“Estamos inequivocamente diante de um grande sonho, na linha das grandes utopias humanas. Face à gravidade da situação atual, parece, não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar. Compete a nós não deixar que o sonho seja apenas sonho, mas seja aquilo que ele significa, o antecipador de realidades futuras e possíveis: o começo seminal de uma nova forma de habitar juntos, como irmãos e irmãs e com a natureza, na mesma Casa Comum. Teremos tempo e sabedoria para esse salto? O tempo o dirá”, escreve Leonardo Boff para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.
Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor e autor de “Francisco de Assis e Francisco de Roma” (Editora Mar de Ideias, Rio 2015), dentre tantos outros livros. Boff será palestrante do evento Economy of Francesco, que iniciará na próxima semana, de forma virtual, com o tema "Responsabilidade sócio-ecológica: olhar global, ações territoriais".
A arte que ilustra esta Coluna é uma obra de Kassio Massa, arquiteto, urbanista e artista visual com graduação pela FAU Mackenzie, e mestrando na mesma universidade. Atua com desenho, fotografia e meios digitais.
Não é difícil de perceber que o Papa Francisco com a encíclica social Fratelli tutti rejeita o atual modo de viver na Casa Comum, pois afirma “Se alguém pensa que se trata apenas de fazer funcionar o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está negando a realidade”(n.7).
Diretamente afirma “que é uma ilusão enganadora, pensar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco” (n.30). Em função disso adverte: “ninguém se salva sozinho, só é possível salvar-nos juntos” (n.32).) Num twitter em fins de outubro declarou: “Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.
Como se depreende, rejeita o atual sistema mundialmente integrado. Em vários outros lugares faz afirmações semelhantes. Não se trata mais de melhorar mas de realmente de “sonhar e de pensar numa humanidade diferente”(n.127). Urge construir “um novo vínculo social” (n.66).
Ataca diretamente as quatro pilastras que sustentam a atual ordem mundial: o mercado em termos de economia, o neoliberalismo em termos de política, o individualismo em termos de cultura e a devastação da natureza, em termos de ecologia: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo... como única via para resolver os problemas sociais” (n.168). O individualismo é apresentado “como o vírus mais difícil de vencer; não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade... como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum” (n.105). Em termos de ecologia, inagurou o antropoceno e o necroceno.
Conclusão: encontramo-nos atualmente num mundo “sem um projeto para todos”(n.15; n. 31). Sem um projeto para todos ficamos reféns do projeto privado dos mais fortes que instauram uma perversa opressão econômica, social e cultural sobre todas as sociedades humanas.
Este sistema é perverso, pois, nega o humano em nós; não tem sensibilidade e empatia para com as grandes maiorias empobrecidas e condenadas à altíssima taxa de iniquidade social, consequência da perda da soberania alimentar expressa na fome ou na subnutrição endêmicas e da escassez de água potável. Poucos grupos se apropriam individual ou corporativamente de grande parte dos bens e serviços naturais.
Esse sistema não se afina com a natureza humana que é essencialmente cooperativa e solidária, como nos ensinam as neurociências. O ser humano, de verdade, emerge como um ser de relação, voltado em todas as direções. Esse modo de habitar a Casa Comum nega uma das constantes cosmológicas, que preside o universo, que sustenta todos os seres, das galáxias mais distantes, das estrelas, da nossa Terra e até de cada um nós, comprovando que tudo está relacionado com tudo e que ninguém existe fora da relação (Laudato Si', n. 86; 117). Tudo isso é rejeitado, prática e teoricamente, por este sistema perverso que chegou a introduzir uma nova era geológica, o antropoceno e o necroceno. Vale dizer, ele é o grande Satã da Terra ao invés de ser seu anjo bom e cuidador. Fez-se o meteoro rasante que mata e assassina vidas da humanidade e da natureza.
É neste contexto de um sistema à deriva, com um futuro sem futuro, que o Papa Francisco propõe uma alternativa, fundada em princípios e valores ausentes na atual ordem, em plena crise sistêmica. Onde ele busca os valores e princípios, capazes de lançar as bases para um modo de habitar a Casa Comum, novo e alternativo? Busca-o naquilo que é o mais humano nos humanos, pois só aí se encontra uma base sólida, sustentável e universalizável. Esses valores, pelo fato de serem essencialmente humanos, estão presentes em todos os homens e mulheres das mais diferentes culturas.
Esses valores não estavam ausentes no paradigma vigente. Mas eram vividos apenas subjetivamente, nas relações curtas e na privacidade da vida. A novidade do Papa foi generalizar e universalizar o que era subjetivo e individual.
(Foto: Everton Vila/Unsplash)
Então, o amor deixa de ser uma experiência somente entre dois seres que mutuamente se atraem, para emergir como amor social. Da mesma forma, a amizade ganha uma expressão social, “pois não exclui ninguém”(n.94) a fraternidade entre todos os humanos é sem fronteiras, incluindo, no espírito de São Francisco, os demais seres da natureza; a cooperação aberta a todos os países e a todos os seres; o cuidado, começando por si mesmo (n.117) e expandindo-se para tudo que existe e vive; da mesma forma, a compaixão, a justiça social e a capacidade de perdão. Todo esse mundo de excelências está presente no ser humano.
No paradigma dominante, eram vividos nas relações interpessoais ou em pequenos grupos; na encíclica ganharam agora uma dimensão social, política e universal. Onde encontraríamos uma saída para a nossa crise paradigmática senão na própria realidade essencial do ser humano e na teia de relações que enlaça todos os seres?
Essa dimensão social e universal da fraternidade supera o antigo modo de ser individualista e reducionista. Inaugura o novo nunca antes ensaiado na sua dimensão social e planetária, a não ser em pequenas comunidades de religiosos e de religiosas e em geral entre povos originários. Sua ausência no paradigma da modernidade se revela como um vazio doloroso, uma cultura geral entregue ao individualismo solipsista, uma vida sem enraizamento e uma terrível solidão.
“A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes” (n.179). O seu propósito era acumular sem limites, no pressuposto de que os recursos naturais também seriam sem limites. Tal pressuposição se revela falsa. A Laudato Si' a denuncia como “uma mentira”(n.161).
O motor é a competição, com a apropriação privada dos benefícios, excluindo os demais, mostrando-se excludente, com gritantes desigualdades em todo os campos. No entanto, sustenta a encíclica, “a interdependência entre todos nos obriga a pensar um único mundo,”(n.164), capaz de assegurar a alimentação e a paz, de garantir a salvaguarda do ambiente, de regulamentar o fluxo migratório; para isso urge a presença de uma verdadeira autoridade política mundial” (LS n.175), superando os soberanismos ultrapassados, como reafirma na Fratelli Tutti: “Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para as pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica” (n.109)
Essa forma de construir a sociedade nacional e internacional devastou a natureza a ponto de termos encostado nos limites intransponíveis e superado aquelas nove fronteiras planetárias que, que segundo um documento da ONU, sustentam a vida e que, se violadas, podem produzir o colapso da civilização. Verificou-se também, cientificamente, a assim chamada Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot), vale dizer, os bens naturais básicos para reproduzir a vida se esgotaram. Se continuamos a cobrar-lhe o que já não pode oferecer, responde com mais aquecimento global, com eventos extremos, com desertificação dos solos e outras calamidades. A Terra entrou no vermelho e no cheque especial. Um planeta limitado não suporta um projeto ilimitado.
Esse sistema contradiz o princípio cosmológico e o axioma básico da física quântica e da nova antropologia de que todos os seres se encontram intra-retro-relacionados, todos dependem uns dos outros, se entreajudam e incorporam elementos novos por um processo permanente de simbiose. Tudo vem construído de redes de relações, de energias e de informações que estão permanentemente interagindo entre si. Não existe nenhum gene egoísta ou um ser desgarrado da teia das relações universais.
Lamentavelmente, não há consciência disso tudo, no sistema produtivista, devastador da natureza e cruel face ao destino dos demais semelhantes. Hoje atingiu tal grau de contradições internas que não encontra em seu arsenal, instrumentos próprios para dar conta de seus problemas. É refém de si mesmo. Ao levar avante a sua lógica interna poderá conhecer uma tragédia de proporções nunca dantes vistas, com a possibilidade de pôr fim ao processo civilizatório humano e talvez a nossa própria espécie.
(Foto: Alexander Schimmeck/Unsplash)
Não se pode negar que, junto aos grandes benefícios que tal projeto da tecnociência aportou às comodidades da vida, produziu também o princípio de autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares. Por várias formas diferentes pode destruir a vida humana sobre a Terra e afetar gravemente a biosfera.
Mais e mais se impõe a convicção de que o mundo assim como está não pode ser levado a diante. Chegamos à beira do abismo que nos poderá tragar.
Neste contexto de ausência de alternativas intrassistêmicas, a humanidade busca freneticamente um caminho que permita sua continuidade neste planeta. Nesse ponto, se antecipa a Fratelli tutti com uma proposta a arrojada.
Ou voltamos à nossa humanidade essencial e aí encontramos os fundamentos seguros para um novo ensaio civilizatório, ou, como diz a Carta da Terra “arriscaremos a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida” (Preâmbulo).
A proposta do Papa é uma atitude de confiança no ser humano e em suas potencialidades. Ele foi feito para o amor, para a amizade, para a solidariedade, para a compaixão, para o cuidado da Mãe Terra e de tudo o que existe e vive. A pandemia de covid-19 que, pela primeira vez atingiu toda a espécie humana e somente ela (não os gatos e cães domésticos e outros) representa um inequívoco sinal de que a Mãe Terra-Gaia deu uma resposta ao antropoceno, aquela prática humana dizimadora de vidas em massa: necroceno, seja no reino da natureza seja no âmbito humano.
Encontramo-nos numa encruzilhada: “ou fazemos uma aliança global de cuidar da Terra e de uns e de outros, ou enfrentaremos situações, que nas palavras de Sigmunt Baumann “podem nos levar a engrossar o cortejo daqueles que rumam em direção de sua própria sepultura”.
Se bem observamos, o que nos ajudou a enfrentar a covid-19 não foram os mantras do capitalismo e do neoliberalismo, mas a centralidade da vida, a interdependência de todos com todos, a solidariedade e a cooperação entre os povos, para além dos soberanismos ultrapassados, o cuidado de uns com os outros, com a natureza e a Mãe Terra.
Se nos tivéssemos regido pela cultura do capital com a ausência de valores humanitários, todos teríamos uma sorte trágica.
Aqui reside a alternativa do Papa Francisco que, para salvar a Terra, a vida e a humanidade, se põe a desentranhar o humano de nossa humanidade. O destino comum nos conclama a um novo começo, o que requer um novo coração, uma nova consciência, uma nova relação, terna e fraterna, entre os seres humanos e com os demais irmãos e irmãs da natureza.
O Papa apresenta seu projeto alternativo como “uma humilde contribuição” em forma de um “novo sonho” (n.6). Sonho deve ser entendido não como algo irreal, meramente onírico, mas segundo a Bíblia como uma manifestação de Deus ou como entre os gregos, como uma mensagem divina ou segundo o discurso psicanalítico em C. G. Jung “uma antecipação de realizações futuras, uma concretização prévia de possibilidades”.
Esta é a formulação da alternativa: “um novo sonho de fraternidade e amizade social ...que se abre ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (n.6). Fraternidade e amizade social com todas as suas ressonâncias: amor social, solidariedade, cooperação, cuidado, cultura do encontro e do diálogo, o mundo sem fronteiras e sem muros, política com ternura e gentileza. Repetindo: a fraternidade e o amor social serão os eixos estruturadores de toda a sua proposta assinalada no título Fratelli tutti: irmãos, todos. O Papa se dá conta do inusitado da proposta, reconhecendo: “parece uma utopia ingênua, mas não podemos renunciar a este sublime objetivo” (n.190).
Para entender melhor a novidade desta proposta paradigmática, seria esclarecedor se a compararmos com o paradigma subjacente ao atual sistema global e imperante já há mais de dois séculos: o dos tempos modernos.
É assente entre pensadores, filósofos, cientistas sociais e de outras áreas do pensamento que o ideal a ser perseguido e gerador dos tempos modernos, já projetado pelos pais fundadores do século XVI e XVII (Descartes, Galileo Galilei, Newton, Francis Bacon, Copérnico e outros) é o saber como poder e a vontade de poder: poder entendido como dominação do outro, das classes, dos povos, das culturas da África, da Ásia e das Américas, da natureza, das ínfimas partes da matéria (bóson de Higgs) e da própria vida (código genético). Para conferir eficácia ao saber e ao poder foi criada a tecno-ciência. Ela está preponderantemente a serviço do poder econômico, político e ideológico, ao mercado, e somente em seguida à vida. Na Laudato Si' o Papa a submete à rigorosa crítica (nn. 106-114). Na Fratelli tutti afirma com severidade: “a política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia” (n.177). A ciência deve ser feita com consciência e a técnica com critérios éticos em vista do bem comum.
O poder como dominação significou historicamente uma devastação das culturas como aquelas mesoamericanas e dos povos originários, uma tentativa de homogeneização dos hábitos de pensar, de agir e das diversas culturas, liquidando com as suas diferenças. Tal projeto perturbador ocasionou guerras que dizimaram mais de 200 milhões de pessoas e que encontrou sua máxima expressão na Shoah, “símbolo dos extremos aonde pode chegar a malvadez humana” (n.247): os seis milhões de judeus e outros condenados às câmaras de gás pelo nazismo. Pesarosamente constata “no nosso mundo vive-se uma guerra mundial aos pedaços” (n.259).
A figura é do ser humano como dominus, senhor e dono (maître et possesseur) de tudo. A natureza e a própria Terra (mera res extensa) não possuem valor algum em em si mesmas, apenas na medida em que se ordenam ao ser humano. Ele está acima da natureza e não se entende como parte dela ou ao pé dela. Nas palavras da Fratelli tutti: “é a pretensão de sermos senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe” (n.34).
Em contraposição a este paradigma do dominus, a Fratelli tutti apresenta o paradigma do frater, do irmão (e da irmã, soror) donde se deriva a fraternidade universal (a sororidade universal). Incluindo os dois gêneros, seria a irmandade universal, todos, homens e mulheres, irmãos e irmãs.
Dito numa linguagem pedestre: o paradigma do dominus, do senhor e dono é representado pelo punho cerrado para submeter, enquanto o frater é a mão aberta e estendida para a carícia essencial e para se entrelaçar com outras mãos.
Aqui reside a grande virada paradigmática proposta pela Fratelli tutti. Não é mera projeção sonhática. Capta as tendências de nossa época e afirma que existe “um anseio mundial de fraternidade” (n.8). Belamente sustenta que “aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura...é juntos que se constroem os sonhos. Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos e filhas desta mesma Terra...todos irmãos e irmãs” (n. 8).
Explicitamente assevera o Francisco de Roma que se inspirou em Francisco de Assis “o santo do amor fraterno...que se sentia irmão do sol, do mar e do vento...que andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos”(n.2). Consequentemente Francisco de Assis “suscitou o sonho de uma sociedade fraterna...; libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros” (n.4).
Esse sonho de um medieval, chamado de “o primeiro depois do Único (Jesus de Nazaré)” “o melhor dos homens que o Ocidente gerou” (Toymbee), é que a Fratelli tutti procura traduzir para os dias atuais.
É importante enfatizar esta contraposição de paradigmas. Urge fazer a transição do dominus para o frater se quisermos enfrentar com sucesso as ameaças que pesam sobre o sistema-Terra e o sistema-vida, assinaladas no primeiro capítulo “as sombras de um mundo fechado” (nn.9-55). Na epidemia de covid-19 “ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto”(n.7); “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos” (n.12); pode fazer-nos sócios, “aquele que é associado para determinados intresses” (n.102) mas não próximos no sentido da parábola do bom samaritano (n.102) detalhadamente analisada pelo Papa (nn.63-86).
O Papa apela para o princípio da esperança (Ernst Bloch) que é mais que uma virtude pois é ela “que nos fala duma realidade que está enraizada no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive...; ela nos abre aos grandes ideais” (n.55). Como tem afirmado com frequência aos movimentos sociais: “não esperem nada de cima, pois vem sempre mais do mesmo ou ainda pior”. Assinala que “É possível começar por baixo, caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último rincão da pátria e do mundo” (n.78). Mas “não façamos sozinhos, individualmente...; nós estamos chamados a convidar outros e a encontrar-nos num «nós» mais forte do que a soma de pequenas individualidades” (n.78).
(Foto: Josh Hild/Unsplash)
A fraternidade se funda no fato `”de que todos os seres humanos foram criados iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e chamados a conviver entre si como irmãos” (n.5). O amor fraterno “abre-se a uma dimensão universal” (n.6). Possui um vínculo essencial com todos os seres vivos com os quais o ser humano comunga do mesmo código genético, o que o torna parente, primo, irmão e irmã com todos os seres da natureza: “a vida subsiste onde há vínculos, comunhão e fraternidade” (n.87)
Só haverá “a fraternidade conscientemente cultivada, quando há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, para o diálogo e para a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo” (n.103). Com ênfase diz a Fratelli tutti “enquanto houver uma pessoa descartada não poderá haver a festa da fraternidade” (n.110).
Nesse ponto o Papa Francisco faz uma severa advertência, de uma provável bifurcação da humanidade, de “um cisma” (31), coisa que já foi aventada por notáveis sociólogos que analisam a condição atual do mundo. “Nunca se dirá que não sejam humanos, menos importantes e menos humanos” (n. 39).
Para obviar esta terrível possibilidade da bifucação, confere um lugar especial à amizade social que “se estende para além das fronteiras” (n.99). É a amizade social que “torna possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial, capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a a amizade social; ela torna necessária uma política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (n.154).
Mas o acento maior é conferido ao ao amor, “condição para possibilitar uma verdadeira abertura universal”(n.99). Releva enfatizar, que “pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença” (n.95) porquanto “ela implica um caminho eficaz de transformação da história que exige incorporar tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos” (n.164).
Tal afirmação é carregada de significado: “Esta caridade política supõe ter maturado um sentido social que supere toda a mentalidade individualista: “A caridade social leva-nos a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une”(182). E coloca sua marca registrada na centralidade do amor: “Esta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor (187). Esse amor faz do distante um próximo e do próximo um irmão e uma irmã.
O novo paradigma da fraternidade e do amor social se desdobra no amor em sua concretização pública, no cuidado dos mais frágeis, na cultura do encontro e do diálogo, na política como ternura e amabilidade.
Quanto à cultura do encontro, toma a liberdade de citar o poeta brasileiro Vinicius de Moraes em seu Samba da Bênção de 1962, onde diz: “A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros na vida” (n.215).
A política não se reduz à conquista do poder de estado nem à divisão dos poderes. Afirma de forma surpreendente: “Também na política há lugar para o amor com ternura: aos mais pequenos, aos mais débeis, aos mais pobres; eles devem enternecer-nos e têm o ‘direito’ de nos encher a alma e o coração; sim, são nossos irmãos e como tais temos que amá-los e assim tratá-los” (n.194) E se pergunta que é a ternura e responde: “é o amor que se faz próximo e concreto; é um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos” (n.196). Isso nos faz recordar a frase de Gandhi, uma das inspirações do Papa, ao lado de São Francisco, Luther King, Desmond Tutu: “a política é um gesto de amor para com povo, o cuidado das coisas comuns”.
Junto com a ternura comparece a amabilidade que nós traduziríamos por gentileza, virtude específica de São Francisco de Assis. Assim define a amabilidade: “um estado de ânimo que não é áspero, rude, duro, senão afável, suave, que sustenta e fortalece; uma pessoa que possui esta qualidade ajuda aos demais para que sua existência seja mais suportável” (n.223). Eis um desafio aos políticos, feito também aos bispos e padres: fazer a revolução da ternura.
A solidariedade que outrora nos fez dar o salto da animalidade para a humanidade, é, por isso, uma das notas essenciais do humano e do social. Ela “se expressa concretamente no serviço que pode assumir formas muito diversas e de tomar para si o peso dos outros; em grande parte é cuidar da fragilidade humana” (n.115). Essa solidariedade se mostrou ausente e só depois eficaz no combate à covid-19. Ela impede a divisão da humanidade entre o ‘meu mundo’, os ‘outros’ e ‘eles’, pois “muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável e passam a ser apenas “eles” (n.27). E conclui com um grande desejo: “Oxalá no final não haja “os outros” mas apenas um “nós” (n.35).
Como fazer essa travessia do senhor para o irmão? O texto abre com uma frase rica de consequências: “O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta Terra com a mesma dignidade (n.118). Todos somos filhos e filhas da Mãe Terra, mais ainda, segundo a Laudato Si', somos todos Terra (n.2).
Em seguida assinala um processo: “o bem, o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia” (n.11).
Neste particular a encíclica não oferece grandes detalhes e com razão. Muitos são os ecossistemas nos vários continentes e países e não existe uma fórmula comum. Cada ecorregião possui suas singularidades face à quais devem-se definir os passos para uma transição efetiva. Isso é deixado, deliberadamente, para a iniciativa dos cidadãos.
Mas decididamente encoraja: “é possível começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último rincão da pátria e do mundo” (n.78). Entretanto, remete-se a dois temas, um constante na doutrina social da Igreja e o outro representa a ponta da discussão ecológica atual, a subsidiariedade, e a região e o biorregionalismo.
A Fratelli tutti recolhe “o princípio de subsidiariedade que abrange a participação e a ação das comunidades, a organização de nível menor” (n.175) e para apoiar os movimentos que nascem de baixo: tudo que uma instância inferior puder fazer, não o faça a instância superior. Com isso, abre caminho para iniciativas de pequenos grupos, à agricultura familiar e comunitária, à economia circular, à agroecologia e à uma democracia participativa e não apenas delegatícia.
A outra categoria à qual dedica vários parágrafos é o cultivo da região ou do biorregionalismo, pois é “o local, que nos faz caminhar com os pés por terra” (n.142). Aprofunda a ideia e sustenta que “temos de assumir intimamente o local, pois tem algo que o global não possui: ser fermento, enriquecer, colocar em marcha mecanismos de subsidiariedade. Portanto, a fraternidade universal e a amizade social dentro de cada sociedade são dois polos inseparáveis e ambos essenciais (n.142). Há que se articular sempre o local com o global para ter uma experiência integradora nesta fase nova da humanidade: “Não é possível ser saudavelmente local sem uma sincera e cordial abertura ao universal, sem se deixar interpelar pelo que acontece noutras partes, sem se deixar enriquecer por outras culturas, nem se solidarizar com os dramas dos outros povos”(146).
Esta articulação entre o local com o global permite o surgimento da comunidade mundial que não é o resultado da soma os vários países, mas sim, a própria comunhão que existe entre eles e a mútua inclusão (n.137).
(Foto: Elaine Casap/Unsplash)
Para dar corpo ao sonho de uma fraternidade universal e de amor social, convoca todas as religiões pois “elas oferecem uma contribuição valiosa na construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade” (n.271).
No final evoca a figura do irmãozinho de Jesus, Charles de Foucauld, que no deserto do norte da África junto à população muçulmana queria ser “definitivamente o irmão universal” (n.287). Fazendo seu este propósito o Papa Francisco observa: “Só identificando-se com os últimos chegou a ser o irmão de todos; que Deus inspire esse sonho em cada um de nós. Amém” (n.288).
Estamos inequivocamente diante de um grande sonho, na linha das grandes utopias humanas. Face à gravidade da situação atual, parece, não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar.
De todos os modos, estamos diante de um homem, o Papa Francisco, que por seu exemplo e palavra se alçou à altura de um dos maiores líderes espirituais e políticos da humanidade, senão o maior de todos. Despojou-se dos títulos inerentes à sua alta função como Papa e fez-se irmão de todos para falar como irmão entre irmãos. A exemplo de seu patrono Francisco de Assis, transformou-se também num homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo, cruel e sem piedade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal. Move-o a fé de que “Deus criou tudo por amor e que é o apaixonado amante da vida” (Sab 11, 26). Espera que Ele não permitirá que a humanidade, já entronizada no Reino da Trindade pela ressurreição e ascensão de um irmão nosso, Jesus de Nazaré, desapareça assim tão miseravelmente. Iremos ainda viver e brilhar.
Ele fez a sua parte. Compete a nós não deixar que o sonho seja apenas sonho, mas seja aquilo que ele significa, o antecipador de realidades futuras e possíveis: o começo seminal de uma nova forma de habitar juntos, como irmãos e irmãs e com a natureza, na mesma Casa Comum. Teremos tempo e sabedoria para esse salto? O tempo o dirá. Seguramente continuarão as “sombras vastas”. Mas temos uma lâmpada na Fratelli tutti. Ela não dissipa todas as “vastas sombras”. Apenas nos ilumina o caminho a ser percorrido por todos. E isto nos basta.