01 Dezembro 2016
Em junho de 1953, há poucos meses à frente da Secretaria de Estado do Vaticano como pró-secretário de Estado para assuntos ordinários, Giovanni Battista Montini – que, exatamente dez anos depois, se tornaria papa, assumindo o nome de Paulo VI – escreveu o prefácio de um livro que permaneceu inédito e foi publicado quase meio século mais tarde, em 1998.
A reportagem é do jornal L’Osservatore Romano, 30-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O pedido tinha chegado ao alto prelado por parte de René Voillaume, fundador e prior geral dos Irmãozinhos de Jesus, inspirados na figura de Charles de Foucauld. O religioso francês (1905-2003) tinha pedido que Montini escrevesse o prefácio à segunda edição da tradução italiana do Au coeur des massas. La vie religieuse des Petits Frères du père de Foucauld [No coração das massas. A vida religiosa dos Irmãozinhos do Padre De Foucauld].
O livro foi publicado na França em 1950 e, em segunda edição, dois anos depois, e tinha sido recentemente lançado na Itália com o título Come loro. La vita religiosa dei Piccoli fratelli di Padre de Foucauld [Como eles. A vida religiosa dos Irmãozinhos do Padre De Foucauld] (Roma, 1952).
Foi perto do fim da guerra que Montini tinha conhecido Voillaume e, com ele, Magdeleine Hutin, fundadora das Irmãzinhas de Jesus. Esse foi o início de uma relação e de uma amizade que continuaram mesmo depois da eleição ao papado e do qual é um primeiro sinal este prefácio, que publicamos na íntegra.
Em 1968, o fundador dos Irmãozinhos pregou os Exercícios Espirituais no Vaticano e produziu a partir daí um livro publicado na França no ano seguinte e imediatamente traduzido em italiano (Con Gesù nel deserto [Com Jesus no deserto], Bréscia, 1969), com um prefácio de Virgilio Levi, naqueles anos secretário de redação do L’Osservatore Romano.
Para compreender estas páginas será preciso algum conhecimento da singular figura de asceta e de místico no qual elas se inspiram, de Charles de Foucauld, ou, como ele já é chamado pelos seus seguidores, Charles de Jesus. Ele tornou-se eremita missionário depois de ter sido oficial do Exército colonial francês e depois de ter se convertido pelo fervor de vida cristã, amestrado e fascinado pelo misterioso encanto do deserto africano; depois, peregrino na Terra Santa, fez-se trapista, vagante da Armênia a Roma, deixou a ordem para retornar à Palestina e, de lá, passar novamente para a França, onde, ordenado sacerdote, voltou para a África, já a sua pátria espiritual, e lá consumou anos de vida paupérrima, assistindo, nômade ele mesmo, as tribos muçulmanas; depois, estabeleceu-se no oásis de Tamanrasset, no Hoggar, para terminar a sua desejante corrida terrena assassinado, na porta do seu eremitério, por aqueles mesmos aos quais ele havia levado, pleno e benéfico, o humilde dom da sua amizade: isso ocorreu no dia 1º de dezembro de 1916.
Uma vida tão variada e atormentada, tão vagante e, ao mesmo tempo, tranquila, solitária e ávida de encontros espirituais, agitada por múltiplas experiências e aventuras estranhas, e tornada por elas ainda mais simples e recolhida, tão gradualmente despojada de tudo e, ao mesmo tempo, progressivamente rica em bondade e em amor, desconcertante e atraente, desponta como uma tênue luz entre as milhares de luzes fátuas do nosso século, e, pouco a pouco, enquanto ela se afasta no tempo, torna-se um farol e marca um caminho.
Esse caminho é agora percorrido pelo padre Renato Voillaume, prior geral dos Irmãozinhos de Jesus, que exorta com estes escritos as suas humildes comunidades, as “fraternidade”, já que o espírito de Charles de Jesus derivam de uma recente origem. Nasce, assim, um volume de espiritualidade que vem para enriquecer a literatura religiosa com uma notabilíssima contribuição.
Mais do que um tratado, mais do que um livro, esta coleção de escritos ocasionais é um documento de vida religiosa que surgiu do exemplo corajoso e maravilhoso do asceta do Saara, e prova a perene capacidade da Igreja Católica de gerar autênticos seguidores de Cristo, criando estupor e alegria pela singularidade do fenômeno religioso que ele descreve, suscitando inquietação e fascínio pela profundidade e pela simplicidade espiritual a que ele se refere, e oferecendo um código de ascese evangélica, impulsionada, por um lado, por expressões primitivas e genuínas da tradição monástica, inserida, por outro, nas mais elementares condições de existência e de atividade de humildes classes sociais.
A obra trata de uma quantidade de questões relativas à perfeição religiosa, às virtudes que lhe são próprias, à pobreza e à caridade especialmente, à santificação alimentada pela celebração das festas litúrgicas, aos grandes temas da ascética e da mística, à análise da alma humana sedenta de união com Deus e guiada pelas lições evangélicas ao serviço e ao amor ao próximo, à abnegação de si, à visão do mundo e da vida no grande e lúcido quadro da sabedoria do Mestre divino: o trabalho e a oração, o silêncio e a palavra, a solidão e a socialidade, o escondimento e a amizade, o valor do tempo e o da eternidade, a liberdade de espírito e a obediência fácil e espontânea, o conhecimento das misérias humanas e a estima do homem, a tranquilidade e a coragem, a arte de sofrer e, ao mesmo tempo, de gozar, a independência do mundo e a ansiedade de salvá-lo, o desapego das criaturas e a capacidade de saborear a sua linguagem e a sua beleza, e tantos outros temas, diversos e levados a uma harmonia interior, são repassados nestas páginas e demonstram aquela ampla informação doutrinal e aquela experiência pessoal que dão crédito e interesse incomuns a um livro.
Sobre tantas coisas poderão os doutos discutir e os especialistas comentar; não queremos aqui fazer um julgamento.
Bastam, entretanto, para recomendar o volume a uma atenção dos leitores italianos, algumas circunstâncias que podem lhes abrir o caminho para uma favorável acolhida. A pobreza, acima de tudo da maior parte do clero italiano: ela precisa de providências, sobre as quais agora aqui não é dado discorrer; mas ela é, em si mesma, tal veste, pois outra melhor não poderia ser-lhe reconhecida para qualificar como admirável o seu cotidiano desinteresse e para dispô-lo ao exercício do seu ministério na forma mais propícia para torná-lo convincente e para lhe dar dignidade e mérito de autenticidade evangélica. Portanto, assim considerada, ela pode fazer da mais humilde e despojada vida eclesiástica um exercício de santidade, que facilmente encontrará nas páginas do livro reconfortantes analogias, interpretações apropriadas, exemplos prementes.
E o benefício de tal exortação à santidade atraída pela pobreza será ainda maior se uma intenção, igualmente moderna assim como urgente, de evangelização do povo seja acrescentada àquela do desapego dos bens materiais; isto é, a intenção que abre os olhos ao estado de abandono espiritual de enormes camadas de populações tanto urbanas quanto rurais, e que leva aos subúrbios religiosamente mais desolados, aos centros de trabalho e de tráfego mais profanos, aos campos mais remotos do campanário o apóstolo da sociedade presente, não mais centrada no templo e em Deus, mas na utilização do mundo e no homem.
Também por causa dessa aventurosa penetração pastoral, que faz do padre e do leigo desejosos da salvação do próximo autênticos missionários, a escolha das Fraternidades de Charles de Foucauld oferece magníficas lições de coragem, de sabedoria, de caridade. E mostra, em exemplos que dão o paradoxal aspecto do heroísmo habitual, como a evangelização da doutrina e da graça deve ser prévia à, ou concomitante com, a evangelização da vida daqueles que pregam e personificam Cristo.
Diante do leitor estupefato, passam visões distantes, muito frequentemente confinadas ao campo da reminiscência e da fantasia: são os apóstolos mandados por Jesus ao seu primeiro experimento anunciador do Reino de Deus, “sine pera, sine calceamentis”; são as estranhas figuras dos primeiros eremitas, exilados voluntários no deserto, precursores do futuro mosteiro e do futuro vilarejo cristão; são os freis medievais que vão adornados com a pobreza e a alegria para restaurar no mundo a esperança da era cristã; são os peregrinos corajosos que atravessam continentes e oceanos para levar a boa notícia às costas mais distantes; e hoje são, finalmente, os irmãozinhos de Jesus, que vão vagando às margens das obras já organizadas, das cidades já construídas, da civilização já estabelecida, para serem silenciosos e modestos pioneiros do amor cristão.
Esse instinto da mais humilde evangelização, hoje, tornou-se ideal e dá aos seguidores de Charles de Jesus o seu talento religioso: saem dos hábitos comuns para conservar a tradição evangélica; renunciam à veste digna para assumir a da fadiga miserável e dura; deixam as comunidades bem organizadas em colégios impessoais para criar pequenos grupos de amigos que trabalham, rezam e vivem juntos; repudiam qualquer distinção exterior para se assimilarem às humildes camadas sociais, onde escolheram viver; fazem da renúncia, do abaixamento, da paciência um instrumento de pregação silenciosa, uma possibilidade de amizade e de apostolado; mas conservam, sobretudo no íntimo do coração e no refúgio das paupérrimas habitações, uma assídua, uma ardente piedade de contemplativos e de adoradores, e obtêm daí a defesa da vulgaridade circundante, a capacidade de difundir aí o inefável perfume de Cristo.
Quantos sacerdotes, quantos religiosos e religiosas, quantos bons fiéis, em um país tão pobre em riquezas econômicas como a Itália e tão rico em patrimônio espiritual, transcorrem a sua vida e, por generosa eleição e por força das coisas, em condições quase análogas às que a ousada vocação dos Irmãozinhos prefere para o desenvolvimento da sua espiritualidade; quantas almas, por isso, que anseiam o seguimento do Mestre vão encontrar nas páginas do padre Voillaume a própria lição de santidade.
E, para que assim seja, enquanto a negação de Deus, o materialismo revolucionário, o anticlericalismo político se armam da miséria, do sofrimento, da abjeção social, estas páginas são oferecidas ao público católico italiano como escola, como exemplo de uma bem diferente transfiguração cristão da fadiga humana, em sinal de coragem e de esperança.
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Charles de Foucauld: no coração das massas. Artigo de Giovanni Battista Montini, futuro Papa Paulo VI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU