15 Outubro 2019
O encontro sinodal em Roma é o fruto mais recente da reforma ainda em desenvolvimento do Papa Bom.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 11-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É providencial que a Igreja marque a memória litúrgica de São João XXIII, no dia 11 de outubro, bem na primeira semana da assembleia especial do Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia.
É difícil imaginar que algo como esse encontro no Vaticano (de 6 a 27 de outubro) poderia ter acontecido se Angelo Roncalli não tivesse sido eleito papa em 1958. Em apenas quatro anos e meio como bispo de Roma, ele lançou as bases para uma grande reforma da Igreja Católica que ainda não foi totalmente concretizada.
A assembleia sinodal deste mês – de fato, o reforço do Papa Francisco ao Sínodo dos Bispos como uma importante instituição de governo e suas tentativas de implementar a sinodalidade como o modus vivendi da Igreja universal – é apenas a manifestação mais recente da reforma inovadora e ainda em desenvolvimento de João XXIII.
O Papa Bom estava apenas no terceiro mês do seu pontificado de curta duração e já com 77 anos quando anunciou seus planos de realizar o primeiro concílio geral da Igreja em quase 100 anos.
O Concílio Vaticano II, como foi chamado, marcou uma mudança de paradigma monumental na Igreja Católica, uma mudança que – de muitas maneiras – apenas começou.
O Papa João XXIII pôde supervisionar a fase preparatória do Concílio e presidir, no dia 11 de outubro de 1962, a abertura da primeira de suas quatro sessões anuais. No entanto, ele faleceu no verão seguinte (3 de junho de 1963), quando o Vaticano II estava apenas começando, deixando à sua amada Igreja um movimento propulsor de reforma que continua até hoje.
Certamente, Paulo VI, que o sucedeu, merece muito crédito por ter continuado o Concílio. Não há como saber se outro papa teria feito isso ou teria feito da mesma maneira.
Mas os fundamentos e o legado do Vaticano II e sua reforma em andamento pertencem a ninguém menos do que João XXIII.
Nas últimas cinco décadas, os pastores da Igreja e o povo em geral se esforçaram para adotar e implementar toda a força espiritual e as consequências institucionais/estruturais do Concílio reformador de João XXIII.
Mas outros católicos – incluindo homens nos mais altos níveis da hierarquia – tentaram domesticar, deter e até reverter as mudanças provocadas pelo Vaticano II e pelas suas consequências.
De modo mais simples, os católicos continuam divididos pelas suas atitudes contrastantes em relação ao Concílio Vaticano II.
E isso se tornou mais pronunciado e dramático na nossa era digital, evidenciado pela resistência ativa de um pequeno (mas muito bem organizado) grupo de católicos fundamentalistas, obcecados por regras, ao pontificado reformador do Papa Francisco.
Eles estiveram ocupados na última semana em Roma e nas mídias sociais – particularmente porque o atual papa permitiu que os participantes da assembleia sinodal para a Amazônia discutissem abertamente se o celibato é um requisito necessário para ser padre.
Ele é o primeiro papa na era do Vaticano II e no pós-Concílio a fazer isso. E os fundamentalistas não estão nada contentes com isso.
Nos primeiros dias, os participantes do Sínodo abriram suas discussões sobre a questão da ordenação dos viri probati, homens casados de comprovada virtude cristã.
Eles seriam os membros mais idosos da comunidade católica local que seriam reconhecidos como lideranças espirituais. A autoridade da Igreja (o bispo local) poderia então delegá-los sacramental e juridicamente para administrar os sacramentos e para presidir a Eucaristia.
Um dos principais defensores da instituição desse plano é o bispo Erwin Kräutler, um Missionário do Preciosíssimo Sangue, 80 anos, que atuou quase toda a sua vida sacerdotal nas áreas remotas da floresta amazônica.
Jornalistas católicos e blogueiros tradicionalistas criticaram o missionário aposentado nascido na Áustria.
“Citando as Escrituras, Dom Kräutler disse acreditar que é mais importante levar a Eucaristia às pessoas do que manter o celibato obrigatório”, tuitou um deles.
E, para isso, só podemos dizer: “Amém!”.
“Existem milhares e milhares de comunidades na Amazônia que não têm a Eucaristia, exceto uma ou duas vezes por ano”, disse o bispo em entrevista coletiva no dia 9 de outubro.
“Essas pessoas são praticamente excluídas. Elas são excluídas do contexto da Igreja Católica”, acrescentou, estimando que dois terços das paróquias e comunidades católicas da Amazônia são lideradas por mulheres.
“São João Paulo II disse que a Igreja não existe senão ao redor do altar”, continuou Dom Kräutler. “Pelo amor de Deus, essas pessoas não têm isso!”
Como os papas – incluindo Francisco – sempre disseram que a Igreja não pode ordenar mulheres (posição da qual Kräutler evidentemente discorda), o bispo missionário está se esforçando para ordenar os viri probati.
“Não há outra opção”, disse ele enfaticamente.
Essa não é a única questão na discussão sinodal que colocou os tradicionalistas da Igreja em alvoroço.
A maioria deles, pelo menos entre os falantes de inglês, parece adotar as opiniões políticas de direita defendidas por ultranacionalistas e, portanto, opõem-se à atenção que esta assembleia sinodal está dando às questões ecológicas.
E ninguém fica surpreso com isso. Essas mesmas pessoas criticaram muito a encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, o documento sobre a responsabilidade humana pelo cuidado da criação, que é um dos principais textos para a discussão do Sínodo sobre as questões de justiça ecológica e social.
Os críticos de Francisco tentaram minar seu pontificado, seus ensinamentos e seus esforços de reforma.
Alguns deles estão trabalhando ativamente – com a ajuda de padres, de um pequeno número de bispos e até de alguns cardeais – para colocar obstáculos no seu caminho. A maioria deles, no entanto, está silenciosamente “esperando que ele saia” e se preparando para (e esperando por) um sucessor mais do seu gosto.
As palavras de abertura do cardeal brasileiro Claudio Hummes, relator geral da assembleia sinodal sobre a Amazônia, não são o tipo de coisa que essas pessoas querem ouvir.
“A Igreja não pode ficar sentada em casa, cuidando de si mesma, cercada de muros de proteção. Muito menos ainda, olhando para trás com certa nostalgia de tempos passados”, disse o franciscano de 85 anos.
“Ela precisa abrir as portas, derrubar muros que a cercam e construir pontes, sair e pôr-se a caminho na história”, disse ele.
Hummes não mencionou o Papa João XXIII em seu discurso de abertura. Mas o espírito e a visão do falecido papa podiam ser sentidos em suas palavras. E também estão claramente vivos na pessoa do Papa Francisco.
O cardeal Hummes inspirou Jorge Mario Bergoglio a assumir o nome de Francisco, depois de ter sussurrado no ouvido do papa recém-eleito: “Não se esqueça dos pobres”.
E, embora São Francisco de Assis – especialmente por causa do seu amor pelos pobres, pelos marginalizados e por toda a criação de Deus –certamente seja uma grande inspiração para o papa de 83 anos, há outra figura que continua animando o seu pontificado reformista.
Lembremo-nos de que Bergoglio quase foi eleito bispo de Roma em 2005. O falecido cardeal Francesco Marchisano disse a um jornalista antes de falecer que havia perguntado ao argentino que nome ele assumiria se tivesse sido eleito naquele ano.
Foi assim que ele respondeu:
“João, eu me chamaria João, como o Papa Bom. Eu me inspiraria completamente nele.”
E não deveria mais haver dúvidas sobre isso.
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João XXIII e o Sínodo da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU