15 Agosto 2019
Um relatório apocalíptico sobre o fim da humanidade em 2050 chocou o mundo em junho passado. O relatório do Breakthrough National Center for Climate Restoration, um think tank independente na Austrália, alertou para a ameaça que representa as mudanças climáticas. Foi apresentado por não menos que o ex-chefe das Forças de Defesa Australianas e ex-almirante da Marinha Australiana, Chris Barrie.
"Enquanto as autoridades falam em manter o aquecimento entre 1,5°C e 2°C sobre o nível pré-industrial - uma meta muito insegura, já que existem efeitos-chave que começam com apenas 1°C de aquecimento -, sua falta de ação realmente coloca o planeta em um caminho de aquecimento muito maior, que irá destruir muitas cidades, países e povos, e muitas, talvez a maioria, das espécies", adverte o diretor de pesquisa da entidade, David Spratt.
A reportagem é de Marco Fajardo, publicada por El mostrador, 13-08-2019. A tradução é do Cepat.
Spratt é um dos autores do relatório, em sua qualidade de especialista em ciência e política climática. Sua análise é devastadora: "As políticas climáticas internacionais não têm conseguido evitar o aquecimento global catastrófico".
"O Acordo de Paris estabeleceu compromissos nacionais para reduzir as emissões voluntários e não vinculativos, o que resultará em uma trajetória de aquecimento de mais de 3°C, e próximo a 5º C se levarmos em conta toda a gama de feedbacks do sistema climático", adverte.
"Esse resultado, dizem os cientistas, é inconsistente com a existência da civilização humana e poderia reduzir a população humana a um bilhão de pessoas. Até mesmo o Banco Mundial diz que poderia estar além de qualquer adaptação", enfatiza.
Segundo Spratt, desde que a Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança do Clima foi adotada na Cúpula do Rio de 1992, as emissões humanas de dióxido de carbono aumentaram em mais de 50%, sem sinais de desaceleração.
"Desde 1992, o aquecimento subiu de 0,6°C para 1,1°C, e a taxa de aquecimento agora está acelerando. A Terra possivelmente atingirá a faixa mais baixa da meta de Paris de 1,5°C em questão de uma década ou algo similar", adverte.
A evidência da história climática do planeta indica que o atual nível de dióxido de carbono elevará o nível do mar em dezenas de metros e que no final da civilização chegará a 3,5°C a longo prazo, segundo o especialista.
Embora a Convenção aponte um "desenvolvimento econômico sustentável", a cada ano a pegada ecológica humana é maior e menos sustentável, adverte Spratt. Acrescenta que hoje a humanidade requer uma capacidade biofísica de 1,7 Terras anualmente em seu consumo de capital natural. Um resultado "desastroso" para as instituições das Nações Unidas.
Quando perguntado se havia uma subestimação da mudança climática e suas consequências, Spratt responde que o erro de apreciação e a consequente atuação para evitar o risco existencial se deve em parte pela forma com que os cientistas produzem as informações sobre o clima.
"A maior parte da pesquisa climática tem a tendência de subestimar os riscos existenciais e exibiu uma preferência por projeções conservadoras e estudos relutantes, embora um número crescente de cientistas tenha criticado essa abordagem nos últimos anos", como Kevin Anderson, James Hansen, Michael E. Mann, Michael Oppenheimer, Naomi Oreskes, Stefan Rahmstorf, Eric Rignot e Will Steffen.
Spratt cita um estudo que examinou as últimas previsões de cientistas climáticos e concluiu que foram "conservadores em suas projeções do impacto da mudança climática" e que "pelo menos algumas das características-chave do aquecimento global por crescentes gases do efeito estufa foram previstos, especialmente nas avaliações do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) no campo da física".
Os autores concluíram que os cientistas não tendem ao alarmismo, em parte devido à tendência de suas normas para a moderação, objetividade, ceticismo e racionalidade. Esta poderia ser a causa de "minimizar as mudanças climáticas futuras".
Já após o primeiro relatório do IPCC, em 1990, os Estados Unidos, a Rússia e a Arábia Saudita agiram para "moderar o alarme e a linguagem para fortalecer a aura de incerteza", segundo o empresário britânico Jeremy Leggett.
Outro funcionário britânico naquele momento, Martin Parry, lembra que "os governos não gostaram dos números, então alguns foram maquiados".
"Assim como a Convenção, o procedimento do IPCC sofre todos os perigos da construção de um consenso em um cenário complexo", diz Spratt. "Seus relatórios nem sempre incluem os números mais recentes disponíveis e a necessidade de consenso pode levar a 'minimizar o drama' e denominadores comuns baixos que negligenciam questões-chave", continua.
Como se vê, a dificuldade em enfrentar o problema reside, em parte, na necessidade de se chegar a um acordo entre vários atores. "O problema é global e requer ação de alto nível, mas o processo internacional de consenso aponta para os denominadores comuns mais baixos", explica o especialista.
"A mudança climática atualmente representa uma ameaça próxima à civilização a médio prazo, mas não é inevitável. É necessária uma nova abordagem para o gerenciamento do risco climático", para evitar o desastre. Mesmo assim, em sua opinião, o mundo não está preparado para imaginar as consequências catastróficas da mudança climática.
Outro erro é apresentar o perigo como um problema futuro, em vez de um problema atual, acrescenta. "O que precisa ser feito agora é um desafio fundamental para as estruturas atuais do mercado e do governo", diz.
Acrescenta que os líderes políticos e empresariais parecem incapazes de entender o assunto. E cita um relatório britânico de 2016, "Pensando o impensável", baseado em entrevistas com altos líderes de todo o mundo, segundo os quais sua capacidade de antecipar eventos inesperados é "perigosamente inadequada em momentos críticos".
O estudo encontrou forte resistência, o que pode ser chamado de "miopia executiva", aceitar que eventos "impensáveis", sim, podem acontecer, sem falar de lidar com eles.
Para Spratt, o importante é entender as crises em sua total dimensão e o que requer para sua solução, isto é, ações emergenciais. "Trata-se de intenção política. O central a entender é que a política climática internacional está dominada por uma preocupação sobre qualquer outra: a mudança deve ser gradual e não afetar as economias nacionais e globais no curto prazo", critica. No entanto, para ele, isso não é mais uma opção, pois restam apenas dois cenários.
A primeira opção é seguir o ritmo atual de exploração de recursos, que é insustentável e leva ao colapso, conforme documenta um relatório do Clube de Roma, de 1972.
Spratt observa que as consequências da mudança climática já causaram transtornos geopolíticos extremos. Este foi o caso da extrema seca e consequente fome no Oriente Médio que levou à Primavera Árabe e à guerra civil na Síria.
Outras vulnerabilidades, além de um colapso ecológico, são a instabilidade do sistema financeiro internacional, a crescente desigualdade, políticas extremas e o deslocamento de populações por razões climáticas.
A segunda opção é uma ação de emergência para retornar a um "clima seguro". Na opinião de Spratt, isso significa, entre outras medidas, o fechamento da indústria extrativista de combustíveis fósseis e o fim do sistema produtivo dependente dos mesmos.
Isso, de acordo com o escritor australiano Paul Gilding, em seu livro The Great Disruption, levará a uma mudança sistêmica complexa, com vulnerabilidades e descontinuidades ocorrendo de forma imprevisível. "Ele diz que haverá uma crescente divisão global entre velhas e novas elites econômicas, porque o marco de sustentabilidade é uma má notícia para algumas corporações, e há uma desordem causada pela 'destruição criativa' do capital e pelo abandono de bens”.
Para o especialista, essas alternativas enfrentam um dilema de grande escala: ou planejadas no marco de uma transição de emergência, ou não planejadas devido ao colapso social e físico, na medida em que o aquecimento se intensifica.
"O tempo para uma mudança lenta acabou e uma ‘vitória’ lenta é o mesmo que uma derrota. Não há mais um caminho gradual para obter êxito. Isso deve estar no foco do pensamento quando são avaliadas medidas e a escala de ação necessária em consideração", ressalta.
Outro elemento que Spratt destaca é a importância do ativismo comunitário. "Onde há suficiente espaço democrático, a sociedade civil tem liderado as campanhas de ação climática há décadas. Todos os anos, o compromisso cresce, no Norte e no Sul, Leste e Oeste. Campanhas corajosas têm evitado o fracking, fechado minas de carvão, prorrogado ou evitado novos oleodutos, nova infraestrutura e desmatamento”, destaca.
Diz que, dessa forma, a sociedade civil constrangeu os governos envolvidos no atraso predatório e lhes tem pedido prestações de contas, ao mesmo tempo em que impulsiona iniciativas oficiais que tem reforçado a revolução das energias renováveis.
A isto se soma "um novo ativismo climático, que qualifica a crise climática como uma ameaça à humanidade, e desafia o fracasso de líderes políticos e empresariais. Isso inclui Greta Thunberg e o movimento global StudentStrike4Climate, no ocidente e sul do planeta, o Grupo Extinction Rebellion (XR), The Climate Mobilization, nos Estados Unidos, e comunidades similares em outros lugares”.
Esse novo realismo, em suas palavras, está mudando a história. "Risco existencial", "crise de extinção" e "emergência climática" são conceitos que se normalizam, e a velha linguagem gradualista começa a desaparecer, enquanto o fracasso consome lentamente os processos da ONU.
Recentemente, o presidente Sebastián Piñera apontou que o socialismo poluiu muito mais que o capitalismo. Acredita Spratt que o capitalismo global é compatível com essas medidas?
"A esquerda revolucionária está em um mínimo histórico", responde Spratt. "Em muitos países, quase não existe. Parece fantasioso pensar que o capitalismo per se enfrente a ameaça de alguma força revolucionária", opina.
No entanto, a fase atual do capitalismo global, o neoliberalismo, não é compatível com as ações necessárias para enfrentar a emergência climática, afirma.
"Movimentos econômicos de grande escala, seja em resposta a uma ameaça militar ou a desastres naturais como terremotos, tsunamis e ciclones, ou a serviço de uma transformação social em grande escala, são caracterizados por uma forte liderança governamental para o planejamento, coordenação e realocação de recursos, respaldado por um poder administrativo suficiente para alcançar uma resposta rápida para além da capacidade de funcionamento normal de uma sociedade", argumenta.
Para ele, um exemplo disso são grandes transformações econômicas, como as ocorridas na Ásia do pós-guerra no Japão, na Coréia do Sul, em Cingapura e na China.
"Também será o caso na mobilização pela emergência climática. Os governos nacionais e subnacionais têm a capacidade social única de planejar, direcionar recursos, desenvolver capacidades de trabalho, reduzir impostos e direcionar investimentos financeiros, coordenar inovações e estabelecer marcos regulatórios", destaca.
Nesse sentido, para o especialista é importante um papel renovado do Estado, devido ao fracasso da ortodoxia econômica atual em solucionar o problema. "A maioria das ações climáticas, mesmo no nível da ONU, e em muitos grupos ambientais, está em um marco neoliberal, isto é, aquele que enfatiza o papel dominante de um mercado regulado "eficiente", com o menor número de objetivos sociais possíveis", critica.
Adverte que esta metodologia criou modelos energético-climático-econômicos para as autoridades segundo os quais o "ótimo" (mais "eficiente") em nível de aquecimento está ao redor de 3-4°C, uma proposta absurda quando os principais cientistas apontam que esse nível seria catastrófico e talvez causaria o fim da civilização.
"Os mercados são amorais, no sentido de que são guiados pelo 'valor da ação' - lucros e dividendos - e não por preocupações éticas. Até agora, não responderam adequadamente, mesmo em seus próprios termos, aos riscos financeiros das mudanças climáticas", pontua. "Quando as decisões são tomadas pelo interesse do investidor, da empresa, do produto, da mina ou do petróleo, não importa o que beneficia mais a sociedade como um todo".
Ao mesmo tempo, diz, os governos têm sido incapazes de regular os custos associados à atividade que não são levados em conta pelo mercado, como má saúde, impactos ambientais e sociais, "e não há melhor exemplo do que a mudança climática".
"O resultado é um fracasso do mercado em grande escala. Tal como estão estruturados e regulados atualmente, os mercados não estão nem próximos da taxa de mudança necessária. Um resultado chave no período da ação climática de emergência será a valorização do necessário papel do Estado como regulador e protetor das condições econômicas e sociais, especialmente quando está em jogo o futuro da sociedade", conclui.
"Não se trata de medo versus esperança, mas de coragem", especifica. E "Greta Thunberg é um bom exemplo de uma pessoa que tem a coragem de chamar as coisas pelo nome", conclui.
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“A política fracassou”, afirma David Spratt, cientista responsável pelo mais duro relatório sobre a mudança climática - Instituto Humanitas Unisinos - IHU