01 Dezembro 2016
Neste dia 1º de dezembro, completa-se o primeiro centenário da morte do beato Charles de Foucauld, figura fundamental da espiritualidade cristã recente, um homem que – disse o Papa Francisco –, “talvez como poucos, intuiu o alcance da espiritualidade que emana de Nazaré”; um homem cujo carisma – observou o teólogo Pierangelo Sequeri – “foi dado e destinado antecipadamente a este tempo da Igreja”.
A reportagem é de Cristina Ugocioni e publicada por Vatican Insider, 29-11-2016. A tradução é de André Langer.
Charles de Foucauld nasceu em Estrasburgo, França, no dia 15 de setembro de 1858. Durante a adolescência, sofreu a influência do ceticismo religioso e do positivismo científico que caracterizavam sua época; ele escreveu, referindo-se a essa época: “desde os 15 ou 16 anos, toda a fé tinha desaparecido dentro de mim”. Entrou na escola militar e virou oficial. Foi enviado com o seu regimento à Argélia. Em 1882, abandonou o exército e empreendeu uma viagem de exploração que o levou primeiro ao Marrocos e depois ao deserto argelino e tunisiano.
Voltou ao seio familiar parisiense, em 1886, com a intenção de preparar um texto sobre suas descobertas: foi um tempo decisivo para a sua conversão. Escreveu: “Comecei a ir à igreja, sem ser crente, passava longas horas repetindo uma estranha oração: ‘Meu Deus, se existes, faz que te conheça!’” Sua conversão, acompanhada pelo abade Henry Huvelin, aconteceu em outubro desse mesmo ano: “Assim que acreditei que havia um Deus, compreendi que não podia mais viver sem Ele”.
Fez imediatamente uma longa peregrinação à Terra Santa, durante a qual escreveu: “Desejo levar a vida que entrevi e percebi ao caminhar pelas ruas de Nazaré, onde Nosso Senhor, pobre artesão perdido na humildade e na obscuridade, pisou”. Dirigindo-se a Jesus, escreveu: “Quão fértil em exemplo e lições é esta vida de Nazaré! Obrigado! Que bom foste ao nos ter dado esta instrução durante 30 anos!”
Ao retornar à sua pátria, entrou na Trapa de Nossa Senhora das Neves e depois foi enviado à Trapa de Akbés, na Síria. Mas se deu conta de que na Trapa não era possível “levar a vida de pobreza, de abjeção, de desapego efetivo, de humildade, diria inclusive de recolhimento de Nosso Senhor em Nazaré”. Um episódio significativo que viveu neste tempo: “Uma semana me mandaram rezar ao lado de um pobre operário do lugar, católico, que morreu em uma cabana do lado: que diferença entre esta cassa e o nosso convento! Eu suspiro por Nazaré”.
Ao dar-se conta de que “nenhuma congregação da Igreja dava a possibilidade de levar hoje e com Ele esta vida que Ele levou desta maneira”, perguntava-se se “não era o momento de buscar algumas almas com as quais [...] pudesse formar um início de pequena Congregação deste tipo: o objetivo seria levar com a maior fidelidade possível a mesma vida de Nosso Senhor, vivendo exclusivamente do trabalho das mãos, sem aceitar nenhuma doação espontânea nem oblação, e seguindo ao pé da letra todos os seus conselhos, sem possuir nada, privando-nos o máximo possível, em primeiro lugar, para nos conformarmos a Nosso Senhor e, depois, para dar-lhe o máximo possível na pessoa dos pobres. Acrescentar a este trabalho muitas orações”.
Surgiu algo conscientemente inédito na geografia religiosa, observou Sequeri no livro Charles de Foucauld. O Evangelho vem de Nazaré (Vita e Pensiero): “A novidade da intuição se dá, em primeiro lugar, pela clara referência cristológica da imitação/sequela de Nosso Senhor Jesus Cristo: ‘a mesma vida de Nosso Senhor’ Jesus, isto é, ‘a existência humilde e escondida de Deus, operário de Nazaré”. Com outras palavras: “Nazaré não é o ‘prólogo’ da vida pública, o simples momento ‘preparatório’ da missão, nem a forma de uma ‘pré-evangelização’ que oferece um genérico compartilhar e um testemunho anônimo [...] Nazaré é a vida de Jesus, não simplesmente seu prefácio. É a missão redentora em ato, não sua mera condição histórica. Nazaré é o trabalho, a proximidade doméstica do Filho que se alimenta durante longos anos daquilo que importa ao ‘abba-Deus’ (‘Vocês não sabiam que devo ocupar-me das coisas do meu Pai?’, Lc 2, 49). De onde poderia partir uma nova evangelização sem deter-se todo o tempo necessário no fundamento em que Deus a colocou para o próprio Filho?
Em 1897, o irmão Charles deixa a Trapa e muda-se para Nazaré, onde viveu durante três anos, junto ao mosteiro das clarissas. Seus dias eram marcados pelo trabalho, pela adoração silenciosa da Eucaristia e pela leitura dos Evangelhos. “Foucauld deseja viver imitando Jesus, ‘operário de Nazaré’: e para isso decide encomendar-se aos Evangelhos, que lê diariamente e sobre os quais medita por escrito”, conta Antonella Fraccaro, religiosa das Discípulas do Evangelho (Instituto Religioso que faz parte da Associação de Famílias Espirituais Charles de Foucauld) e autora do livro Charles de Foucauld e os Evangelhos. “Suas meditações – vários milhares de páginas – têm um corte intimista e auto-referencial; trazem à tona, sobretudo, o intenso e afetuoso vínculo que Foucauld vive com o Senhor. No centro das meditações não está o autor, mas a pessoa de Jesus e seu estilo, que deve ser assimilado dia a dia com Sua graça. Os motivos que inspiram a leitura dos Evangelhos expressam-se em um breve texto, muito significativo, escrito em um pequeno papel utilizado como marcador. O irmão Charles escreveu o seguinte, dirigindo-se a Jesus: ‘Leio: 1º) para dar-te uma prova de amor, para imitar-te, para obedecer-te; 2º) para aprender a amar-te melhor, para aprender a imitar-te melhor, para aprender a obedecer-te melhor; 3º para poder fazer com que os outros te amem, para poder fazer que os outros te imitem, para poder fazer que os outros de obedeçam’”.
Durante o tempo que passou em Nazaré, amadureceu em seu interior a vocação ao sacerdócio: foi ordenado em 1901 na França, e no ano seguinte estabeleceu-se em Beni Abbès, na parte argelina do Saara, “entre as ovelhas mais perdidas e abandonadas”. Nesses dias escreveu: “Das 4h30 da manhã às 20h30 da noite, não deixo de falar, de ver pessoas: escravos, pobres, doentes, soldados, viajantes, curiosos [...] Quero que todos os habitantes da terra se acostumem a me considerar um irmão, o irmão universal”. Em 1905, decidiu dirigir-se ao sul, e viver entre os Tuareg, para Tamanrasset, onde não há “nem guarnições, nem telégrafo, nem europeus”.
A Nazaré que Charles queria não estava na Trapa, mas no deserto. Sequeri comenta a respeito: “A questão não é tanto a dureza da ascese, mas a imitação ‘real’ de Nazaré: que precisa encontrar as condições do próprio rigor na normalidade do contexto em que as condições já estão dadas e não são artificialmente buscadas ou reconstruídas religiosamente. Nessas condições, efetivamente, o ‘pequeno irmão universal’ se estabelece como seu ‘bem amado irmão Jesus’, porque os homens e as mulheres já se estabeleceram: porque a vida cotidiana é o horizonte do seu olhar sobre o mundo”. O rigor desta ‘inabitação’ inclui “um princípio de simplificação e um critério de afinidade que liberam a singular beleza doméstica do estabelecimento evangélico”.
Charles foi prodigamente generoso com os seus Tuareg. “Quis vencer as desconfianças, conquistar sua confiança, entrar em fraternidade, tornar-se um familiar; quis fazer que conhecessem a bondade de Jesus”, disse Fraccaro. “Seu tempo estava dividido entre a oração, as relações com os indígenas, que ajudava e apoiava de diversas maneiras, e os estudos da língua tuareg. Chegou, inclusive, a redigir um dicionário tuareg-francês. Nas cartas aos seus amigos distantes pedia-lhes que rezassem por estas almas abandonadas e também por ele: ‘Rezem para que eu faça o que quer de mim para eles, porque eu sou o único, infelizmente, que me ocupo deles por Sua parte e para Ele”.
Os gestos de atenção, a tenaz dedicação aos homens e às mulheres do deserto, convivem com uma total relação/conversa com o Senhor presente na Eucaristia. Foucauld O levou para aqueles que não o conheciam, porque também eles são “Seus”. É uma presença, uma bênção que todos percebem, todos sentem a oração e as palavras que a habitam, todos intuem o vínculo especial ao qual dá vida. A presença eucarística do Senhor condensa em si a palavra e o gesto cristãos menos “anônimos” que possam existir (Sequeri).
Charles de Foucauld morreu no dia 1º de dezembro de 1916 em Tamanrasset. Foi atingido por uma bala durante um saque ao seu eremitério provocado pelas tropas rebeldes do Saara. Ele, que desde 1893 até o final da sua vida se aplicou à redação de “Regras” para essas agregações que tanto desejou, morreu sozinho. Nas décadas seguintes, nasceram muitas famílias de religiosos, religiosas, sacerdotes e leigos que se inspiram nele: atualmente, são 20 e estão presentes em todo o mundo. Reunidas na Associação de Famílias Espirituais Charles de Foucauld, são cerca de 13 mil pessoas. “Em sua diversidade – conclui Fraccaro –, estas famílias têm características comuns: o estabelecimento nos contextos da existência comum, a vida em pequenas comunidades unidas por um espírito fraterno, a meditação da Palavra de Deus, a dedicação às almas que mais sofrem e são mais abandonadas. O grão de trigo, morrendo, deu fruto, justamente como Foucauld – tão vinculado a este versículo do Evangelho de Jo (12, 24) – esperava que acontecesse”.
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Charles de Foucauld e o “mistério de Nazaré” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU