01 Dezembro 2016
No dia 1º de dezembro de 1916, morria Charles de Foucauld, assassinado aos 58 anos de idade por um grupo armado da tribo dos Senussi, que tinha cercado o seu eremitério de Tamanrasset no Saara argelino. Se a notícia da sua morte não teve uma grande repercussão na Europa dilacerada pela Grande Guerra, o religioso passaria aos olhos da história como um dos mais importantes da sua geração, na virada de dois séculos.
A reportagem é de Solène Tadié, publicada no jornal L’Osservatore Romano, 30-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A primeira biografia escrita por René Bazin em 1923 consagrou a sua posteridade espiritual, tornando conhecida na França e, depois, no mundo a sua personalidade fora do comum e a sua obra prolífica, que suscitaram tantas vocações.
A um século da sua morte, uma nova obra dedicada à vida do religioso, beatificado por Bento XVI em 2005, intitulada “Charles de Foucauld 1858-1916” (Paris: Éditions Salvator, 2016, 720 páginas), com o prefácio do Pe. Bernard Ardura, postulador da sua causa de canonização, por sua vez, deverá marcar época.
O autor, Pierre Sourisseau, é um dos melhores conhecedores do padre eremita: arquivista da sua causa de beatificação, tem 35 anos ativos de trabalhos de pesquisa, de artigos e de conferências sobre ele. O livro, semelhante a uma suma, apresenta uma série de retratos de Foucauld, seguindo as etapas da sua vida e os seus diversos status, desde a sua infância em Estrasburgo e a sua juventude no Exército, até a sua vocação missionária entre os tuaregues do Saara. Ele também refaz detalhadamente os seus anos de busca contemplativa na Terra Santa, na trapa na França, depois na Síria, assim como a sua estada entre as irmãs clarissas em Nazaré, onde floresceria a sua vocação profunda, até sua ordenação em Viviers, no dia 9 de junho de 1901.
Através da volumosa correspondência de Foucauld, inúmeras citações das suas obras e documentos inéditos da sua causa de canonização, Sourisseau também lança luz sobre alguns elementos ainda em debate. Particularmente, ele atenua a imagem de libertino impenitente e de diletante atribuída ao jovem antes da sua conversão, especialmente como oficial.
Se o apelido de “literato folião”, aplicada a ele pelo seu amigo, o general Laperrine, certamente não é totalmente infundado, a sua correspondência da época já deixa entrever um jovem homem profundo, em busca de um ideal, que se revelaria como um trabalhador incansável quando um projeto está em seu coração. Os relatos da sua expedição aos países do Magrebe entre 1882 e 1886 – depois de se dispensar do Exército – confirmam isso: a ardente fé que ele observa entre os muçulmanos colocará novamente no centro das suas reflexões a questão da transcendência, que ele tinha liquidado durante a sua adolescência.
Ao contrário de uma ideia muito difundida, segundo a qual ele teria se convertido de repente ao entrar na igreja de Saint-Augustin em Paris, apenas no fim de um longo percurso, acima de tudo intelectual, é que Foucauld abraçaria novamente a fé. Duas pessoas tiveram um papel determinante no processo: Bossuet e a sua amada prima Marie de Bondy. Esta última tinha lhe presenteado, pela sua primeira comunhão, as Elévations sur les mystères, obra-prima do grande pregador que ele redescobriria em Paris no seu retorno do Marrocos, no verão de 1886.
Charles sentiu, na época, uma inclinação nova pela própria ideia de virtude, inclinação reforçada pelo clima de doçura instaurado pelas presenças femininas da sua tia e das suas primas, junto das quais ele vivia e nas quais encontrou “o exemplo de todas as virtudes unido à visão de grande inteligência e de convicções religiosas profundas”, como ele escreveria alguns anos depois.
Para satisfazer esse impulso da alma, no início, porém, ele se voltou aos moralistas da antiguidade, aqueles mesmos filósofos “pagãos” que, anos antes, tinham-no levado a se afastar da fé cristã, mas entre os quais agora encontrava “apenas vazio e desgosto”. Entretanto, para o seu grande espanto, o modelo de virtude professado por Bossuet o reaproximou das suas aspirações profundas, a ponto de lhe fazer pensar que “a fé de uma mente tão grande (...) talvez não fosse tão incompatível com o bom senso como (lhe) tinha parecido até então”.
A sua prima Maria, que o tinha feito “sentir o calor e a beleza” da obra de Bossuet, encarnava a forma mais perfeita daquela “beleza de ânimo” que deixava transparecer uma virtude “tão bela a ponto de lhe ter capturado irrevogavelmente o coração”.
Foi então que Charles decidiu fazer cursos de religião na cripta de Saint-Augustin, proferidos por Henri Huvelin, que mais tarde se tornaria o seu diretor espiritual. A partir daquele momento, Charles de Foucauld manteria uma relação epistolar constante com o padre, que ele considerava um pai e que exerceria uma influência considerável sobre ele.
A fidelidade de Foucauld à sua família e aos seus inúmeros amigos é atestada por uma densa correspondência. Mas foi à sua prima Maria – aquela quem despertara nele o gosto pelo Evangelho e que ele chamava de “Mãe” – que ele reservou o seu maior afeto. Um afeto acompanhado por uma profunda admiração recíproca, revelada, no decorrer da biografia, por muitas passagens das suas trocas epistolares, quase cotidianas.
Maria era para Charles uma figura de santidade, que ele consultava todas as vezes em que nasceu uma dúvida nele. Também foi ela que lhe fez descobrir a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que se tornaria o seu emblema. Aquele coração encimado por uma cruz que ele trazia sobre a sua veste litúrgica e que ele mostrava no cabeçalho de todas as suas cartas também era o símbolo daquilo que Maria tinha despertado novamente nele: “Você acendeu o fogo do Amor divino no meu coração, onde ele tinha se apagado, e me salvou quando eu estava perdido”, ele lhe escreveu no dia 2 de julho de 1901, poucos dias depois da sua ordenação e da sua primeira missa na festa do Santíssimo Sacramento. Foi naquele momento que ele sentiu o chamado a uma vida missionária no Saara. Irmão Charles de Jesus, à época, tinha 43 anos.
“A bola foi lançada: quem vai pará-la?”, escreveu um dia Huvelin a respeito do seu filho espiritual. Uma fórmula muito apropriada que ecoa o lema da família de Foucauld: “Nunca para trás”, e que se tornaria ainda mais pertinente na última parte da sua vida, marcada por um segundo chamado para a África do Norte. O chamado assumiu, então, um caráter diferente, o de uma “vocação especial”. Huvelin, contrário no início à ideia de uma partida de Charles para regiões tão distantes, acabou compreendendo a sua dimensão espiritual. “Algo o impulsiona, algo irresistível, creio eu”, escreveu ele a Marie de Bondy.
Charles passou inicialmente três anos em Beni Abbès, na Argélia, durante os quais se distinguiu pela sua luta ativa contra a escravidão. Mas, ao não conseguir trazer companheiros para a fraternidade que havia erguido, decidiu, a convite do comandante Laperrine, se aproximar dos tuaregues, povo que vivia no coração do deserto. Em Tamanrasset, na região do Hoggar, aquele que os tuaregues chamam de “marabuto cristão” não poupou esforços: a partir do Natal de 1905, ele começou a traduzir os Evangelhos em língua tuaregue e depois elaborou – com a ajuda de um amigo intérprete – um vocabulário tuaregue-francês. Também escreveu textos em prosa sobre os costumes ancestrais daquele povo, fundamentado nos testemunhos dos anciãos.
Esses trabalhos de pesquisa, de valor científico sem precedentes, estavam em sintonia com o apostolado do irmão Charles de Jesus: a difusão da beleza do cristianismo com as suas obras e a sua bondade. Com efeito, a sua rápida conscientização dos limites da evangelização tradicionais entre o povo tuaregue havia inspirado nele esta intuição, expressada em uma carta ao Mons. Guerin: “Não devemos pregar Jesus, mas preparar a Sua pregação”. Justamente nesse apostolado original, nessa eclesiologia antropológica, Mons. Maurice Bouvier, postulador da sua causa de beatificação e canonização entre 1990 e 2011, percebeu algumas intuições antecipatórias do espírito do Concílio Vaticano II.
“É no momento em que Jacó está a caminho, pobre, sozinho, em que se estende sobre a terra nua, no deserto... é no momento em que ele se encontra nessa dolorosa situação de viandante isolado, no meio de um longo caminho em um país estrangeiro e selvagem, sem alojamento, é no momento em que ele se encontra nessa triste condição que Deus o enche de favores incomparáveis.” Essa meditação bíblica (inspirada em Gênesis 28) de Charles de Foucauld, escrita durante a sua estada em Roma, em dezembro de 1896, resume de modo particularmente eloquente o seu percurso espiritual: o de um homem insaciável no seu seguimento de Jesus, em constante busca na sua vocação.
Uma meditação que assume traços eminentemente proféticos no momento em que Charles, tendo chegado a uma encruzilhada da sua existência, está prestes a empreender caminho que se anuncia tão abissal quanto o de Jacó.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O marabuto Charles de Foucauld - Instituto Humanitas Unisinos - IHU