03 Mai 2021
"Uma breve história sobre a fraternidade deve passar por uma leitura antropológico-filosófica, como reflexão que a cultura tem realizado ao longo dos séculos sobre a relação inter-humana, social e política, e, ao mesmo tempo, exige ser considerada através daquela leitura teológico-religiosa que a tradição judaico-cristã tem elaborado a partir da relação revelada e inspirada com Deus".
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 02-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Reprodução da capa do livro de Andrea Grillo
Acaba de sair um pequeno texto, no qual procuro refletir sobre o “fio condutor” da Encíclica Fratelli tutti. Publico algumas passagens que se encontram no início e no final do texto e que dão o sentido do trabalho necessário para acolher as ideias fundamentais do magistério sobre a fraternidade, no nível filosófico e teológico.
O tema da fraternidade [1], que permeia toda a tradição ocidental antiga e recente em profundidade, tem raízes judaico-cristãs muito importantes. No entanto, parece ter adquirido relevância "política" imediata apenas a partir da modernidade tardia. Mesmo na Igreja Católica, uma longa tradição de "fraternidade" - confessada, pensada e vivida - chega em 2020, com a Encíclica Fratelli tutti da Papa Francisco (= FT), para assumir uma importância magisterial nova e de certa forma surpreendente. De alguma forma antecipada pela "doutrina social" a partir da Rerum novarum (1891), depois pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), pela profecia da Pacem in terris (1963) e também por um capítulo da Caritas in veritate (2009) de Bento XVI, pela radicalidade da abordagem, o texto de 2020 reabre um debate forte, exigente e necessário.
Por isso, compreender o texto de Francisco exige uma dupla e paralela hermenêutica. Uma breve história sobre a fraternidade - sem esquecer a "amizade social" que aparece no subtítulo do texto papal e constitui uma importante vertente da reflexão de fraternitate no Ocidente - deve passar por uma leitura antropológico-filosófica, como reflexão que a cultura tem realizado ao longo dos séculos sobre a relação inter-humana, social e política, e, ao mesmo tempo, exige ser considerada através daquela leitura teológico-religiosa que a tradição judaico-cristã tem elaborado a partir da relação revelada e inspirada com Deus. Relação entre os homens e relação com Deus se entrelaçam no pensamento sobre ser irmãos e irmãs.
A fraternidade se abre assim partindo do homem como zòon politikòn, tanto da eleição de Israel para ser um povo de irmãos, como da encarnação do Logos e da redenção por Cristo crucificado e ressuscitado, para que todos sejam "uma só coisa " Diremos imediatamente - e este será um dos pontos-chave do nosso texto - que para falar de fraternidade é necessário não censurar e não remover as duas "condições" da fraternidade: isto é, por um lado , uma experiência "externa" de paternidade/maternidade, do outra é uma experiência "interna" de filiação.
A fraternidade vale-se e pressupõe duas condições que a “ligam” a uma relação externa (pai/mãe) e interna (outros filhos). Ninguém pode chamar-se "irmão" se não aceita confrontar-se tanto com um pai e uma mãe ante si mesmo, assim como com o "filho" que pode e deve encontrar e reconhecer em si mesmo e que descobre, ao mesmo tempo, em outro ao lado de si. A esperança de ser "imediatamente irmãos/irmãs", sem genealogia e sem um começo de si destituído de si mesmo diante de um outro, este é um dos pontos problemáticos e fecundos da grande utopia moderna. Poderíamos dizer que o mundo moderno tardio é elaborado por meio de um novo conceito de fraternidade, que independe da relação. Desse modo, a fraternidade também é pensada como uma "relação pura"[2].
No tema da fraternidade, assumida nesta riqueza de significado, destacamos, portanto, duas linhas de reflexão, que brotam da "razão" e da "fé" e que se entrelaçam de forma significativa. O Papa Francisco se refere explicitamente a ambas. E o faz em plena fidelidade à grande intuição com que o Concílio Vaticano II assumiu a tarefa de entender a tradição “à luz do Evangelho e da experiência humana” (GS 46). Palavra de Deus e experiência humana, em sua mediação histórica, iluminam a tradição. São duas vias, nunca opostas, mas nem sobrepostas - em si mesmas não necessariamente antitéticas ou contraditórias - de hermenêutica da fraternidade. No plano do método, este parece ser um fato relevante: uma vez que assume a "autonomia das realidades temporais" como acesso pertinente à tradição do discurso fraterno.
(...)
Se tentarmos articular as passagens deste volume, em uma direção de desenvolvimento significativo, podemos descobrir o fio condutor de uma correlação da fraternidade com o tema do mundo aberto. Com efeito, o discurso sobre a fraternidade abre-se constitutivamente à preocupação pela communitas. Aliás, como vimos em nosso percurso, a communitas à qual a fraternidade remete está ao mesmo tempo antes e depois da fraternidade. Constitui sua condição e, ao mesmo tempo, seu efeito. Por um lado, a fraternidade abre-se a uma comunhão universal, mas pressupõe formas de comunhão particular. Tem suas raízes em uma geração, nutrição, educação - em uma diferença - que se abre para a indiferença da liberdade e a indistinção da igualdade. Poderíamos dizer que a fraternidade é a mediação da liberdade e da igualdade, no duplo sentido desta mediação: depende da autoridade e da diferença e gera, nutre, educa para a liberdade e igualdade.
Hoje vivemos esta delicada experiência de fraternidade e sororidade em uma grande crise. A “tempestade da pandemia”, que nos pediu para “colocar máscaras”, “higienizar ou cobrir as mãos”, “manter a distância”, fez com que “caíssem muitas máscaras”. Precisamente o "protocolo sanitário", com os seus "dispositivos de segurança", fez-nos ver melhor o quanto precisamos de rostos reconhecíveis e expressivos, o quanto as mãos que tocam, são tocadas e se encontram sejam decisivas para estabelecer relações significativas com o próximo e com o mundo, o quanto a "medida do espaço" que resiste ao encontro impede uma verdadeira comunicação presencial. A fraternidade tem "condições táteis, visuais e espaciais" que não são compressíveis, senão por condição extrema. Esse caso extremo também nos permite uma leitura mais profunda e menos "circunstancial" também do texto da Fratelli Tutti.
1 - Prefiro usar principalmente o termo “fraternidade”, como um termo mais geral, pois “irmandade” aparece limitado à experiência imanente do irmão ao nível da geração e da pertença social. A fraternidade inclui a irmandade, não o contrário. A ampliação do conceito, com a noção de "sororidade", parece necessária e será abordada em uma passagem do texto.
2 - Utilizo a categoria de A. Giddens, A transformação da intimidade. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, Unesp, 2003. A noção de "relação pura" é utilizada para a relação sentimental e conjugal, mas pela sua "pureza" - isto é, pela sua incondicionalidade - pode ser aplicada sem forçar demais, também para a relação fraterna. Certamente há aqui uma politização da fraternidade que resulta ao mesmo tempo repleta de novidades e de problemas.
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Fraternidade e mundo aberto. O sonho da Fratelli Tutti. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU