19 Junho 2021
Andreas Malm (Fässberg, Suécia, 1977) não é mais um desconhecido. Os livros de Malm, professor de ecologia humana na Universidade de Lund e membro do conselho editorial da revista Historical Materialism, foram traduzidos para vários idiomas.
No ano passado, foram publicados: Qui apagarà aquest incendi? Història i perspectives davant l’emergència climàtica (Tigre de Paper) e El murciélago y el capital: coronavirus, cambio climático y guerra social (Errata Naturae).
Pesquisador sobre a emergência climática, escritor e jornalista, na semana passada, esteve em Barcelona para apresentar Capital fósil (Capitán Swing).
Para Naomi Klein, Malm é “um dos pensadores mais originais” sobre a mudança climática.
Malm foi entrevistado a respeito de seu último livro e as relações entre ecologismo e socialismo.
A entrevista é de Ángel Ferrero, publicada por Público, 18-06-2021. A tradução é do Cepat.
Em ‘Capital fósil’, você utiliza o termo “economia fóssil”. O que quer dizer?
“Economia fóssil” é o tipo de economia que tivemos nos últimos dois séculos. É uma economia de crescimento autossustentado, baseado na extração e o consumo de energia fóssil, o que permite o crescimento econômico, mas também produz a emissão de CO2. O motivo pelo qual a chamo de “economia fóssil” e não “capitalismo fóssil” é porque pode incluir os Estados stalinistas, a União Soviética e seus Estados satélites.
No livro, você reconstrói detalhadamente a história desta economia. Até que ponto está por trás dos problemas atuais?
A mudança climática é um problema histórico. Seu impacto é o resultado de todo o CO2 que foi acumulado na atmosfera. Antes da revolução industrial, havia 280 partes por milhão (ppm) de CO2 na atmosfera e agora nos aproximamos de 420 ppm. Este é o resultado de um acúmulo ao longo do tempo.
Isto não significa que grande parte do CO2 proceda especificamente de meados e finais do século XIX, de fato, provavelmente, seja uma pequena parte. Metade dessas emissões aconteceram a partir de meados de 1990. Mas foi em meados do século XIX que os combustíveis fósseis se tornaram a base do crescimento. Isso deu andamento ao mecanismo que prosseguiu ano após ano, década após década.
Qual é o papel do movimento operário nesta história?
Teve um papel complexo. A tentativa dos capitalistas em mecanizar e automatizar a produção industrial na indústria britânica, empregando os combustíveis fósseis para isso, foi, em boa medida, uma resposta ao movimento operário organizado.
Existe uma história fascinante de protestos operários contra este complexo tecnológico. Os luditas são os mais famosos. Mas ainda existe um universo de protesto e resistência praticamente desconhecido, de vários grupos operários organizados contra a introdução dessas máquinas.
Às vezes, é impossível não ver paralelos com o presente, como quando você descreve as tentativas da burguesia inglesa em minimizar o problema da poluição em Manchester, alegando que os efeitos negativos sobre a saúde não tinham sido demonstrados. Existem outros paralelos?
Há muitos paralelos, mas também algumas diferenças. É claro, a Manchester deste período e outras cidades industriais do Reino Unido podem ser vistas como um microcosmos do que hoje experimentamos em grande escala: os níveis de poluição e desigualdade social ou os problemas de saúde e saneamento. Desde então, ampliaram-se. Hoje, podem ser verificados na China ou na Índia, mas em uma escala muito maior.
Afirma que o capital é quantitativo por sua própria natureza e que não admite um ponto final. A única solução é a mudança de sistema?
Sim.
Esta é a resposta curta, imagino.
Bom, essa crítica ao capitalismo é algo que eu apoio. Mas não significa necessariamente que qualquer tipo de progresso na questão ambiental pressupõe a abolição completa do capitalismo. Não é como eu gosto de apresentar. Acaba passando do modo de produção capitalista para algo diferente, mas começa com a redução das energias fósseis e as indústrias baseadas nelas.
Recentemente, foi solicitado aos países africanos que não utilizem energias fósseis para o seu desenvolvimento, o que entra em conflito com a vontade de seus governos de proporcionar a seus cidadãos um maior nível de bem-estar.
Obviamente, os Estados Unidos teriam que limpar o seu próprio quintal, antes de dizerem a outros países o que fazer. A China, claro, tem razão quando diz: “Por que vocês nos acusam pelas emissões que procedem de suas fábricas, que foram deslocadas para a China?”.
O problema atual é que existe tanta poluição na atmosfera, queimou-se tanto combustível fóssil, que todo mundo precisa parar de usá-lo. Isso também vale para o Sul da África, não porque tenha contribuído com o problema, porque não foi o caso de forma alguma, mas porque os países ricos queimaram tanto que o meio ambiente não pode mais aceitar, caso não queiramos ter uma desestabilização total do planeta.
Felizmente, isso não significa que não possa haver desenvolvimento no Sul global. O que precisam na África subsaariana, na Índia rural, na América Latina e no Sudeste da Ásia não são de combustíveis fósseis em si, mas de energia.
Hoje, é possível obter a eletricidade mais barata da história com energia solar e eólica. As energias renováveis não são um obstáculo ao desenvolvimento, são um obstáculo para as empresas de energia que obtêm lucros da produção de combustíveis fósseis.
Nos últimos meses, a maioria dos governos europeus aprovou medidas para a transição ecológica. Você é considerado um dos principais críticos, de esquerda, ao chamado New Green Deal e ao European Green Deal. Por quê?
No caso do New Green Deal, impulsionado por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, na verdade, sou a favor. Faço parte desse projeto. Obviamente, é possível dizer que não é suficientemente ambicioso, mas estamos em uma situação em que é preciso fazer as coisas caminharem.
A maior virtude do New Green Deal é que relaciona a transição ecológica com os interesses dos trabalhadores. Conforme propõe a esquerda do Partido Democrata e outros setores da esquerda estadunidense, trata-se de um programa que busca chegar às raízes da crise: diminuir o uso de energias fósseis, ao mesmo tempo em que se redistribui e desloca o poder do capital para o trabalho.
Quanto ao Green Deal da Comissão Europeia, essa é outra questão. Eu o conheço apenas parcialmente. Mas não vejo sinais de uma verdadeira transição na Europa. Há pequenos exemplos aqui ou ali. Mas não vejo uma redução anual de 5-10% de CO2, na Europa, até chegarmos a zero, ao mesmo tempo, com um grande investimento em soluções tecnológicas alternativas.
Em várias oportunidades, você criticou a ênfase na responsabilidade individual, com a redução do ecologismo a uma opção de consumo a mais. Como se deu esta transformação?
Tem a ver com a ideologia do neoliberalismo, a ideia de que é possível exercer algum tipo de influência como consumidor. O que significa que quem tem mais dinheiro terá maior influência do que quem não tem.
Uma política baseada em opções de consumo é antidemocrática em si, porque pressupõe uma forma de escolha na qual as pessoas com pouco dinheiro têm, por definição, menos capacidade para decidir. Por esse motivo, é muito atrativa para o neoliberalismo. É algo que pode ser vendido como produto de consumo.
Uma questão central neste debate são os investimentos, que determinam se as energias fósseis – petróleo, carvão e gás – se ampliam ou não em relação às energias renováveis. E as decisões de investimento não são feitas pelos consumidores. São feitas pelos investidores, os proprietários das empresas.
As empresas de petróleo ou de gás possuem os seus próprios conselhos diretivos, que respondem aos seus acionistas e que tomam decisões de investimento que não possuem qualquer tipo de controle público. Com consumidor não tenho nenhuma capacidade de influenciar nessas decisões. Deveria ser uma solução política, não pedir às pessoas que tomem decisões individualmente.
Para isso, já temos Al Gore, imagino.
Exato. Não funcionou muito bem. O problema com Bill Gates, para dar outro exemplo, é que produz a impressão de que as pessoas mais ricas do planeta têm um plano para evitar o caos climático. E isso envia uma espécie de mensagem que acalma, tranquilizadora: “Estamos no comando, temos um manual para resolver isso”.
De qualquer modo, como se chegou a essa situação? O ecologismo nos anos 1970 era uma ideia radical.
Havia uma situação política completamente diferente da atual. Se a questão ambiental tivesse explodido nos anos 1970, a situação atual seria muito diferente. Nos anos 1970, ainda existia certa confiança na capacidade de influenciar e mudar a sociedade. Havia uma prática revolucionária viva na Europa.
Um comentarista alemão, Peter Nowak, classificou ‘Os Verdes’ alemães como partido “da nova fase de acumulação”. O ecologismo se tornou uma ideologia que justifica um novo processo de acumulação por desapropriação e novas políticas de austeridade?
Alguém descreveu Os Verdes alemães, na revista Jacobin, como os “neoliberais com bicicletas”. É uma descrição muito adequada. Além de terem políticas sociais insuficientes, em questões ambientais carecem de políticas radicalmente necessárias. Tem ocorrido tensões com setores do movimento ecologista.
Os Verdes governam Baden-Württemberg, onde apoiaram a ampliação de uma rodovia para a qual foi necessário derrubar uma floresta, e são próximos da indústria automobilística. Se Os Verdes chegarem ao governo, neste outono, será uma grande decepção para o movimento ecologista e os eleitores. Algo parecido aconteceu na Suécia. Os partidos verdes na Europa tendem a ser liberais, não anticapitalistas.
O que acontecer na Alemanha é importante. É o motor econômico da Europa, mas também é o país com as maiores emissões. Se tem que ocorrer uma transição das energias fósseis para as renováveis, a Alemanha é crucial. Não se trata apenas do carvão, mas da indústria automobilística, que é a coluna vertebral da economia industrial alemã, que precisa ser profundamente transformada.
O que nos leva ao carro elétrico, que, no entanto, sabemos que não é tão ecológico. Para a sua produção é necessário investir grandes quantidades de energia e permanece sendo um veículo de transporte individual.
Não sou um especialista em carros elétricos. Minha impressão é que uma pequena parte da atual frota de automóveis pode ser substituída por carros elétricos, mas mudar toda a frota para carros elétricos gerará enormes problemas ecológicos e ainda permaneceria para ser resolvida a emissão de CO2 pela própria produção dos carros.
A transição no setor de transporte, e eu diria que existe muito consenso a esse respeito, não significa somente passar dos motores de combustão para os elétricos, mas mudar os modos de transporte para reduzir o tráfego, aumentando o transporte público e, nas cidades, as bicicletas e as vias para pedestres. Isso quer dizer que precisamos repensar as cidades e a relação entre o lugar de trabalho, os lares e os mercados de alimentos.
Na França, país do qual acabo de chegar, foi uma questão central em torno do movimento dos coletes amarelos, uma vez que, devido à forma como as cidades francesas evoluíram, os trabalhadores tendem a viver nos subúrbios e precisam se deslocar até a cidade, sem outra opção a não ser o carro.
Nesses últimos anos, temos visto reações em forma de protesto, como o dos coletes amarelos na França, e mesmo a defesa, em alguns setores da esquerda que se autodenominam “aceleracionistas”, do produtivismo do pós-guerra, da expansão das capacidades industriais e até das centrais nucleares...
A revolução russa lançou iniciativas em muitas frentes, incluindo a ecológica. De fato, faço parte de um projeto que traduzirá para o inglês textos soviéticos, a maioria pela primeira vez, dos anos 1920 e 1930, sobre ecologia. O volume será intitulado October ecologists [Ecologistas de Outubro].
Nele descobrimos esforços verdadeiramente pioneiros na conservação ambiental, reflorestamento, reconstrução ecológica, ciências do meio ambiente... com debates surpreendentes, como se a indústria do petróleo deveria ser mantida ou se era uma fonte de energia capitalista e era preciso aproveitar a energia solar. Podemos debater o histórico ecológico dos primeiros bolcheviques. É uma questão complexa. Há paralelos entre a situação daquele momento, de guerra, e a atual.
No início da pandemia, vimos uma retórica bélica, de guerra contra o vírus. Também podemos ver semelhanças com a Primeira Guerra Mundial como a catástrofe que inaugurou o século XX. Hoje, enfrentamos uma situação em que um desastre ecológico precede o seguinte, e uma pandemia após a qual pode haver outras.
Toda vez que há um desastre ecológico, a tarefa estratégica para a esquerda e para o movimento ecologista e seus aliados é esse passo leninista de transformar esses mesmos desastres em uma crise para os seus responsáveis. Não podemos nos concentrar em combater apenas os sintomas. Precisamos chegar à raiz do problema.
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“A tarefa para a esquerda é transformar a emergência climática em uma crise para os seus responsáveis”. Entrevista com Andreas Malm - Instituto Humanitas Unisinos - IHU