfrentar suas causas, a “alternativa” (que jamais foi testada) colocaria o planeta sob risco de um aquecimento súbito e dramático, caso deixasse de ser eficaz.

 

Já o sequestro de carbono parece a Malm uma solução possível em caráter de emergência – desde que não se preste a apenas reciclar os fósseis – como quando se captura CO² da atmosfera apenas para transformá-lo, por exemplo, em combustível sintético para aviação, ou matéria-prima para fertilizantes…

 

Supondo que os movimentos climáticos tornem-se potentes como Malm imagina possível, a quem eles deverão se dirigir, para alcançar mudanças efetivas? O ativista sueco não tem dúvidas: na atual etapa do desenvolvimento humano, os Estados serão os agentes decisivos para mudanças efetivas. “Mudanças individuais no estilo de vida nunca serão a resposta, pois o que você pode fazer nesta condição tem um efeito extremamente limitado”, diz ele. Que, no entanto, pensa ser um equívoco desprezar as mudanças de comportamento. “Não é uma questão de impacto, mas de credibilidade: se estamos defendendo uma mudança total na sociedade, seria hipócrita não fazer mudança em nosso próprio modo de vida”.

 

E não se trata de buscar “pureza”, pois “não há vida boa no interior da má”, diz o pesquisador, citando Adorno. “Se alguém está preso dentro de um sistema fundamentalmente podre, é muito difícil purgar a si mesmo e viver de forma plenamente sustentável”, acrescenta. Ou seja: a prova dos nove não está na “bondade” – mas na luta. E sobre esta, Malm tem muito o que dizer, na entrevista a seguir. [A.M.]

 

Eis a entrevista.

 

Ao tratar de questões estratégicas e táticas da luta climática, você mencionou a questão do papel dos trabalhadores e do movimento trabalhista como eles são (e eles são obviamente muito diferentes de país em país). Você desenvolveu a ideia de bloquear as infraestruturas e empresas fósseis mais destrutivas; como você vê isso em relação aos trabalhadores – não apenas nesses setores, mas também de forma mais ampla – e o movimento trabalhista como você o conhece – seja o exemplo sueco ou de outros países?

 

Formulei essa questão de uma maneira um tanto infeliz, há alguns dias, e acabei dando a impressão de estar desqualificando excessivamente os sindicatos. Não era minha intenção. Minha experiência concreta em relação aos sindicatos nos últimos anos foi bastante limitada. Meu horizonte é o norte da Europa. Na Suécia, os sindicatos são completamente indiferentes à questão climática, provavelmente mais do que na Noruega e na Dinamarca.

 

Os sindicatos suecos são totalmente ignorantes e desinteressados ​​neste assunto, e também totalmente incapazes de lutar pelos interesses de seus membros. Não há mais greves na Suécia. Esta é provavelmente a exceção e não a regra, mas o nível da luta de classes na Suécia é tão baixo que, do meu ponto de vista, é extremamente difícil imaginar que, de repente, os sindicatos suecos estejam dispostos a se tornar um ator importante na política climática.

 

Na Alemanha, onde tenho uma experiência um pouco mais concreta de ativismo climático, a situação é um pouco mais sutil. O movimento Fridays for Future em 2019, foi mais forte e mais importante na Alemanha do que em qualquer outro lugar. Houve um momento no outono de 2019 em que havia um componente sindical nessas greves e o grande sindicato do setor público convidou seus membros a aderir. Por outro lado, temos uma experiência muito negativa da luta em torno do carvão na Alemanha – que é realmente uma luta fundamental em todo o campo europeu da política climática – onde os grandes sindicatos resistiram aos apelos por um abandono do carvão e aderiu ao combustível.

 

Desta experiência surgiu uma posição que foi articulada por um bom amigo e camarada, Tadzio Müller, que foi uma espécie de organizador, estrategista e pensador chave do Ende Gelände[2]. Ele agora praticamente diz que vê a classe trabalhadora nos “países do norte” como mais ou menos uma parte do inimigo – ele pensa que a classe trabalhadora organizada está tão implicada na economia existente que ela só pode defender o carvão e coisas similares, como ela geralmente tem feito.

 

Há uma posição oposta que é muito claramente enunciada por um amigo em comum, Matt Huber, em seu recente livro Climate Change as Class War: Building Socialism on a Warming Planet (Mudança Climática como Guerra de Classes: Construindo o socialismo em um planeta em aquecimento). Ele afirma que a única esperança da política climática é mobilizar as forças do movimento trabalhista organizado e apenas alcançando a classe trabalhadora – incluindo empregos industriais – que podemos fazer progressos no fronte do clima. Portanto, a ideia de que a classe trabalhadora organizada é o único sujeito concebível de uma revolução climática.

 

Essas são duas posições antípodas – e me vejo defendendo uma espécie de posição intermediária entre as duas. Não posso aceitar a ideia de que a classe trabalhadora seja parte do inimigo – nem mesmo os carvoeiros. Mas, por outro lado, não acredito muito na ideia de que o movimento operário organizado possa ser o principal impulsionador da frente climática. Acho que o principal impulsionador dessa luta será e é um movimento climático que não se define em torno da classe social.

 

Penso que existem três caminhos principais que podem levar alguém a se interessar pelas questões climáticas: 1) ter alguma experiência pessoal com desastres climáticos que estão se tornando cada vez mais comuns; 2) ter conhecimento da gravidade da crise sem tê-la vivenciado pessoalmente, o que não é muito difícil e não exige doutorado ou qualquer grau universitário; 3) ser movido pela solidariedade com as pessoas que sofrem com os desastres climáticos em todo o mundo.

 

Acho que esses são os três principais caminhos para o engajamento na luta contra as mudanças climáticas e nenhum desses caminhos passa necessariamente pelo ponto da produção. Em vez disso, há uma espécie de funil que atrai pessoas para o movimento climático de diferentes pontos da paisagem da sociedade de classes.

 

O movimento que emergiu em 2019 foi amplamente definido não por questões de classe, racialização ou gênero, mas sim pela questão da idade. Foi principalmente um fenômeno juvenil – com as greves climáticas escolares em particular – e há uma lógica nisso, porque a crise climática tem um aspecto temporal muito específico: são os jovens que terão que lidar com ela pelo resto de suas vidas, enquanto os idosos podem ter se beneficiado da economia de combustível fóssil e não verão tanto os danos.

 

Acho que temos que teorizar e, até certo ponto, aceitar e entender que a questão da idade será significativa nas mobilizações que virão contra as mudanças climáticas. Acho que Matt Huber e outros que têm ideias semelhantes às dele estão corretos em que o movimento climático precisa de uma aliança com a classe trabalhadora e com segmentos do movimento sindical organizado para reunir força suficiente para reverter a situação. O movimento climático deve garantir que suas orientações políticas sejam compatíveis com os interesses da classe trabalhadora e que elas possam convergir com esses interesses.

 

Mas outra coisa é colocar todos os ovos na cesta de uma virada industrial ou de uma proletarização do movimento climático, o que, na minha opinião, seria um impasse estratégico. A promessa do Green New Deal e de todas essas iniciativas que surgiram nos últimos anos – que infelizmente não tiveram sucesso, mas isso não significa que sejam inúteis ou fadadas ao fracasso – de que a transição climática caminha lado a lado com a melhoria o padrão de vida dos trabalhadores e o fortalecimento do poder de barganha na posição política da classe trabalhadora é algo que deve ser perseguido.

 

Quando se trata de questões táticas concretas sobre as relações com os trabalhadores durante um bloqueio, a experiência alemã me mostrou que seria um grande erro – um erro operarista, para usar o termo – priorizar boas relações com os trabalhadores/as do carvão em vez de um bloqueio efetivo que prejudica temporariamente os interesses desses trabalhadores porque você fecha suas minas por alguns dias, por exemplo.

 

Muitas iniciativas foram tomadas para tentar estabelecer contato e diálogo com os trabalhadores do carvão na Alemanha, mas elas falharam, especialmente no leste do país, onde os trabalhadores do carvão tendem a se voltar para a extrema direita – a Alternative für Deutschland, AfD – para defender seus interesses, porque a AfD quer continuar minerando carvão para sempre e nega a existência da crise climática. Mas não devemos absolutamente desistir da ideia de que o tipo de transição que queremos deve garantir que os/as trabalhadores/as de setores que devem ser completamente desmantelados obtenham empregos equivalentes ou melhores, de preferência nos locais onde vivem para que não precisem se mudar. Esta deve ser uma parte fundamental da transição.

 

Mas, no longo prazo, não se pode esperar que os/as trabalhadores/as da indústria de combustíveis fósseis tomem a iniciativa de fechar esse setor – uma abordagem marxista de base nos ensina que seu interesse de classe imediato é, obviamente, manter seus empregos. A iniciativa de fechar este setor deve, portanto, vir de fora e o bloqueio é uma manifestação disso: viemos de fora e queremos fechar esse setor porque é necessário. Mas não queremos fazer desses/as trabalhadores/as nossos/as inimigos/as e não queremos considerá-los/as como tal – é melhor dizer-lhes que, infelizmente, eles/as estão empregados/as em um setor que deve ser fechado, mas que exigimos que a transição garanta que eles consigam empregos equivalentes ou melhores ali onde vivem.

 

Eu realmente me dei conta do erro que cometi no outro dia – ao dar a impressão de desqualificar os sindicatos – quando participei do workshop sobre ecossindicalismo, durante o qual eu ouvi vários casos – alguns dos quais eu conhecia – de trabalhadores/as de fábricas propondo uma reconversão de sua produção.

 

Um camarada da seção sueca da Quarta Internacional fez um trabalho absolutamente heroico no sindicato dos metalúrgicos da indústria automobilística por décadas; ele tentou estabelecer a ideia de que os trabalhadores automotivos podem salvar seus empregos propondo uma conversão de suas fábricas em locais de produção de coisas como caixas elétricas ou turbinas eólicas ou qualquer outra coisa que pudesse ser usada para a transição. Infelizmente, ele não avançou porque está isolado e a burocracia sindical exerce o controle total.

 

Acompanho seus esforços há duas décadas, por assim dizer, e ele está batendo a cabeça contra a parede da burocracia sindical tentando fazer algo com essa ideia. Eu meio que parei de acreditar nisso porque não produziu nenhum resultado; mas no caso de produzir resultados, obviamente eu ficaria extremamente entusiasmado e feliz por estar errado. Nada me deixaria mais feliz do que a divulgação desse tipo de exemplo de trabalhadores de fábrica pensando na transição e levando-a adiante.

 

Você mencionou a eliminação de dióxido de carbono, que é uma ótima oportunidade para falar sobre geoengenharia. Como Naomi Klein, você alerta muito a respeito. Na mídia em geral, não há muito sobre isso – mas você diz que teme que apareça de repente. O que pensa a respeito? E qual sua opinião sobre a captura-sequestro de carbono?

 

Esta é uma vasta área sobre a qual poderíamos falar por horas. Tenho um projeto de pesquisa sobre este assunto com um colega belga da Universidade de Lund, Wim Carton. No próximo outono, estaremos pesquisando sobre vários aspectos da eliminação do dióxido de carbono.

 

Publicaremos um livro pela editora Verso, a ser lançado na primavera, que abordará tanto a eliminação de dióxido de carbono quanto a geoengenharia solar, e cujo título provisório é Overshoot: Climate Politics When It’s Too Late (Além do limite: Política climática quando é tarde demais). Passei os últimos dois meses escrevendo sobre geoengenharia solar e tentando entendê-la. Pode parecer estranho, mas eu tento usar a psicanálise para entender a geoengenharia solar, porque ela tem um componente de repressão de um problema, como no modelo freudiano de repressão, no qual você empurra algo para fora da consciência para que pareça não existir, mas sob a superfície isso borbulha e, mais cedo ou mais tarde, explode.

 

Você tem que distinguir entre remoção de dióxido de carbono e geoengenharia solar porque eles funcionam de maneiras diferentes. Você está absolutamente certo de que não se fala muito sobre geoengenharia solar. Alguns marxistas vulgares argumentaram que as grandes empresas de combustíveis fósseis promoveriam a geoengenharia solar como uma forma de tocar adiante os negócios como sempre. Isso não aconteceu: nem a ExxonMobil nem qualquer outra grande empresa de combustível fóssil está dizendo nada sobre geoengenharia solar, nenhum governo está defendendo isso e nenhum partido de extrema-direita está promovendo essa ideia – embora durante a era Trump fosse esperado que ele o fizesse.

 

Por outro lado, eliminar o dióxido de carbono funciona de maneira muito diferente. É algo que todas as grandes empresas de petróleo e gás dizem que pretendem fazer como parte de sua propaganda de “emissões líquidas zero”, e você pode ver partidos de extrema-direita defendendo o plantio de árvores e coisas assim. Também há muitas startups e empresas capitalistas que veem a eliminação de dióxido de carbono – especialmente a captura direta da atmosfera – como um novo negócio para produzir bens e lucrar com eles. Portanto, há esse tipo de campo florescente de oportunidades de negócios na remoção de dióxido de carbono, que não existe na geoengenharia solar porque ela não gera novas mercadorias que possam ser vendidas.

 

Há muitas diferenças entre os dois. A remoção de dióxido de carbono, como você sugeriu, será necessária porque a concentração de CO2 na atmosfera já é muito alta. Temos que extrair o CO2 da atmosfera, colocá-lo de volta no subsolo, armazená-lo no subsolo de onde não possa sair – onde estava antes de ser extraído na forma de combustível fóssil e queimado. A única maneira de conseguir isso em larga escala parece ser o uso de tecnologia avançada. Plantar árvores não será suficiente, porque é impossível devolver carbono à parte passiva do ciclo do carbono, debaixo do solo, simplesmente plantando árvores. Plantar árvores afeta o ciclo ativo do carbono, mas para que o carbono seja sequestrado de volta ao solo, onde é geologicamente excluído do ciclo ativo, é necessário algo mais. Uma tecnologia como a captura direta na atmosfera é promissora nesse sentido, pois permite capturar CO2 e mineralizá-lo, ou seja, transformá-lo no estado de rocha que pode ser armazenada sob o solo.

 

Existem instalações na Islândia hoje que fazem isso e é basicamente uma tecnologia comprovada. No entanto, de acordo com nossa análise – Wim e eu escrevemos sobre isso em Historical Materialism – o problema é que essa tecnologia está sendo capturada por interesses privados que não veem potencial de lucro em pegar o carbono e enterrá-lo sob a terra, pois isso significa essencialmente pegar um recurso e colocá-lo fora do ciclo econômico. O que eles podem fazer para obter lucro é capturar CO2 e transformá-lo em um produto como combustível de aviação sintético, ou usá-lo em fertilizantes, ou capturar CO2 e vender como dióxido de carbono para a Coca-Cola – é isso que faz a Climeworks, uma das as grandes empresas de captura direta da atmosfera. Se for transformado em mercadoria, um ganho econômico pode ser obtido, mas isso é apenas reciclagem de carbono, pois ele não é enterrado no solo. Se você quiser colocá-lo no subsolo, você precisa liberar essa tecnologia do limite do lucro – esse é o nosso ponto de vista.

 

A geoengenharia solar, por outro lado, é outra questão. Ela carrega muitos riscos de ruptura do sistema climático. O maior risco, claro, é o chamado “choque de terminação”. Se implantarmos a geoengenharia solar, teremos uma tela de proteção solar, mas continuaremos acumulando CO2 na atmosfera; todo aquele CO2 na atmosfera está apenas esperando para exercer sua força radiativa, seu impacto no clima. Ou seja, se a tela de proteção solar for removida por qualquer motivo – bum! – de uma só vez, todo o CO2 acumulado cria um enorme aumento nas temperaturas. (Imagine água fervente sobre a qual você coloca uma tampa, ela continua fervendo, queima cada vez mais, então você tira a tampa e todo o vapor sai da panela de uma só vez). Isso pode levar a um pico de temperatura desastroso e inimaginável. E a geoengenharia solar apresenta todos os tipos de outros riscos.

 

Portanto, não é algo que deveríamos defender no campo da esquerda, e aqui eu discordo de alguém como Kim Stanley Robinson, por exemplo. Ele é um romancista que escreveu um excelente romance chamado The Ministry for the Future (O Ministério para o Futuro), provavelmente o melhor trabalho de ficção climática até hoje. O autor, no entanto, defende a geoengenharia solar – que figura com destaque neste livro – a partir de uma perspectiva de esquerda. Uma colega minha, Holly Jean Buck, está fazendo a mesma coisa nos EUA: ela escreveu sobre geoengenharia solar e acha que a esquerda deveria vê-la como uma tecnologia potencialmente útil.

 

Não acho útil, acho que nunca devemos defendê-la, mas devemos nos preparar para isso porque é muito provável que comece em breve. Essa probabilidade não vem de uma defesa agressiva – até agora, como dissemos, quase nunca se fala disso – mas de uma lógica que segundo a qual apenas uma tecnologia conhecida é capaz de reduzir imediatamente as temperaturas na Terra.

 

A eliminação do dióxido de carbono teria efeitos após várias décadas. Da mesma forma, se parássemos as emissões imediatamente, não veríamos uma queda nas temperaturas – veríamos primeiro um aumento mais lento, depois talvez se estabilizasse. Se em algum momento for considerado que estamos em situação de emergência total e for preciso fazer algo para reduzir as temperaturas, a única coisa que se pode fazer para obter isso é lançar nuvens de sulfato no ar. Esta é a única opção tecnológica conhecida para conseguir isso.

 

A cada verão, a cada nova temporada de desastres, meu sentimento é: bem, quando será dada a ordem para aplicar a geoengenharia solar? Quando as coisas vão se quebrar, quando o sistema entrará em colapso e quando haverá um senso real de urgência de que – como durante uma pandemia – algo precisa ser feito, e quando haverá aquele momento em que os governos começarão a olhar em volta e dizer: “O que podemos fazer? O oeste dos EUA está pegando fogo”, ou se tornando um deserto, ou toda a Europa está queimando ou outra coisa? E então há apenas uma coisa que pode ser feita.

 

Se acabarmos em tal situação e os aviões decolarem para injetar as partículas de sulfato, não estou dizendo que devemos derrubar esses aviões, sabotá-los ou algo assim. Mas devemos pensar no que seria uma estratégia de esquerda em tal momento, porque essa situação parece cada vez mais provável por razões estruturais estritamente lógicas. Há cada vez mais sinais de que parte da intelectualidade burguesa caminha nessa direção. Por exemplo, existe um think tank chamado Fórum da Paz de Paris, que aspira a ser o equivalente geopolítico do Fórum Econômico Mundial e é presidido por Pascal Lamy, ex-presidente da Organização Mundial do Comércio. Esse grupo criou uma comissão sobre o “passar além do limite” [overshoot, a ideia de que o aquecimento ultrapassará os objetivos de 1,5°C ou 2°C]. Também anunciou há alguns meses que será preciso analisar a geoengenharia, que não tem outro jeito…

 

Muitos esquerdistas e ativistas acreditam que o clima, e mais geralmente o desastre ecológico, é uma razão pela qual devemos abordar a questão do Estado e não apenas focar em alternativas locais. É um fenômeno tão global, tão destrutivo, e vai exigir tantos investimentos e decisões que precisamos de algo como um Estado para agir. Mas então, é claro, vem a questão de que tipo de estado estamos pensando. Você fala um pouco sobre isso em seu livro sobre a pandemia – seria interessante explorar essa questão.

 

Basicamente, acho que a observação está correta. Esta crise, independente da maneira como será tratada, exigirá ação do Estado. A geoengenharia solar seria uma intervenção extrema em todo o sistema planetário e seria realizada por certos Estados. A remoção de dióxido de carbono em grande escala obviamente requer um envolvimento maciço do Estado. Reduzir as emissões também requer intervenção do Estado, porque as reduções terão que ser tão grandes, rápidas e abrangentes que nenhum agente além do Estado será capaz de alcançá-las.

 

Vale a pena enfatizar aqui que todos os cientistas que defendem a eliminação de dióxido de carbono e/ou geoengenharia solar estão cientes de que nada disso funcionará sem uma redução maciça nas emissões. Aqueles que defendem a geoengenharia solar nunca dizem que podemos fazer isso como uma alternativa a reduzir as emissões, eles afirmam que temos que fazer as duas coisas ao mesmo tempo. A questão é: “há real probabilidade de que ambos sejam implementados ao mesmo tempo?” Eles pensam assim, eu acho que é uma ilusão otimista. A razão pela qual aponto tudo isso é que não há saída real para a crise climática sem cortes maciços nas emissões, e estes devem ser extraordinariamente rápidos, profundos e abrangentes.

 

Qualquer que seja o caminho que os Estados tomem, acho que eles estarão sujeitos a mudanças em seu caráter. Se um Estado implementar a geoengenharia solar, ele se tornará extremamente poderoso porque governará o clima do planeta, o que levará a todos os tipos de perigos de autoritarismo e controle extremamente centralizado das condições climáticas em outras partes do mundo. Existem todos os tipos de cenários: a geoengenharia solar pode causar um problema de monção na Índia ou algum outro efeito colateral muito ruim em algum lugar dos “países do sul”. Mas o Estado que pratica a geoengenharia – poderia ser os Estados Unidos, por exemplo – provavelmente continuará a fazê-lo e, portanto, exercerá um poder incrivelmente centralizado sobre a humanidade.

 

Um Estado que empreenda reduções maciças de emissões também pode mudar seu caráter. Ele poderia se tornar autoritário, porque teria que dirigir com força a economia e a sociedade para obter essas rápidas reduções de emissões. Mas também pode haver um aprofundamento da substância democrática desse Estado: por exemplo, se você nacionaliza empresas privadas de combustíveis fósseis, você essencialmente estende a democracia à esfera da produção de energia. Em outras palavras, você a coloca sob controle público e submete um setor da economia a um exercício político democrático. Isso de certa forma vai contra os limites da democracia burguesa, que considera que a democracia é uma esfera estritamente política e que a economia é uma esfera que se administra a si mesma e não deve sofrer interferências.

 

Se você assumir o setor de energia e colocá-lo na esfera política, você meio que estende a democracia à economia. Eu acho que uma transição real requer esse tipo de aprofundamento da democracia e que pode potencialmente tomar a forma de uma ruptura, de uma mudança revolucionária no sentido de que, se quisermos fazer isso, provavelmente teremos que derrotar uma parte muito importante do inimigo de classe. Porque não é como se a Total, a BP ou a Shell fossem desistir voluntariamente e dizer “OK, peguem nossos negócios e nunca mais teremos lucro, apenas desistiremos de nossa linha de negócios e morreremos voluntariamente”. Não é assim que as coisas geralmente acontecem na história.

 

Se quisermos conseguir isso, temos que nos tornar mais fortes do que eles, o que não é pouca coisa, porque eles são muito mais fortes do que nós hoje. Se os vencêssemos, isso não significaria necessariamente uma revolução social total, mas uma mudança nas relações de propriedade que talvez pudesse desencadear um processo que vai além da ordem das coisas atuais.

 

Além da questão do Estado e das iniciativas locais, há a questão do papel do indivíduo. Há uma narrativa frequentemente apresentada por corporações e governos de que é responsabilidade primordialmente dos indivíduos resolver o desastre ecológico. Mas às vezes também há pressão nos círculos ativistas para viver e agir de forma diferente.

 

Esta é uma pergunta que continua surgindo e com a qual lidamos o tempo todo. No geral, acho importante enfatizar que as mudanças individuais no estilo de vida nunca serão a resposta e o que você pode fazer como indivíduo tem um efeito extremamente limitado. Acreditar que eu, como consumidor, posso mudar as coisas fazendo compras diferentes é capitular a um discurso burguês sobre a sociedade que é fundamentalmente errado. Em primeiro lugar, como consumidores, temos um poder extremamente limitado para mudar. E o fato de agirmos como consumidores é fundamentalmente desigual no sentido de que é o consumidor mais rico que tem mais influência: não podemos basear nossa orientação política em nossa própria riqueza. Um consumidor da classe trabalhadora pode não conseguir – ou não ter tempo – para comprar a alternativa mais cara e ambientalmente sustentável.

 

Por outro lado, seria o erro oposto pensar que o que você faz como indivíduo não importa. Não é uma questão de impacto, mas de credibilidade: se estamos defendendo o comunismo de guerra ecológica ou uma transformação total da sociedade, seria hipócrita que eu ou qualquer outra pessoa que pleiteie nessa direção não faça nenhuma mudança em seu próprio estilo de vida e se permita pegar um avião em qualquer oportunidade ou comer carne sem considerar o impacto disso, por exemplo. Dizer que não importa o que eu faça como indivíduo e que posso fazer o que quiser, mas que ao mesmo tempo sou a favor de uma mudança total da sociedade, não é o caminho. Devemos praticar pelo menos um pouco do que pregamos.

 

Mas há uma frase de Adorno que você já deve ter ouvido antes: “Não há vida boa no interior da má”. Para mim, isso significa que, se alguém está preso dentro de um sistema fundamentalmente podre, é extremamente difícil limpar ou purgar a si mesmo e viver de maneira plenamente sustentável. É praticamente impossível, a menos que você largue tudo e viva sozinho como um caçador-coletor na floresta para escapar da imundície da civilização industrial capitalista. Não podemos lutar pela pureza total, é impossível porque queremos fazer parte da sociedade e queremos mudá-la – não queremos ficar isolados fora dela. E enquanto se está dentro da sociedade, que é um pré-requisito para mudá-la, é preciso fazer concessões a ela. Isto é o que sempre aconteceu em nossas lutas: os trabalhadores estão em uma relação de dependência com seu empregador e recebem salário de seu empregador; eles lutam contra seu empregador, mas ainda estão em uma relação de dependência e não podem escapar dela tão facilmente. Da mesma forma, estamos presos a um sistema que nos torna consumidores de combustíveis fósseis e não podemos fugir completamente dele.

 

O que isto significa para cada um de nós é que temos que negociar isto em nossas próprias vidas e tomar decisões para determinar um equilíbrio, o que é a coisa certa a fazer. Aqui, a coisa que mais aparece é o avião, porque voar é a pior coisa que você pode fazer como consumidor privado em termos de emissões, e é também um ato ao qual às vezes é difícil de resistir. Em dezembro passado, tive que ir ao Egito porque é um país com o qual tenho laços. E pela primeira vez na história da humanidade, não é possível entrar em um barco no norte do Mediterrâneo para ir para o sul – não há barcos para o Egito! É estranho porque é assim que as pessoas viajam há milênios, por exemplo, entre o Egito e a Itália, mas não é mais possível porque toda uma sociedade capitalista impôs a aviação como o único meio de transporte disponível.

 

O que eu faço então? Eu fico em casa e digo que não posso ir para o Egito porque só há voos? Peguei um voo e fui para lá. Entretanto, quando discuti como chegaria a este acampamento [no centro da França], primeiro me disseram que os palestrantes eram convidados a pegar o meio de transporte mais barato para vir. No meu caso, isso teria significado pegar um voo, mas isso não teria parecido certo – eu me esforço para evitar pegar voos na Europa.

 

Então me disseram que um ônibus da delegação dinamarquesa estava saindo de Copenhague, aí, claro, eu o peguei, porque era a melhor coisa a fazer. Mas não creio que haja uma regra geral sobre como lidar com estas questões na vida de alguém, exceto para tentar evitar emissões excessivas e para evitar escolhas de emissões intensivas sempre que possível. Naturalmente, isto tem que ser equilibrado com outros fatores – os projetos políticos em que se está envolvido, ligações familiares, etc. – que podem afetar a maneira como se vive. Em qualquer caso, precisamos nos afastar da ideia de que nossas ações individuais são o que mudará a sociedade, e da ideia de que alguém pode tornar-se puro e livre do pecado e da culpa nesta sociedade.

 

Notas:

 

[1] How to Blow Up a Pipeline: Learning to Fight in a World in Fire, Verso Books, Londres, disponível aqui.

[2] Movimento alemão de desobediência civil que ocupou minas de carvão para despertar atenção para os riscos da mudança climática. Seu nome pode ser traduzido como “Fim de linha”. Ver na Wikipedia, disponível aqui.

 

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