19 Junho 2020
“A fase que se aproxima apresenta duas possibilidades para a subjetividade, constituintes da alternativa em que se decidirá o destino de nossa civilização: somos convocados a escolher entre a suposta segurança da submissão aos imperativos do mercado ou a invenção do caminho da emancipação, que supõe o risco de um caminhar sem garantias”, escreve Nora Merlín, psicanalista, em artigo publicado por El Destape, 14-06-2020. A tradução é do Cepat.
O coronavírus destroçou algumas crenças que no senso comum funcionavam como certezas indiscutíveis: a onipotência do mercado, a ciência e as novas tecnologias, entre outras. Cada uma delas apresenta sua especificidade, surgimento histórico e desenvolvimento particular, coincidindo em constituir elos fundamentais do atual dispositivo de poder. A fé neles, como pilares idealizados da civilização contemporânea, ergueu-os como novos deuses diante dos quais era preciso se submeter.
Os dispositivos são aparelhos que instalam práticas, crenças e formas de vida, reproduzindo indefinidamente o sistema de dominação capitalista. O grande êxito do capitalismo neoliberal é nos governar não contra a vontade, mas graças a ela e através dela, convencendo-nos de que a situação em que estamos é o resultado de nossas escolhas e decisões.
Há anos, o prestígio hegemônico da ciência e do mercado vem caindo: ambos mostraram seus “fiapos”: interesses ‘non sanctos’ e falta de neutralidade dos especialistas. A pandemia produziu um golpe final: a ciência estabelecida se mostrou furada, sem poder dar respostas, exibindo suas fissuras e incompetência. Por sua parte, o mercado global se desaprumou e os países chamaram os Estados e a saúde pública para que se responsabilizassem pelo caos, a fome, a crise sanitária e econômica delineada.
A situação difere em relação à crença na onipotência da técnica atual, apesar de o coronavírus também ter demonstrado sua inconsistência. As mais sofisticadas tecnologias, a vigilância global, a inteligência artificial, fracassaram em prevenir a pandemia, e o suposto controle digital absoluto das potências mundiais não pôde evitar a propagação do vírus.
No entanto, apesar deste fracasso, insiste-se na hipótese do futuro digital para a humanidade, na possibilidade de um panóptico global e uma vida condenada a quase absoluta virtualidade como destino irreversível.
Grande parte da subjetividade repete esses tipos de teorias que vão se instalando no senso comum com eficácia performativa. São argumentos produzidos por algum filósofo em moda, com base em suas conjecturas, as corporações tecnológicas e os think tanks.
A virtualização da vida representaria uma grande oportunidade para Apple, Microsoft, Amazon, Google e Facebook, razão mais que suficiente para que seus especialistas e management pretendam instalar a crença de que, superado o coronavírus, haverá novas e inevitáveis pandemias. A maior segurança, afirmam, consistirá em eliminar os intercâmbios presenciais e digitalizar as vidas, argumentos que resultam tão óbvios como perigosos. O capitalismo sempre aproveita a crise para aumentar seus lucros. A conjuntura da quarentena com o fechamento em escala mundial e a reconversão à virtualidade da vida, apresenta um terreno propício para instalar a crença em um mundo novo, governado pelas tecnologias atuais.
Embora a maioria das atividades – educação, trabalho, lazer, consumos culturais, psicanálise, atividade física e até o sexo – passaram a requerer um suporte digital, não há nada que indique que este estilo de vida quase absolutamente virtual tenha vindo para ficar.
O poder instala na subjetividade crenças e afetos, angústia e medo, para que a crise jogue a favor do mercado e as corporações. Enquanto sustenta em nome da liberdade que é necessário acabar com a quarentena, realiza o marketing que impõe as “vantagens” da virtualidade. Ato seguido, coloca em marcha a maquinaria de identificação, sugestão e “contágio” das ideias, que acaba se naturalizando, ganhando o senso comum.
Trata-se de uma operação de imposição, uma psicologia das massas que constitui o modo social privilegiado para a obediência inconsciente. Em meio à pandemia, apesar de ter constatado a impotência das tecnologias para conseguir o controle do vírus, a subjetividade mantém a crença na onipotência das novas tecnologias e em um destino virtual inevitável. Estamos diante de um novo caso de colonização da subjetividade. No entanto, a análise não se esgota com as operações que o poder realiza, porque a subjetividade não é uma marionete, nem uma vítima passiva.
Os dispositivos conhecem muito bem o conteúdo do qual é feito o sujeito e, montando-se sobre essa materialidade, oferecem mecanismos para redimir suas faltas. Por ter nascido indefeso, o sujeito se constitui a partir do apego e a dependência do Outro, o que o torna carne de canhão para acreditar na onipotência do Outro, daquele que supostamente possui o que falta ao sujeito. Assim, desfilará uma série de encarnações deste Outro que se inicia com a mãe, seguindo pelo pai, Deus e finalmente qualquer um que ocupe esse lugar: a ciência que o protegeria das doenças e limitações, o mercado com a promessa de liberdade e felicidade, etc.
Hoje, Apple, Google, Microsoft e um longo etc. formam os sistemas capazes de responder todas as perguntas dos usuários e sugerir os produtos adequados para cada momento da existência. São “assistentes” dedicados a ajudar, conseguir amigos, amores, oferecer “o melhor” em cada instante, preenchendo faltas e nos conduzindo com o GPS pelo caminho da “felicidade”.
A crença na onipotência das novas tecnologias nos protegerá das próximas pragas que, diz-se, açoitarão cada vez mais o planeta. Este mito quase religioso apaga a própria operação de adjudicação do poder ao Outro, realizada pelo realiza, acobertando, ao mesmo tempo, que a suposta solução é na realidade o problema: submetido aos dispositivos “salvadores”, o sujeito afirma sua submissão, inventando um novo amo.
Se a inteligência artificial e a vida absolutamente virtual se consumir será, mais uma vez, pela cumplicidade de uma subjetividade colonizada, que volta a delegar às corporações o poder de comando.
Com o coronavírus ficou demonstrado que chegou o momento de se dedicar à construção de uma nova ordem, e que a mesma deverá ser governada pela política democrática. A fase que se aproxima apresenta duas possibilidades para a subjetividade, constituintes da alternativa em que se decidirá o destino de nossa civilização: somos convocados a escolher entre a suposta segurança da submissão aos imperativos do mercado ou a invenção do caminho da emancipação, que supõe o risco de um caminhar sem garantias.
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Crença, tecnologias e subjetividade colonizada. Artigo de Nora Merlín - Instituto Humanitas Unisinos - IHU