O abismo e o amor comum: sobre “Salvar a fraternidade – juntos” (parte 4). Artigo de Andrea Grillo

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26 Junho 2021

 

A crítica exercida pelas “razões humanas” e a autocrítica que a teologia deve assumir acerca das “perversões do sagrado” tornam-se uma tarefa decisiva para “salvar a fraternidade”. Aqui, como fica evidente, delineia-se uma tarefa comum e uma espécie de aliança entre o saber civil e o eclesial. Mas isso não basta.

O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 25-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

A primeira, a segunda e a terceira parte da série podem ser lidas, respectivamente, aqui, aqui e aqui.

 

Eis o texto.

 

A última parte do texto consiste em uma “carta aberta” cujos destinatários são os intelectuais externos à tradição eclesial. Aqui se nota, desde as primeiras linhas, uma abordagem muito vigorosa: pede-se, com uma súplica, aos intelectuais contemporâneos

“que purifiquem a cultura dominante de toda a concessão complacente aos espíritos conformistas do relativismo e da desmoralização” (SF 19).

Para evitar um efeito de distorção, acredito que é bom especificar dois pontos: por um lado, o contexto da afirmação é a Fratelli tutti. Relativismo e desmoralização são o produto de uma injustiça da pobreza e do descarte. Por outro lado, porém, adverte-se como que um “cone de sombra” da leitura antimodernista, que se manifesta ainda mais em uma passagem um pouco mais adiante:

“A autorreferencialidade exasperada do indivíduo moderno, sujeito de um desejo que busca a realização de si mesmo na separação em relação ao outro, contaminou as formas da comunidade. Elas próprias estão se tornando permeáveis a um espírito de competição hostil pelo gozo dos bens disponibilizados pela natureza e pela cultura” (SF 20).

Aqui, inevitavelmente, abre-se espaço para uma visão que contrapõe o indivíduo moderno às formas da verdadeira comunidade. Reemerge a possibilidade de uma leitura um pouco contraposta e com alguns traços nostálgicos. Curiosamente, o que a parte mais “interna” do discurso nega com grande eficácia, aqui, no diálogo “ad extra”, parece reemergir como um registro que permanece. Não teria sido arriscado esperar aqui, para além da crítica justa, também uma valorização da “descoberta do sujeito”, da “consciência histórica”, do “pluralismo vital”, que certamente não está ausente das mentes dos redatores, mas não aparece no texto.

A cultura é repreendida por quase não ter palavras para aqueles milhões de homens e mulheres que continuam mantendo fé, com dignidade, na tarefa do respeito, da confiança, da hospitalidade e da generatividade. É mais fácil isolar, dividir, contrapor, suspeitar.

A súplica, assim, se dirige a um “ato de custódia”: que o “Nome de Deus” seja guardado por todos. Que tudo possa ser criticado, submetido a juízo, desmascarado, mas que se guarde o Nome de Deus, que resplandece para todos no rosto do próximo. Reencontrar essa origem e destino comuns, que se torna visível no amor ao próximo, implica uma descoberta radical, que é assim expressada:

“Ou alguém nos ama, antes e depois do abismo, ou nada resta. Para ninguém” (SF 22).

Chega-se, enfim, a duas proposições conclusivas, que retomam a mensagem fundamental, em toda a sua rica e convincente articulação. Acima de tudo, a necessária correlação entre pensamento “secular” e pensamento “teológico”:

“Salvar a fraternidade para permanecer humanos. Sem o contributo das razões humanas do sentido, buscadas sempre de novo por tentativa e erro, o pensamento cristão da fé não pode realmente habitar a terra com a honestidade intelectual que o seu testemunho da encarnação de Deus exige. A teologia deve, por seu turno, aceitar confrontar criticamente as perversões do sagrado, por tentativa e erro, para que não gozem da cumplicidade da fé” (SF 23).

A crítica exercida pelas “razões humanas” e a autocrítica que a teologia deve assumir acerca das “perversões do sagrado” tornam-se uma tarefa decisiva para “salvar a fraternidade”. Aqui, como fica evidente, delineia-se uma tarefa comum e uma espécie de aliança entre o saber civil e o eclesial. Mas isso não basta.

“Depois de ter passado alguns séculos impondo às consciências a necessidade do seu recíproco afastamento, por pura sujeição às disciplinas de partido, estamos convencidos que chegou o momento de experimentar a liberdade da sua frequência empática, em vista de novas políticas do espírito. Dispostos ao sublime desprezo de todos os aparelhos religiosos e seculares que, nas guerras fratricidas – das religiões e contra a religião – dominaram demasiado tempo, para prejuízo nosso e dos nossos filhos” (SF 23).

Superar as formas de “recíproco estranhamento” entre razão e fé, entre consciência livre e consciência crente, torna-se o método para que uma “empática frequentação”, que implica um intenso e difuso conhecimento interessado e recíproco, coloque em campo todos os recursos disponíveis a serviço da fraternidade entre diferentes.

 

Para concluir

Se quiséssemos retomar o sentido deste belo documento, poderíamos dizer assim: a 60 anos do Concílio Vaticano II, com tudo o que aconteceu dentro e fora da Igreja, a solicitação que vem do Papa Francisco, em particular do seu texto Fratelli tutti, soa simultaneamente “a partir de dentro” e “de fora” da tradição eclesial: porque chegou a Roma, mas “a partir do fim do mundo”. Porque trabalha no Palácio Apostólico, mas mora fora, em um albergue. Porque, depois de uma interminável série de papas europeus, ele é o primeiro que vem da geografia, da história e da cultura extraeuropeias.

Com todas essas dinâmicas estranhezas, Francisco nos faz sentir a urgência de uma mudança de paradigma, que deixe de lado as “guerras de posição” nas quais, há quase dois séculos, havíamos nos tornado mestres, como teólogos e como intelectuais. Os filhos nos pedem para parar com isso. E o primeiro papa “filho do Concílio”, justamente como filho, mudou de pergunta, de perspectiva, de argumentações e de ritmo. E nos pede que não caiamos nas armadilhas que construímos “para os inimigos” e nas quais hoje nós mesmos acabamos caindo mais facilmente.

O liberalismo, com as suas sombras, mas também com as suas luzes, não é “o princípio antidogmático”. O dogma, com as suas luzes, mas também com as suas sombras, não é “obscurantismo fora do tempo”. A fraternidade – que na sua inevidência funciona quase como um dogma (o Filho de Deus é filho de Maria, nosso irmão) – mostra que a liberdade e a igualdade pressupõem a comunidade, e que a comunidade só é legítima se produzir a verdadeira liberdade e abrir oportunidades iguais para todos.

Salvar a fraternidade e a comunidade significa que “livres e iguais” não é nem o inferno garantido, nem o paraíso de chave na mão. Uma mediação fraterna da sociedade passa por uma nova fraternidade cultural, que se constrói sem excomunhões recíprocas e sem irenismos formais.

A “matéria do mundo” pede espíritos livres, ou seja, obedientes a serviço de uma inteligência do real. Só podemos fazer esse serviço se o fizermos juntos. Todos e todas interessados/as em valorizar as benditas diferenças das quais vive uma comunidade verdadeiramente fraterna.

 

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