"As duas histórias de Jacó e Esaú e de Caim e Abel se situam em momentos diferentes do desenvolvimento humano, como desejou o texto bíblico. Na história de Jacó e Esaú, existem elementos que não encontramos na história de Caim e Abel. Mas o motivo da divergência entre os irmãos – embora mudando de sinal – permanece, na minha opinião, o mesmo: entre irmãos, surgem inevitavelmente invejas e ciúmes. No caso de Jacó e Esaú, tudo isso passa pela questão da primogenitura. Mas a pergunta de fundo, no entanto, é: “Quem é o preferido da mamãe e do papai?”. Quem herda a primogenitura, no fundo, é considerado o preferido. No caso de Caim e Abel, a primogenitura, por si só, não está em questão, porque, no relato, encontramo-nos em um nível mais simples da organização política da sociedade. Porém, a pergunta de sentido continua a mesma: “Quem é o preferido dos genitores?”. No relato – como sabemos – entra a questão das ofertas ou dos sacrifícios", afirma Davide Assael, judeu italiano, fundador e presidente da associação lech lechà, professor de filosofia e escritor, em entrevista publicada por Settimana News, 15-09-2021.
A entrevista é de Giordano Cavallari. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Davide Assael, com a Fundação Centro de Estudos Campostrini publicou dois livros dedicados à “Fratellanza nella tradizione bíblica” [Fraternidade na tradição bíblica]: respectivamente “Jacó e Esaú” (volume I) e “Caim e Abel” (volume II).
"A minha tentativa - afirma Davide Assael - é a de construir um modelo filosófico de fraternidade a partir do conceito de limite, certamente devedor da tradição judaica, mas sempre levando em consideração as críticas à própria ideia de limite levantadas pela cultura ocidental, porque efetivamente o limite não deve ser entendido como algo fixado para sempre. As contingências, as dinâmicas, as sensibilidades históricas mudam. Inevitavelmente, as invejas e os ciúmes voltam. Devemos estar sempre prontos para questionar novamente os limites previamente traçados, mas mantendo o limite como horizonte decisivo para a melhor das relações possíveis".
Professor Assael, quem é o irmão para você?
A pergunta “Quem é o meu irmão?” está no início da minha pesquisa. É uma pergunta à qual realmente não é fácil dar uma resposta, porque, quanto mais se pensa sobre ela, mais vem à tona como são variados os contextos nos quais se pode utilizar o termo “irmão”: o nosso irmão certamente é aquele com quem temos um vínculo de sangue, mas, quando damos essa definição, logo pensamos, por exemplo, em um irmão adotivo.
Portanto, também podemos chamar um amigo de irmão: não por acaso, na linguagem coloquial, dizemos: “Ele é meu amigo fraterno”. Então, o campo semântico da palavra continua se estendendo: de irmão de sangue a irmão adotivo, a amigo fraterno. Há pelo menos outro nível de extensão desse termo: porque certamente também podemos considerar como irmãos todos aqueles com quem compartilhamos uma experiência particularmente intensa.
Obviamente, quando eu digo irmão, refiro-me a irmãos e irmãs.
Busquei, portanto, uma definição que unisse todos os campos de aplicação do termo. No fim, identifiquei aquela que pode parecer a mais simples: irmão é aquele com quem eu entro simplesmente em relação. Meu irmão é aquele com quem eu mantenho vínculos de relação na minha vida hoje.
Pude chegar a essa definição a partir da própria língua hebraica, obviamente a partir da Torá, do Pentateuco. Foi o texto que eu considerei privilegiado para investigar o conceito. No fundo, o Pentateuco é uma história de irmãos: Caim e Abel, Isaac e Ismael, Jacó e Esaú, José e seus irmãos, Moisés e Aarão.
A Torá é um lugar de escolha – entre os muitos possíveis – para buscar a definição do conceito de fraternidade.
Pois bem, em hebraico “irmão” é pronunciado ‘ach, enquanto “outro” se diz ‘achér: a raiz é a mesma. Não só: é interessante notar que o termo que indica uma relação entre ‘ach e ‘achér é ‘achariút: com a mesma raiz, a língua hebraica expressa o vínculo da relação, a responsabilidade que liga um ao outro. Portanto, por fraternidade eu entendo a relação constitutiva de um com o outro: o vínculo de responsabilidade que liga, dentro e além dos laços de sangue. A partir da Torá – para mim – isso fica muito claro.
Por que você está lidando justamente com esse tema da fraternidade?
É importante para mim responder a essa pergunta, porque ela também tem um sentido em relação à encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco, sobre a qual – no fim da entrevista – direi alguma coisa. Eu acho que, há diversos anos, na Europa e em todo o Ocidente, estamos assistindo a uma verdadeira crise da categoria da fraternidade: não me refiro em termos morais ou moralistas, mas propriamente políticos.
No meu modo de ver, estamos assistindo a uma crise das identidades – ou seja, dos elementos colantes da coletividade humana –, e precisamente por tal razão não somos mais capazes de reconhecer quem é o nosso irmão. Isso nos leva à desagregação social.
Penso, portanto, que uma das tarefas fundamentais do nosso tempo – e dos próximos anos – é elaborar um modelo de fraternidade que reúna as diferenças que habitam o nosso mundo, a partir do território em que cada um de nós vive.
Por que Jacó e Esaú e Caim e Abel, nessa ordem?
Só agora eu penso em como a linguagem habitual inverteu a ordem da primogenitura em um caso e a manteve no outro. Talvez isso também tenha um sentido: é claro que com, a passagem de Jacó a Esaú, se consuma algo – na Torá –, algo que, com Caim e Abel, ainda não existe. Com Jacó e Esaú, entramos em um contexto que podemos definir como identidade bíblica. A identidade bíblica, de fato, é construída a partir da ética do filho mais novo. Por isso, Jacó vem antes de Esaú.
Com Caim e Abel, em vez disso, estamos em um âmbito que poderíamos definir – deliberadamente – como universal. Em Caim e Abel, não se “descreve” o nascimento da identidade bíblica, mas sim do gênero humano como tal: detecta-se aí uma lógica – digamos natural – em que a primogenitura fica nas mãos do irmão mais velho.
Entretanto, a grande ruptura introduzida pela ética bíblica é precisamente esta: a primogenitura passa para as mãos do irmão mais novo, com todas as consequências do caso, porque vai se estabelecendo um modelo de fraternidade não mais construído sobre a hierarquia e a genealogia. O momento em que isso ocorre é criador – poderíamos dizer – de um novo modelo político, fundamentado justamente na ética do filho mais novo, na possível preeminência do mais novo sobre o mais velho.
No entanto, ocupei-me primeiro de Jacó e Esaú, em vez de Caim e Abel, mais do que por uma razão teorética, pelas contingências das minhas pesquisas sobre as origens culturais do antissemitismo.
Na relação entre Jacó e Esaú – com Jacó que se torna Israel após a luta com o anjo como paradigma da identidade judaica – manifestam-se as primeiras pulsões culturais antissemitas. Esaú – assim diz a Torá – manifesta pulsões agressivas, até mesmo homicidas, em relação ao irmão mais novo, que agora se chama Israel, pois a bênção paterna lhe foi subtraída.
Como já antecipei, é precisamente no gesto de subtração realizado pelo filho mais novo em relação ao irmão mais velho que vão se delineando a ética judaica e toda a ética bíblica. A agressividade nasce precisamente por reação àquele gesto original de subtração. Eu estava interessado em investigar escrupulosamente esse momento, culturalmente originário do antissemitismo, a meu ver.
A esse respeito, devo especificar que a minha abordagem – mesmo quando entro no texto bíblico – permanece eminentemente filosófica, de acordo com a minha formação. A minha intenção é definir conceitos: neste caso, precisamente, o de fraternidade. Quanto mais eu entrava no relato de Jacó e Esaú – defrontando-me respectivamente com as interpretações judaicas e cristãs – mais crescia em mim a exigência de chegar a uma definição do conceito de fraternidade para a contemporaneidade.
Tentando esboçar uma resposta à pergunta sobre o antissemitismo – como sempre ocorre em uma pesquisa – encontrei-me diante de uma nova pergunta, ainda mais explícita: o que é a fraternidade? Então, retrocedi no texto bíblico até Caim e Abel, porque esse é evidentemente o primeiro par de irmãos que se encontra no texto da Torá.
As analogias entre a história de Caim e Abel e a de Jacó e Esaú obviamente são muitíssimas, junto com as diferenças e os resultados: os pontos de partida são os mesmos; o que muda – e muito – é o final.
Qual é a dificuldade de ser irmãos, que você detecta a partir dos textos bíblicos?
As duas histórias de Jacó e Esaú e de Caim e Abel se situam em momentos diferentes do desenvolvimento humano, como desejou o texto bíblico. Na história de Jacó e Esaú, existem elementos que não encontramos na história de Caim e Abel. Mas o motivo da divergência entre os irmãos – embora mudando de sinal – permanece, na minha opinião, o mesmo: entre irmãos, surgem inevitavelmente invejas e ciúmes.
No caso de Jacó e Esaú, tudo isso passa pela questão da primogenitura. Mas a pergunta de fundo, no entanto, é: “Quem é o preferido da mamãe e do papai?”. Quem herda a primogenitura, no fundo, é considerado o preferido.
No caso de Caim e Abel, a primogenitura, por si só, não está em questão, porque, no relato, encontramo-nos em um nível mais simples da organização política da sociedade. Porém, a pergunta de sentido continua a mesma: “Quem é o preferido dos genitores?”. No relato – como sabemos – entra a questão das ofertas ou dos sacrifícios.
Quando a preferência pelas ofertas de Abel é atribuída por Caim à responsabilidade do irmão, desencadeiam-se os mecanismos de contraste. O par “Caim e Abel”, portanto, é paradigmático das relações de fraternidade. Em hebraico, usa-se o mesmo termo para dizer inveja e ciúme: qin’áh tem a mesma raiz de Qáyin, Caim. A inveja e o ciúme estão estreitamente correlacionados às relações de fraternidade. A Qin’áh é a mina que faz explodir a relação.
Jacó é aquele que consegue, de alguma forma, embora sempre de maneira incompleta – e toda a tradição do comentário diz isso claramente –, se reconciliar com o irmão Esaú, depois de 20 anos de exílio da terra passados junto com o tio Labão. Jacó retorna à sua terra e se inclina sete vezes – um detalhe nada insignificante – em sinal de reconciliação com o irmão. Por fim, ele o abraça. Jacó consegue fazer aquilo que Abel, ao invés disso, não consegue fazer. Abel – no texto bíblico – não consegue remediar a inveja do irmão, sequer tenta isso, não encontra as palavras: Jacó sim.
Mas repito: a questão de fundo é sempre a qin’áh, a inveja, o ciúme, a pergunta: “Quem é o preferido?” ou: “Quem é o primeiro?”. Essa é a pergunta que arruína as relações e que corre o risco de fazê-las naufragar, como sempre.
Eu entendo que, na sua leitura, não há um irmão absolutamente “bom” e outro absolutamente “mau”.
Esse é um ponto decisivo para mim. Em termos descritivos – não em termos moralistas – o que define que eu esteja em relação com você e não com outro? De fato, ocorre que eu sinto com você vínculos de responsabilidade maiores do que com outra pessoa.
Explico. Estou naturalmente em relação com os meus estudantes, não com os estudantes da escola ao lado. É claro que, mesmo com estes, de algum modo, eu tenho um vínculo de relação, mas é óbvio que a minha responsabilidade maior recai sobre quem eu tenho na minha frente. O vínculo e o grau de responsabilidade me põem em relação tanto maior quanto menor.
Pois bem, se adotarmos essa perspectiva, então é difícil atribuir de forma clara a responsabilidade da “culpa” a um dos dois polos da relação, portanto a um dos dois irmãos, como, aliás, comumente fizemos no Ocidente – por comodidade ética –, definindo precisamente o que é o bem e o que é o mau e de quem é a culpa.
Na tradição judaica, Abel é definido, por exemplo, como o “mudo”. No capítulo quarto do livro de Gênesis, de fato, nunca há uma palavra de Abel. Surge naturalmente a pergunta: “O que Abel fez para tentar explicar a Caim como ele deveria ter levado as suas ofertas para que fossem agradáveis, ou – fora de metáfora – como ele poderia e deveria ter conduzido bem a sua vida? O que Abel fez para evitar o nefasto resultado da relação com o irmão?”. Nada: Abel não disse uma palavra, ao contrário do que Jacó fez. A responsabilidade da relação é sempre de dois, não só de um dos dois.
Nos conflitos, nunca se entende quem realmente começou. De quem é a responsabilidade ou a “culpa”, portanto? Em todos os conflitos relacionais, essas perguntas nunca têm respostas certas. Então, é necessário simplesmente tomar consciência da crise de uma relação. As duas unidades – os dois polos da relação – nunca são totalmente independentes uma da outra.
É sempre muito provável que a ação de um polo nada mais seja do que a reação à ação do outro. É por isso que é sempre muito difícil estabelecer uma responsabilidade, especialmente absoluta. Talvez seja cômodo – muito cômodo – presumir isso, porque ajuda a se orientar na complexidade, mas sempre se paga um preço muito alto por isso em termos de inveja e de ciúme, ou seja, daquela qin’áh que, em vez disso, é preciso tentar fazer com que diminua de todos os modos.
Nos seus livros, o conceito de “limite” aflora entre os pares de irmãos: o que isso significa?
Sim, é muito importante para mim introduzir o conceito de limite no conceito de fraternidade. Coloque-me agora em um lado puramente filosófico. No Ocidente, por razões culturais, somos inclinados a pensar o limite como um muro que separa e, portanto, impede a relação. O nosso imaginário se volta para a tentativa de tirar esse muro, de derrubar o muro e de remover o limite.
Essa tentativa claramente tem o seu sentido próprio, a sua idealidade própria. Mesmo assim, eu defendo que é apenas o limite aquilo que garante, no fundo, uma verdadeira relação, porque a relação é sempre entre dois, como estou dizendo. A imagem do par de irmãos é a metáfora de uma relação muito densa, pregnante, complexa. Os irmãos são sempre dois.
Se eu removo toda distinção entre eles, que relação resta? O risco é a reductio ad unum: um fagocita o outro. O limite, se pode ser um obstáculo real à relação entre as partes, é também a condição que a garante. É por isso que eu insisto em restaurar a dignidade ao limite, porque só um limite pode garantir, no fundo, o máximo da relação.
Acho que devemos nos preocupar quando não há mais limites entre as partes, porque isso significa que nos encontramos em uma situação que poderíamos definir – usando uma palavra muito usada no contexto judaico – como assimilacionista, em que a identidade das partes em relação se enfraquece até desaparecer. Isso é enganoso e perigoso para as sociedades contemporâneas.
Pois bem, a minha tentativa é a de construir um modelo filosófico de fraternidade a partir do conceito de limite, certamente devedor da tradição judaica, mas sempre levando em consideração as críticas à própria ideia de limite levantadas pela cultura ocidental, porque efetivamente o limite não deve ser entendido como algo fixado para sempre.
As contingências, as dinâmicas, as sensibilidades históricas mudam. Inevitavelmente, as invejas e os ciúmes voltam. Devemos estar sempre prontos para questionar novamente os limites previamente traçados, mas mantendo o limite como horizonte decisivo para a melhor das relações possíveis.
Através do significado do limite, você introduz as diferenças entre um modelo de fraternidade judaica e um modelo de fraternidade cristã. Pode explicar?
Os dois modelos de fraternidade evocados vêm precisamente da comparação entre o comentário judaico e o comentário cristão das Escrituras. O comentário judaico insiste muito em manter a distinção entre os irmãos, enquanto o comentário cristão insiste na superação da distinção.
O comentário de Paulo a esse respeito é muito interessante: através da ética judaica do filho mais novo – portanto a partir da própria superação das genealogias e das hierarquias – Paulo recupera a figura de Esaú, o irmão mais velho, aparentemente sacrificado. Por quê? Porque tende a construir uma comunidade e, portanto, uma sociedade igualitária. Em uma sociedade igualitária, mesmo aquele que foi ignorado para afirmá-la, ou seja, o irmão mais velho, deve ser recuperado e plenamente integrado.
Os comentários, na sua imensa variedade, levam, portanto, a uma dupla direção: o comentário judaico leva à manutenção da distinção entre os irmãos, mas naturalmente também à necessidade de coordená-la e de encontrar um equilíbrio dentro da distinção, não certamente em uma versão de dominação de um sobre o outro; enquanto o comentário cristão leva na direção da radicalização da própria perspectiva judaica, ou seja, no sentido da fundação de uma fraternidade e, portanto, de uma sociedade universal e totalmente igualitária.
Qual é o modelo mais correto? Eu digo: nenhum dos dois e ambos ao mesmo tempo. Eu gosto – em sentido crítico – de fazer com que um modelo jogue com o outro. O modelo judaico consiste em uma advertência para o contexto cristão, quase como se dissesse: “Atenção, que o modelo de fraternidade de vocês não se reduza a uma lógica assimilacionista”.
Acho que esse é um problema que – de um ponto de vista teológico além de político – dilacerou a consciência cristã. A missionariedade teve que lidar duramente com isso: a aflição é se a ação missionária não foi imposta no fundo com uma lógica assimilacionista. Acho que essa é verdadeiramente uma questão que dilacera o cristianismo, que certamente parte da intenção da construção da fraternidade humana para se encontrar, mesmo que inconscientemente, mesmo que involuntariamente, afirmando um modelo que anula o outro. É claramente uma grande questão.
Mas, por outro lado, o modelo cristão consiste e deve consistir em uma advertência para o judaico, para que a manutenção da distinção – o limite – não se transforme em um desvio patológico, em um muro impenetrável de separação do outro, algo que também atormenta, de outros modos – e desde sempre – a consciência judaica.
Lembro, a esse respeito, que, quando os guetos foram abertos na Europa após o avanço de Napoleão, muitos rabinos importantes se opuseram a tal abertura, precisamente porque temiam a assimilação: no entanto, o gueto era um lugar de terrível tragédia humana!
Você liga o tema da fraternidade ao da “terra”: de que modo?
Sim, acho que o tema da terra também faz parte da grande questão dos modelos de fraternidade. A terra, justamente, é uma ideia de fraternidade fundamentada na posse de um determinado território, portanto de uma terra atribuída a um povo.
É um caso emblemático da conjugação do conceito de fraternidade. O cristianismo e a consciência ocidental moderna consideraram que a terra é um limite do ideal de fraternidade, a ponto de pensar na sua remoção. Perguntamo-nos: “A fraternidade só pode valer entre quem habita uma determinada terra?”.
A resposta cristã é claramente “não”. O modelo cristão proclama uma fraternidade universal para além de toda fronteira territorial. O judaísmo insiste igualmente na necessidade de fundar uma fraternidade, mas a partir de uma terra própria, justamente porque pensa naquele modelo de fraternidade que vem da tradição bíblica, um modelo a ser respeitado, um modelo que certamente não pode ser imposto a outros, mas no qual outros podem se inspirar.
Se for possível provar, na própria terra, que é possível construir uma sociedade na qual o estrangeiro tenha os mesmos direitos de quem nela nasce, é possível oferecer um modelo no qual outras pessoas em outras terras podem se inspirar. O empenho é mostrar que, efetivamente, esse tipo de sociedade existe e é mais justa.
Eis, portanto, o grande tema da responsabilidade histórica de Israel, a partir da Torá. A pergunta bíblica a Israel é sempre: “Você tem a sua terra, mas como a está governando?”, como que dizendo: “Se você a governa mal, não é nem justo que ela lhe pertença, porque a ‘luz das nações’ não nasce do fato de você a habitar”.
Quando se costuma afirmar que Israel é a única democracia do Oriente Médio, faz-se claramente uma simplificação, mas que tem um sentido próprio em relação ao laço intrínseco entre ética e terra. A ética judaica tende a se concretizar em um território específico que é aquele que o “destino” atribuiu.
A história judaica se realizou em um determinado território – em uma determinada terra – e não tem nenhum direito de se expandir para outros territórios. No mínimo, tem a possibilidade de se oferecer como modelo exemplar. E aqui voltamos à diversidade cristã. A objeção a Israel vem por conta própria: “O judaísmo está mantendo uma distinção entre judeus e não judeus, entre israelenses e não israelenses, entre quem habita a terra e quem não a habita e não pode habitá-la”.
De fato, é verdade que o estrangeiro para a Torá – simplificando – tem os mesmos direitos que o judeu na sua terra, mas também é verdade que há passagens – ou seja, limites – que estabelecem o ingresso na própria comunidade ou sociedade.
Então, o que significa a terra no conceito de fraternidade? A terra é um obstáculo ou a condição de possibilidade da fraternidade? Estamos dentro da dialética entre uma perspectiva dualista e uma perspectiva monista. Ambas as perspectivas têm os seus próprios pontos críticos e virtudes. Eu creio que se deve ter plena consciência de uns e das outras, cada um dentro de si e dentro do próprio âmbito, não para se mudar, mas para viver melhor, com plena consciência dos riscos.
Você distingue entre antijudaísmo e antissemitismo: em que sentido?
A distinção entre antijudaísmo e antissemitismo é evidentemente importante. Houve duas formas de ódio contra os judeus, historicamente falando. Uma é aquela que deriva das grandes visões universalistas sobre a história ditadas pelo cristianismo. Segundo os cristãos, os judeus fizeram um trajeto, mas não o levaram até o fim: daí nasce a “repreensão” por não terem levado até às últimas consequências os pressupostos éticos do percurso da própria identidade judaica.
O cristianismo repreende o judaísmo justamente por ter mantido o limite que ele distingue. O pressuposto ético é comum ao judaísmo e ao cristianismo: muda o quanto ele foi levado adiante, até que limite ou até que cancelamento do limite. Eu diria que foi assim que se expressou o antijudaísmo clássico, que também se estendeu à questão da terra e à questão do Estado de Israel.
Enquanto o antissemitismo em si tem outra origem, aquela que os nazistas encarnaram ao mais alto grau. O antissemitismo põe ou, melhor, impõe o remédio à passagem fundamental da fundação identitária judaica, ou seja, à subtração da primogenitura. O antissemitismo é o ódio de Esaú pelo seu irmão Jacó. É a vingança sanguinária de Esaú contra Jacó. Segundo esse pensamento, o sacrificado da história é Esaú, aquele que, desde o início do mundo, por “lei natural”, tinha direito à primogenitura, portanto ao comando sobre a terra e sobre os povos.
Esaú, portanto, teria sido sacrificado em nome da afirmação da lógica igualitária judaica. Por isso, o antissemitismo nazista se propõe a restaurar a hierarquia original, roubada por Jacó de uma forma mesquinha. Daí a imagem deformada do judeu esperto que engana a todos para roubar. Essa é a iconografia – como sabemos – na qual a propaganda nazista apostou e, infelizmente, não sozinha.
É verdade que esses dois níveis – antijudaísmo e antissemitismo – se fundem e se confundem em diversos momentos históricos, mas, na realidade, se trata de dois opostos conceituais, de duas críticas que vão em direções opostas: a primeira visa a concluir um percurso, a outra quer restaurar uma origem perdida. Por um trágico jogo de coincidência dos opostos, eles se encontraram dando origem aos imensos desastres que conhecemos.
Na sua opinião, que estrada a modernidade percorreu a esse respeito?
É muito interessante considerar como a modernidade se dedicou aos pares dos irmãos bíblicos: Caim e Abel, Jacó e Esaú. No meu livro sobre Caim e Abel, eu indico como o paradigma da fraternidade foi muito desenvolvido na modernidade pelo teatro: por exemplo, por Metastasio, Alfieri, Byron. O teatro, por natureza, está interessado no tema do duplo, do espelho, porque o teatro, no fundo, é uma duplicação da realidade.
Por isso, ele teve a intuição de identificar na primeira dupla bíblica de irmãos a origem de todos os temas teatrais. Como? Pondo em crise a rigidez dos modelos antigos, ou seja, questionando radicalmente o tema da culpa.
Tomemos, por exemplo, o Caim de Byron: é uma invectiva contra Deus, Caim é interpretado como aquele que sofre a injustiça, o rebelde justificado em relação a Deus, aquele que interroga Deus lamentando a injustiça sofrida. Caim se torna, no teatro de Byron, a figura que interroga Deus sobre o absurdo existencial que cada vez mais morde a consciência moderna e contemporânea.
A modernidade desordena a rigidez do passado, razão pela qual não é mais possível estabelecer quem é culpado e quem é inocente. Tudo está misturado. Isso teve uma função crítica decisiva – creio eu – para a evolução dos modelos de fraternidade. Estava claro que certos modelos ficaram datados e que era preciso construir novos.
Eu acho – e este foi o ponto inicial da nossa conversa – que nós ainda estamos no meio desse trajeto, ou seja, ainda somos chamados a renovar o ideal da fraternidade. É importante se deparar com os textos modernos que investigaram os pares de irmãos bíblicos, porque eles os colocaram em cena, em primeiro plano, com reivindicações críticas a serem consideradas para se construir um novo modelo de fraternidade do nosso tempo. Estamos sempre em trânsito.
A modernidade nos mostra que os modelos nunca são definitivos, devemos estar cientes disso e prontos para rever os limites que definiram os modelos relacionais até hoje. Confio em novos momentos construtivos.
Pergunta obrigatória: o que você acha da encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco?
Eu voltei recentemente de Vallombrosa, onde a Associação Biblia organizou um seminário de alguns dias – muito bonito – sobre a figura de Abraão: uma figura que une e distingue as três religiões abraâmicas. O Papa Francisco se referiu várias vezes a Abraão como uma figura de comunicação entre os monoteísmos. Na encíclica Fratelli tutti, sente-se fortemente a sua inspiração.
Acho que o papa efetivamente captou o ponto de crise focal do nosso tempo. Portanto, reconheço que ele tem uma função verdadeiramente política. Quer dizer – simplificando – que Francisco se colocou à frente daquele partido transversal que hoje é contrário a todo soberanismo. Não há dúvida de que estamos vivendo um momento de neonacionalismo muito acentuado.
O papa é a figura cultural – mas eu diria também política – que mais do que qualquer outra se expressou claramente contra a tendência neonacionalista. É manifesta a sua dificuldade humana mesmo que apenas ao se encontrar com os líderes do neonacionalismo mundial: aliás, muitos deles ostentam a sua pertença católica. Ele poderia, portanto, ter se aproximado dessas figuras por oportunidade. Mas ele não fez isso.
O papa – com a encíclica Fratelli tutti – entrou, por isso, a meu ver, precisamente na grande e decisiva questão do nosso tempo: a crise da fraternidade. Ele captou uma das dinâmicas ético-políticas fundamentais destes nossos anos.
Obviamente, a encíclica reafirma os termos do universalismo cristão: não podia ser de outra forma. Ou seja, ela substancialmente repropôs o modelo que eu defini aqui como monista. Ao mesmo tempo, devo salientar que, depois do Concílio, a Igreja trabalhou muito no seu próprio modelo de relação com o outro, justamente a partir da consciência do antissemitismo.
Na encíclica, eu sinto o eco dos documentos e dos estudos mais recentes sobre o modo de ler e interpretar as Escrituras, na recuperação da sua origem judaica e também da língua hebraica. Sinto empatia e proximidade ao judaísmo.
A reação do mundo judaico à abordagem universalista do papa foi e é – um pouco – sempre a mesma: há sempre a suspeita de se estar diante de uma lógica assimilacionista.
A encíclica se refere implicitamente à dialética judaico-cristã em andamento sobre o tema da fraternidade, da qual eu falei nesta entrevista. A minha visão é de que o mundo judaico deve fazer um esforço de compreensão em relação ao mundo cristão: não se pode pedir que os cristãos não sejam cristãos, dito de forma banal; assim como os cristãos não podem pedir que os judeus não sejam judeus.
No entanto, todos estamos cientes – depois dos horrores do passado – de que este é um momento favorável para as relações judaico-cristãs. Hoje, estão fora do tempo – ou são totalmente marginais – os fenômenos de pura oposição entre judaísmo e cristianismo. A tendência é a do reconhecimento recíproco.
Por fim, gostaria de dar um passo a mais, dizendo que temos a tarefa comum de elaborar um modelo de fraternidade que se valha da crítica recíproca, justamente para superar os possíveis desvios patológicos internos a cada modelo, tanto judaico quanto cristão.
Aquele jogo crítico do qual falei pode ter ocorrido tanto no campo judaico quanto no campo cristão. Essa poderia ser, a meu ver, a digna conclusão do caminho de reconhecimento recíproco ocorrido desde o Concílio até estes nossos dias.