03 Setembro 2021
"Mas hoje o que nos interessa essas discussões de dois mil anos atrás? É porque podem ser objeto de pregação para o grande público, abrindo cenários problemáticos. Porque repropor em termos simplificados as contraposições antigas comporta o risco de confirmar estereótipos hostis, no caso particular aquele do judaísmo como religião revogada e formalista, toda deveres, sem espírito, ou simples preparação, "pedagogia" para a nova fé", escreve Riccardo Di Segni, Rabino Chefe da Comunidade Judaica de Roma, em artigo publicado por La Repubblica, 02-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caro diretor, embora nossas preocupações se concentrem no Covid e os eventos afegãos, pareceria estranho nos distrairmos sobre uma recente pequena controvérsia inter-religiosa. Mas o tópico é de algum interesse e são úteis explicações. A situação surge de um recente comentário papal sobre a epístola de Paulo aos Gálatas, em que se falava sobre o papel da lei, a Torá, com respeito à fé; seguiu-se um protesto. Em defesa de Paulo e de quem o citou foi mencionado até Baal Shem Tov (falecido em 1760), o mítico fundador do hassidismo na Europa Oriental, com uma frase sobre o sentido das ações; dele se pode começar com outra frase. Na época do Baal Shem Tov não havia transporte público e era preciso contar com cocheiros desconhecidos. O Mestre, que viajava muito, tinha uma regra para decidir quem era confiável. Se o cocheiro, passando em frente a uma igreja, fizesse o sinal-da-cruz, era de confiança. Para o Baal Shem Tov, um simples ato de fé, mesmo que não judaica, era um sinal de credibilidade. Tanto é importante, para os grandes mestres do judaísmo, a fé.
A religião judaica é composta de regras a serem observadas, junto com um sistema de crenças. Das longínquas origens até hoje, discute-se no judaísmo o valor que a observância dos preceitos pode ter sem uma adequada participação espiritual, sem crer. Muitos são os Mestres, antes e depois do Baal Shem Tov, que enfatizaram a importância absoluta da fé. Mas nenhum deles jamais sonhou em dizer que, se não há fé, não há necessidade de observar, e que a observância serve apenas para preparar para uma nova fé.
O problema foi colocado pelo cristianismo nascente, especialmente quando teve que encontrar uma fórmula para se diferenciar da matriz judaica. A solução proposta por Paulo foi, muito simplesmente, que não apenas a fé prevalecesse, mas que a observância já fosse superada; era preciso crer e não se estava submetidos às leis da Torá. Em sua escolha, Paulo ecoava temas discutidos no Judaísmo de seu tempo, ele estava convencido que tempos novos exigissem reformas radicais, mas ao dizer que a Torá era revogada se colocava fora do Judaísmo e criava uma religião diferente.
Mas hoje o que nos interessam essas discussões de dois mil anos atrás? É porque podem ser objeto de pregação para o grande público, abrindo cenários problemáticos. Porque repropor em termos simplificados as contraposições antigas comporta o risco de confirmar estereótipos hostis, no caso particular aquele do judaísmo como religião revogada e formalista, toda deveres, sem espírito, ou simples preparação, "pedagogia" para a nova fé.
Tratar esses temas requer atenção e avaliação das consequências. Também causam surpresa certas defesas protocolares, nas quais se chega a paradoxos. Para aqueles que protestaram sobre a maneira como as palavras de Paulo foram explicadas, foi respondido que Paulo apenas quis dizer que para ele a Torá sem fé não tem valor, e nisso ele afirmava um princípio judaico.
Certamente Paulo tem referências sólidas à tradição judaica, mas seu pensamento também é revolucionário. Não se pode dizer que seu pensamento é judaísmo justamente quando propõe sua releitura radical da Torá, que lhe serve de introdução a uma nova fé; nem afirmar hoje que quem defendia a Torá era um “missionário fundamentalista”, termo que hoje em dia deveria ser dirigido a outro lugar. O Baal Shem Tov colocava a fé em primeiro plano, mesmo a fé dos não judeus, mas a Torá não a relativizava. Seria útil usar a lição do Baal Shem Tov não para fazer-lhe dizer coisas que nunca sonhou em dizer, mas para ensinar o respeito mútuo, que neste caso não existiu.
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Torá, uma lição de respeito. Artigo de Riccardo Di Segni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU