15 Junho 2020
Em sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, o Papa Bento XVI escreveu que o cristianismo não começa com uma ideia ou um sistema ético, mas com um encontro com a pessoa de Cristo. De fato, os encontros pessoais são fundamentais para grande parte da história cristã, e esse sábado, 13, foi o 60º aniversário de um dos encontros mais significativos do século passado.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 14-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Era 13 de junho de 1960, quando um ilustre historiador, intelectual e educador judeu francês chamado Jules Isaac se encontrou com São João XXIII em uma audiência no Vaticano.
São João XXIII se encontra com o intelectual judeu francês Jules Isaac
no dia 13 de junho de 1960. (Foto: Pontifícia Universidade Gregoriana/Crux)
A conversa deles desencadeou um longo caminho de reconciliação entre o judaísmo e o catolicismo, que alcançou um crescendo no Vaticano II, ganhou força com São João Paulo II e Bento XVI, e continua hoje com o Papa Francisco – um sinal disso é que um artigo nesse sábado, que relembrou o encontro de Isaac e João XXIII, publicado no L’Osservatore Romano, o jornal oficial do Vaticano, foi escrito pelo rabino Abraham Skorka, da Argentina, um amigo íntimo e ocasional parceiro de viagens de Francisco.
Quando conheceu o “Bom Papa João”, Isaac já era um pioneiro bem conhecido nas relações judaico-cristãs, em parte por causa de sua amizade com o poeta e ensaísta católico francês Charles Péguy. Em 1894, os dois ficaram do lado de Alfred Dreyfus e continuaram a apoiá-lo até a sua exoneração em 1906.
Juntos, Isaac e Péguy também fizeram campanha pela reconciliação entre cristãos e judeus, opondo-se à crescente onda de antissemitismo na França, que explodiu no caso Dreyfus. Isaac foi também um dos fundadores da Amitié Judéo-Chrétienne de France, uma organização dedicada a promover a amizade entre cristãos e judeus, e uma de suas obras históricas mais conhecidas era um livro de 1947 intitulado “Jésus et Israël”, que explorava as raízes judaicas de Jesus.
A audiência de junho de 1960 não foi o primeiro encontro de Isaac com um papa. Ele se encontrou com Pio XII em 1949, apresentando ao papa uma lista de 18 pontos que Isaac acreditava que deveriam estar presentes na educação cristã sobre o judaísmo, como o fato de que “Jesus era judeu” e “o julgamento de Jesus foi um julgamento romano, e não judeu”.
Quando João XXIII anunciou a sua intenção de convocar o Concílio Vaticano II em janeiro de 1959, Isaac viu aí uma oportunidade para encorajar os bispos do mundo a abordar a questão das relações judaico-cristãs e solicitou uma audiência com o papa, que foi concedida um ano depois, enquanto os preparativos para o Concílio estavam em andamento.
Angelo Roncalli, o nome de batismo de João XXIII, trouxe sua própria experiência de solidariedade judaico-cristã ao encontro.
Enquanto atuava como embaixador na Turquia durante a Segunda Guerra Mundial, sob o Papa Pio X II, Roncalli ajudou a salvar vidas judias emitindo certificados de batismo falsos para crianças judias e também ajudando os refugiados a obterem vistos. Ele também transmitiu relatórios ao Papa Pio sobre a aniquilação dos judeus na Polônia e na Europa oriental, baseados em parte naquilo que os refugiados judeus lhe diziam.
Mais tarde, como papa, João XXIII usou sua primeira liturgia da Sexta-feira Santa de 1959 para remover o termo “pérfidos” de uma tradicional oração pela conversão dos judeus.
De acordo com as descrições posteriores de Isaac sobre o encontro de 1960, ele apresentou a João XXIII um dossiê contendo os resultados de sua pesquisa sobre a história do ensino cristão sobre os judeus e o judaísmo, e o seu papel no fomento do antissemitismo, solicitando a formação de uma comissão para tratar do assunto no iminente Concílio Ecumênico.
A resposta do papa, relatou Isaac, foi: “Eu já pensei nisso no início da nossa conversa”, e disse a ele que ele poderia ir embora com “mais do que apenas uma esperança” de que algo seria feito.
Após as tradicionais férias do verão de 1960, João XXIII nomeou o cardeal Augustin Bea, um jesuíta alemão e o primeiro chefe do novo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos, para formar uma subcomissão do Concílio dedicada às relações judaico-cristãs. O secretário particular de João XXIII, o então Mons. Loris Capovilla, escreveu um memorando em 1966 para Bea lembrando a importância do encontro com Isaac.
“Eu me lembro muito bem de que o papa ficou profundamente impressionado com esse encontro, e ele conversou bastante comigo sobre isso”, escreveu Capovilla, que mais tarde foi nomeado cardeal pelo Papa Francisco.
“João XXIII nunca havia considerado abordar a questão judaica e o antissemitismo [no Concílio], mas, a partir daquele dia, ele ficou completamente comprometido.”
Em uma daquelas ironias históricas que não podem deixar de parecer injustas, nem Isaac nem João XXIII viveriam para ver o avanço que resultou do seu encontro: o documento Nostrae Aetate do Vaticano II sobre a relação entre o cristianismo e as outras religiões, com uma ênfase particular no judaísmo.
Entre as suas afirmações divisoras de águas, estava uma a respeito da morte de Cristo: “Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a condenação de Cristo à morte não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixão se perpetrou”. O documento também afirma que a Igreja “deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus”.
Um primeiro esboço do documento, na época intitulado “Decretum de Iudaeis” (“Decreto sobre os Judeus”), foi aprovado por João XXIII em novembro de 1961, mas a versão final com o novo título só foi promulgada em 1965, sob São Paulo VI, dois anos após a morte do Papa João em junho de 1963. Isaac morreria três meses após o Papa João, em setembro de 1963.
Curiosamente, todos os três atores principais da saga da Nostra Aetate – João XXIII, Isaac e Bea – estavam na casa dos 80 anos na época, provando, entre outras coisas, que nem sempre são os jovens que lideram as revoluções. Nesse caso, três homens recorreram ao peso acumulado das suas convicções e à sua experiência de vida e, juntos, mudaram a história.
(Como nota de rodapé, houve uma quarta figura que desempenhou um papel mais nos bastidores, uma leiga italiana chamada Maria Vingiani, que morreu em janeiro, aos 98 anos. Nascida em Veneza, ela ficou fascinada no início da sua vida com a diversidade religiosa da cidade, incluindo a sua histórica comunidade judaica – na verdade, foi o dialeto veneziano que deu ao mundo o termo “ghetto”. Vingiani se lançou ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, tornando-se amiga, ao longo do caminho, de Roncalli, quando ele era patriarca de Veneza, e de Isaac. Quando Isaac solicitou a sua agora famosa audiência, Vingiani o apoiou e aconselhou fortemente que João XXIII aceitasse o encontro.)
Esse momento decisivo nas relações judaico-católicas, assim como o próprio cristianismo, começou com um simples encontro. Talvez a moral da história seja a de que cada pessoa deve levar a sério todo encontro com outra pessoa, porque você nunca sabe quando o destino pode estar lhe chamando.
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Há 60 anos, um papa encontrou um judeu e o mundo mudou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU