03 Dezembro 2016
“Charles de Foucauld é um dos melhores ícones do fracasso, porque preferiu os últimos postos aos primeiros, a vida oculta à pública, a humilhação à exaltação. Por tudo isso, Foucauld é essa imagem na qual todos os fracassados da história podem se reconhecer. E por tudo isso vejo, muitas vezes, as pessoas do mundo caminhando em uma direção e Foucauld na contrária. Mas não é o único; há outros com ele, todos solitários, todos loucos. E o primeiro dessa fila é o próprio Jesus Cristo, o mais louco de todos”, escreve Pablo d’Ors, sacerdote, escritor e conselheiro cultural do Vaticano, em artigo publicado por Alfa y Omega, 01-12-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Charles de Foucauld (15 de setembro de 1958 – 01 de dezembro de 1916) é um padre do deserto contemporâneo. Sua vida e obra, que bebem da espiritualidade de figuras da estatura de Agostinho, Bento, Francisco e Inácio, remontam aos padres do ermo que povoaram os desertos da Síria e do Egito durante os primeiros séculos do cristianismo. Para entender Foucauld em sua verdadeira dimensão, há que irmaná-lo com Dionísio, o Areopagita e Efrém da Síria, com Isaías, o Anacoreta ou Gregório de Nazianzeno. A fonte da qual beberam estes padres do deserto e que mais tarde concretizaria o movimento hesicasta foi a mesma da qual o irmão Charles também bebeu, cuja missão –essa é minha tese – não foi a de fundar algo radicalmente novo, mas a de inaugurar para o Ocidente um caminho contemplativo que havia ficado no Oriente cristão, em particular na república monástica do monte Athos. No meu modo de ver, Foucauld recebeu a colossal tarefa de recuperar essa milenar tradição de sabedoria e de atualizá-la. Por isso mesmo, sua obra não fez mais que começar.
Ilustrarei esta tese com as sete palavras que, no meu entendimento, refletem mais ricamente a contribuição daquele a quem, hoje, nós chamamos irmão universal:
A vida deste homem foi totalmente rara. Foucauld não se parece com ninguém. Dizia de si, segundo as épocas, que queria ser monge ou eremita, mas o certo é que viajou muitíssimo, que passou por diferentes lugares, que foi um peregrino estrutural. Esta mudança de horizonte, geográfico, mas sobretudo existencial, esta metamorfose constante que o levou a ser hoje um explorador disfarçado de judeu e amanhã autor de um dicionário tuaregue, hoje soldado do Exército francês e amanhã jardineiro de algumas freiras em Nazaré, coloca às claras sua contínua busca. Foucauld, como Gandhi ou Simone Weil em outras ordens, fez de sua vida um autêntico e contínuo experimento.
Passou a vida examinando sua consciência, entrando nas motivações de seus atos, examinando cada detalhe minuciosamente, como aprendeu de Santo Inácio, projetando sonhos com os quais poderia dar corpo a uma intuição, olhando-se no espelho de Jesus Cristo, seu Bem-amado, estudando o mais conveniente, reprovando suas próprias faltas, agradecendo os dons recebidos... Foucauld, que foi um soldado em sua juventude, no fundo, não deixou de sê-lo em sua idade adulta. Não só era um apaixonado, mas um estrategista: alguém que planeja sua entrega, que reforça os flancos mais fracos, que esboça planos para dar fecundidade a seu ingovernável amor. Passou muitíssimos dias e horas na mais estrita solidão e no mais rigoroso silêncio. E nesse caldo de cultivo, aprendeu a escutar. E obedeceu a voz que escutava e, mais que isso, fez dessa escuta e dessa obediência um estilo de vida: sempre escutando e obedecendo, sempre após a aventura de ser a si próprio. Sempre entendendo que ele era a melhor palavra, talvez a única, que Deus lhe havia concedido.
Foucauld se converteu na África do Norte, admirando a extraordinária religiosidade dos muçulmanos. Entendeu o deserto primeiramente em forma de metáfora, daí que buscava ser monge, inicialmente, em Ardèche, e depois em Akbès e até na Terra Santa; mas depois voltou ao deserto do Saara, o de sua juventude, a seu amado Marrocos e a sua desejada Argélia. E era ali que o destino e a providência lhe esperavam. Talvez porque poucas localidades da terra, ao estar tão desoladas, podem evocar e remeter com tanta força ao mundo interior. Foucauld é um sinal permanente de como sem deserto e purificação não há caminho espiritual.
Em meio a esse deserto, Foucauld adora. Esta é uma palavra que hoje nos é estranha, mas adoração significa, pura e simplesmente, que o homem não se realiza pela via do ego, mas saindo do próprio micromundo e superando essa tendência tão nefasta como generalizada à apropriação e autoafirmação. Adoração quer dizer tão somente deixar de viver a partir do pequeno eu para dar passo rumo ao eu profundo, onde mora o hóspede divino. Saibam ou não, todos os que buscam o mistério por meio da meditação tem - temos - em Charles de Foucauld um mestre insigne. Amou muito porque silenciou muito. Falamos dele porque se esvaziou de si.
“Te quero, te adoro, quero oferecer tudo por ti, como me amas, como te amo, te dou graças, coloco-me em suas mãos, faz de mim o que desejares, te louvo, meu Bem-amado...”. Na história, poucos homens como Foucauld deixaram um testemunho escrito tão eloquente de seu apaixonado amor por Jesus de Nazaré. O nome de Jesus, como um incansável mantra, acompanhou Foucauld durante quase todos os minutos de sua vida. Era um louco de amor, um apaixonado por esse nome, alguém que deixou que o nome, e a pessoa a quem evoca, lhe possuíssem. Isto significa que a solidão na qual Foucauld viveu era acompanhada, por mais dura que em algumas ocasiões pudesse ser. Que seu silêncio era sonoro, por mais doloroso que muitas vezes pudesse ser. Só há uma palavra que explica a incrível aventura humana de Foucauld: Jesus.
O nome de Jesus foi se enraizando em sua consciência e em seu coração, de modo que ambas, unidas por fim no que poderíamos chamar de coração consciente, eram o lugar em que essa Presença morava. Foucauld foi um sentimental. Ainda que seu chamado tenha sido a oração contemplativa e silenciosa, nunca abandonou a oração afetiva, alimentada por palavras e imagens que lhe inflamavam. Praticou o que os hesicastas chamam a guarda do coração: sentir a vida, oculta e frágil, em cada palpitação; sentir a Vida com letras maiúsculas nessa nossa vida, tão limitada como intensa, tão humana e tão divina.
Ao término de sua vida, pouco antes de ser assassinado, Foucauld se encontra com as mãos felizmente vazias. Seria possível dizer que ao longo de sua existência colheu um fracasso após outro: foi o último de sua promoção no Exército, do qual, repetidas vezes, esteve a ponto de ser expulso por seus escândalos e indisciplina. Fracassou também como patriota e abortou sua vocação de explorador, desperdiçando uma brilhante carreira profissional. Monge fracassado da trapa de Heikh. Fracassado também em seu quimérico projeto de adquirir o monte das Bem-aventuranças para se instalar ali como eremita. Nenhuma só conversão após anos de apostolado. Nenhum só seguidor após ter redigido tantos esboços de uma regra para seus projetados eremitas. Ignorado pela administração civil e pela eclesiástica, nenhum escravo redimido, nenhum companheiro para sua missão...
Foucauld é um dos melhores ícones do fracasso, porque preferiu os últimos postos aos primeiros, a vida oculta à pública, a humilhação à exaltação. Por tudo isso, Foucauld é essa imagem na qual todos os fracassados da história podem se reconhecer. E por tudo isso vejo, muitas vezes, as pessoas do mundo caminhando em uma direção e Foucauld na contrária. Mas não é o único; há outros com ele, todos solitários, todos loucos. E o primeiro dessa fila é o próprio Jesus Cristo, o mais louco de todos.
Para Pablo d’Ors, a experiência dos padres do deserto, esses milhares de cristãos que nos primeiros séculos buscavam Deus na solidão e no silêncio, “é a corrente espiritual mais importante, não só do cristianismo, mas da história da humanidade”. Esta maneira de se relacionar com Deus – acrescenta – tem plena vigência na atualidade e a existência da associação Amigos do Deserto é prova disso. “Não foi uma ideia que eu tivesse, mas um presente que me foi dado. Em 2013, comecei a receber centenas de correspondências de pessoas que me pediam que lhes ensinasse a meditar. A maioria me conhecia por meu livro ‘Biografia do silêncio’, e muitos estavam afastados da Igreja. Com alguns amigos, decidimos organizar um retiro”. O interesse foi tal que, “antes que se realizasse, já havia outros dois previstos”. Desde então, umas 1.000 pessoas da Espanha e de outros países passaram por seu retiro de iniciação à meditação. Também organizam retiros para aprofundar na oração do coração mediante a espiritualidade de Charles de Foucauld, “nosso patrono”, e a teologia do ícone da Sagrada Família, de Rublev. Parte daqueles que participam destes retiros passam, depois, a fazer parte de algum dos 16 grupos que se reúnem semanal ou quinzenalmente. Além disso, a associação organiza oficinas e turmas de exercícios em um convento de carmelitas descalços em Las Batuecas.
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Charles de Foucauld: as sete palavras para hoje de um padre do deserto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU