"Francisco propõe à Igreja e ao mundo uma série de iniciativas capazes de dar um novo rumo à humanidade. Se tais iniciativas serão assumidas é difícil prever. Mas que elas incomodarão as consciências, questionarão atitudes hipócritas e desmascararão a indiferença diante da gritante necessidade de irmãos e irmãs que sofrem, não resta a menor dúvida. O Papa tem consciência de que no centro de qualquer renovação devem estar a força do Evangelho e a abertura ao Espírito. A sua voz profética entra nesse cenário apenas como mais uma oportunidade que nos é oferecida para, no seguimento ao Filho, deixarmo-nos provocar por Deus e pelos apelos que provêm da realidade concreta, onde atua o seu Espírito", escreve Ronaldo Zacharias, Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos (Ius Gentium Conimbrigae - Universidade de Coimbra), Doutor em Teologia Moral (Weston Jesuit School of Theology – Cambridge, USA) e Secretário da Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM).
Muito aguardada como necessária palavra profética para toda a sociedade e preciosa contribuição para a Doutrina Social da Igreja, a encíclica Fratelli tutti parece não ter sido recebida pela sociedade como um todo e pelas Igrejas particulares com a mesma expectativa com a qual foi esperada. Sendo um convite a amar para além das fronteiras, a encíclica veio à luz num momento de muita controvérsia provocada pelo documentário Francesco – dirigido por Evgeny Afineevsky. O documentário – reduzido pela imprensa a uma afirmação de Francisco sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo – fez emergir um grande mal-estar na Igreja, animado, sobretudo, pelos opositores de Francisco. O Papa não podia ter ousado ampliar o convite a amar para além das fronteiras para o campo da sexualidade e, por isso, devia ser ignorado. Tal sentimento de rejeição atingiu a nova encíclica. As verdades ditas por Francisco na Fratelli tutti – muitas delas extremamente incômodas para aqueles que não querem “ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (...) para construir pontes, abater muros, semear reconciliação” (276) –, parecem não ter tido a força do impacto que poderiam ter e, por isso mesmo, precisam ser resgatadas. O artigo que segue quer ajudar as pessoas de boa vontade e os membros da comunidade eclesial a não desprezarem a lógica que rege todo o documento de Francisco, mesmo por parte daqueles que tenham dificuldade em apreciar suas palavras: a lógica que inspira a dizer até mesmo as verdades mais duras para substituir por pontes os lugares e os discursos “protegidos” por muros instransponíveis.
Para compreendermos a mensagem de Francisco à Igreja e ao mundo precisamos ter presente o horizonte no qual ele se situa quando escreve a encíclica Fratelli Tutti. O horizonte é de um mundo altamente instável, aterrorizado pela possibilidade de uma terceira guerra mundial, sem dar-se conta de que ela já está acontecendo “por pedaços” (25) e fazendo, portanto, suas vítimas e seus estragos. O horizonte é de medo: medo de tocar com as mãos e ter de lidar com “o abismo do mal” que pode ser encontrado “no coração da guerra” (261); medo do outro e do que ele possa fazer para proteger os seus bens e dar fim a quem os ameaça; medo de ver-se sozinho na luta contra a fome, a sede, a destruição da casa comum, a violência, a barbárie e na luta por terra, saúde, moradia, emprego; medo de ficar só e de morrer sozinho.
Durante a escrita de Fratelli tutti, a tragédia mundial provocada pelo coronavírus e pela covid-19 desnudou, sem nenhum pudor, a gigantesca disparidade econômica entre pobres e ricos, a indiferença globalizada com os mais vulneráveis, a exaltação doentia do nacionalismo, o negacionismo científico, a sujeição do humano à economia e às leis do mercado, as várias modalidades de manipulação, deformação e ocultamento da verdade nas esferas pública e privada, o uso político do destino das pessoas e da humanidade. E o horizonte de incertezas, medos, angústias, ansiedades ampliou-se. Nesse contexto nada animador, porém, vimos aflorar, também sem nenhum pudor, gestos em defesa da dignidade humana e da promoção dos direitos humanos; atitudes de solidariedade e fraternidade; iniciativas criativas para servir o outro e para sobreviver; lições de partilha, abnegação, doação; histórias concretas de amor que foram capazes de vencer a morte. Cresceu em toda a humanidade a convicção de que estamos todos no mesmo barco e que o destino de um influencia o destino de todos. Um vírus foi o suficiente para pôr em cheque o sentimento de onipotência de pessoas, instituições e nações que acreditavam que nunca seriam derrubadas dos seus tronos.
É situado nesse horizonte que Francisco se dirige à Igreja e ao mundo. Animado pela fé, ele acredita que, juntos, podemos edificar um projeto que não apenas abra à esperança de um mundo melhor, mas que “seja” esperança para aqueles que estão a ponto de sucumbir ou resignar diante do cenário atual. Sem se deixar intimidar, Francisco propõe uma renovada fraternidade e amizade social entre os povos e as pessoas. Ele sabe que, no contexto em que vivemos, não basta sermos solidários; é preciso que sejamos fraternos. É a fraternidade que nos torna reciprocamente uns responsáveis pelos outros. Se a solidariedade pode reduzir-se a uma atitude emergencial e não provocar qualquer mudança interna nas pessoas, a fraternidade resulta do fato de as pessoas não poderem mais fundar suas vidas sobre as coisas, mas sobre as relações que mantêm umas com as outras. A fraternidade não só provoca mudança interna nas pessoas, mas resulta de tal mudança, pois o sentimento de irmandade resulta carregado de amor e, assim, caracteriza-se por um modo de pôr-se diante do outro que gere relações de reciprocidade.
Francisco propõe à Igreja e ao mundo uma série de iniciativas capazes de dar um novo rumo à humanidade. Se tais iniciativas serão assumidas é difícil prever. Mas que elas incomodarão as consciências, questionarão atitudes hipócritas e desmascararão a indiferença diante da gritante necessidade de irmãos e irmãs que sofrem, não resta a menor dúvida. O Papa tem consciência de que no centro de qualquer renovação devem estar a força do Evangelho e a abertura ao Espírito. A sua voz profética entra nesse cenário apenas como mais uma oportunidade que nos é oferecida para, no seguimento ao Filho, deixarmo-nos provocar por Deus e pelos apelos que provêm da realidade concreta, onde atua o seu Espírito.
O Papa Francisco tem sido acusado de ter "abandonado o terreno seguro da doutrina social", de ter "renunciado à identidade cristã e católica". Chegaram até a afirmar que Marx, Lenin e Mao são mais moderados do que Francisco; que Francisco visa acabar com Deus, com a Igreja e com a cristandade como os conhecemos até agora. Pois bem, parecem-me afirmações próprias de uma espécie de arrogância perversa, resultantes de perspectivas ideológicas que, inescrupulosamente, semeiam a divisão e o ódio. Revestidas com o manto de pretensa fidelidade à tradição, tais afirmações são próprias de quem considera ter o domínio do Espírito e se lamenta quando não consegue controlar como, quando e onde Ele sopra (Jo 3,8). Sabemos que Fratelli tutti não caiu do céu nem resulta do capricho de um Papa latino-americano. Ela parte e aprofunda o Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, assinado por Francisco em Abu Dhabi, com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, de Al-Azhar (04.02.2019). Tanto o Papa quanto o Grande Imã estão convencidos de que da fraternidade religiosa pode surgir uma fraternidade universal, um movimento de paz, capaz de transcender as nações. Tal movimento, para ambos, deve ser acompanhado de uma “revolução cultural”, de uma “nova cultura”, da “cultura do encontro”, único caminho capaz de superar as dialéticas que jogam uns contra os outros. E não podemos ignorar que Francisco fez questão de mencionar ter acolhido “numerosas cartas e documentos com reflexões” que recebeu “de tantas pessoas e grupos de todo o mundo” ao longo desses anos (5). Ele já deu inúmeros testemunhos sobre o método que prefere seguir quando se trata de discernir os rumos da Igreja.
Francisco é ainda acusado de “ser comunista e querer implantar no mundo um projeto comunista”. Antes mesmo da publicação da Fratelli tutti, ele era chamado de comunista. E isso se deve ao fato de ele procurar conformar-se profundamente aos sentimentos e às ações de Jesus Cristo. É uma grande ironia: o Espírito suscitou na Igreja um Papa que personifica o Evangelho e isso causa estranheza e revolta, como se ele não devesse ser assim. Quanto à Fratelli tutti, acusam-na de ser um hino ao comunismo ao abolir o direito à propriedade privada. Não tem sentido tal acusação! Os arautos da fidelidade à tradição não se dão conta de que Francisco nada mais fez do que resgatar a tradição da Igreja nesse campo. Para Francisco, o direito à propriedade privada não é absoluto ou intocável, mas tem uma função social que lhe é inerente (120). Trata-se, como ele mesmo afirma, de um “direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados” (120) que não raras vezes se sobrepõe ao direito primário – mais importante e antecedente – da destinação universal dos bens, fazendo com que este fique sem relevância prática. Para Francisco, “ninguém pode ser excluído” (121). Chamá-lo “comunista” porque ele afirma a subordinação de toda propriedade privada ao destino universal dos bens da terra e porque ele estende esse princípio aos países, aos seus territórios e aos seus recursos, é muito conveniente – embora desonesto – para quem insiste em construir muros, fechar fronteiras e negar acolhida aos imigrantes, como se o fato de ter nascido aqui ou ali não fosse um mero acaso.
No primeiro capítulo da encíclica – As sombras de um mundo fechado –, Francisco apresenta um quadro sombrio formado por tendências que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal. Todas são tão realistas e preocupantes que se torna difícil não considerá-las em unidade. No entanto, gostaria de destacar duas delas: o ressurgimento de nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos e o descarte mundial de parte da humanidade como expressão atual e dissimulada de racismo. Justifico: a meu ver, não se trata apenas de tendências, pois estamos testemunhando tais realidades, com todos os conflitos e medos que fazem aflorar. Já não conseguimos mais dialogar em vista de um projeto comum para o desenvolvimento de toda a humanidade; já não nos incomodamos diante da banalização do mal, a ponto de nos tornarmos cúmplices dele.
Com a Fratelli tutti – uma encíclica sobre o amor fraterno entendido “na sua dimensão universal, na sua abertura a todos” (6) – Francisco tenta responder às “várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros” (6). Francisco propõe a todas as pessoas de boa vontade uma forma de amar que transcenda qualquer tipo de barreira e edifique o que ele chama de “fraternidade aberta” (1), isto é, uma fraternidade que acolhe e ama todos, independentemente de estar aqui ou ali ou ter vindo de lá ou acolá. Surpreendido pela pandemia que assolou o mundo, Francisco foi capaz de captar as angústias do momento atual e fazer com que o anseio mundial de fraternidade não apenas fundamentasse, mas perpassasse toda a sua encíclica, como fio condutor e unificador de “um novo sonho de fraternidade e amizade social” (6). Não é por acaso que Francisco escolheu a parábola do Bom Samaritano para ilustrar o que entende por amor fraterno: o amor, quando autêntico, não se pergunta de onde o outro vem (62), mas reconhece que pode assumir como própria a fragilidade do outro, fazendo-se próximo, decidindo colocar-se no caminho do outro. E é justamente no capítulo segundo – Um estranho no caminho – que Francisco nos brinda com preciosas pérolas: “viver indiferentes à dor não é uma opção possível” para o cristão (68); a sociedade que “procura construir-se de costas para o sofrimento” está enferma (65), mesmo que disso não tenha consciência.
Porque criado com amor e para o amor, o ser humano traz em si uma “lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acréscimo de ser” (88). Francisco sabe que o amor precisa de rostos concretos e, portanto, não é autorreferencial; que ninguém pode realizar-se, desenvolver-se, encontrar sua plenitude, reconhecer sua própria verdade, sem fazer-se dom de si mesmo aos outros (87); que amar significa centrar a atenção no outro e, portanto, procurar o seu bem gratuitamente (93). Os ensinamentos de Jesus – cujo cerne é a unidade entre as dimensões vertical e horizontal do amor – deram vida e sustentaram as primeiras comunidades cristãs e sustentam a Igreja até hoje. O amor – como abertura, doação e serviço ao outro – foi e é o rosto dessas comunidades, assim como foi e é o caminho percorrido por elas. Para Francisco, “só cultivando essa forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos” (94). A proposta de Francisco não apenas serve de plataforma comum para a construção de uma nova sociedade, mas também é condição para que ela seja possível. Ao intitular o terceiro capítulo como Pensar e gerar um mundo aberto, Francisco deixa claro aonde pretende chegar: o amor, quando autêntico, “coloca-nos em tensão para a comunhão universal”, pois, “por sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, uma maior capacidade de acolher os outros” (95). São as pessoas que estão no centro da proposta de Francisco e é o cuidado com elas que conta. O amor proposto por ele está orientado, portanto, à autodoação, ao serviço e, como ele mesmo afirma, “o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas” (115).
No quarto capítulo – Um coração aberto ao mundo inteiro –, Francisco apresenta alguns desafios para assumirmos, de fato, que somos irmãos e irmãs. Atenho-me aqui ao que me parece ser o desafio que fala mais ao coração do Papa: o limite que os poderosos querem impor às fronteiras. Francisco reconhece que o ideal seria que não houvesse migrações forçadas, mas para isso seria preciso “criar reais possibilidades de viver e crescer com dignidade nos países de origem, para que possam encontrar lá as condições para o próprio desenvolvimento integral” (129). Mas o fato é que muitas pessoas precisam migrar para continuar subsistindo, e é direito delas buscar lugares onde possam satisfazer suas necessidades básicas e as de sua família e realizar-se plenamente como pessoas. Somos todos migrantes neste mundo; a triste diferença é que alguns, para continuarem vivendo, precisam cruzar fronteiras. E ninguém tem o direito de impedi-los. A construção de uma fraternidade e amizade social exige que tenhamos a consciência de que “ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém” (137). O cisma que, segundo Francisco, parece estar em curso entre o indivíduo e a comunidade humana (31) não pode tornar-nos reféns de narcisismos bairristas, geradores de medos que nos podem levar a ser inimigos uns dos outros e a fazer explodir entre nós as mais perversas expressões de racismo. Se isso acontecer, a construção de uma fraternidade e amizade social estará comprometida.
No quinto capítulo – A melhor política – Francisco aborda a questão dos populismos e liberalismos atuais e dirige-se duramente aos políticos. Basta olharmos, neste exato momento, para a corrida a cargos políticos no Brasil para percebermos que existe algo de insano no ar, algo que vai na contramão do que propõe Francisco. Como pode ser candidato a cargo político quem não quer colocar a política a serviço do verdadeiro bem comum? Como pode candidatar-se aquele que rejeita a democracia, mas diz estar a serviço do povo? Como podem ajudar a resolver as graves questões sociais pessoas que, por incompetência, não têm condições de oferecer nada mais do que soluções cosméticas para os problemas também cosméticos? Como alguém pode dar-se por autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais? Como pode prestar um bom serviço quem despreza os mais vulneráveis da sociedade? Como pode ser de confiança quem construiu sua casa sobre a corrupção?
Francisco está coberto de razão quando afirma que a caridade é o “coração do espírito da política” e, por isso, “é sempre um amor preferencial pelos menos favorecidos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor” (187). Para ele, a melhor política é a que cuida da fragilidade das pessoas, a que leva “a amar com ternura”, deixando-se enternecer pelos mais frágeis, pobres e pequeninos (194). Enquanto a preocupação maior dos políticos for com o próprio enriquecimento e com as estratégias para se perpetuar nos cargos que os enriquecem, não sairemos do caos em que nos encontramos. Quantos candidatos que concorrem a cargos políticos se preocupam com encontrar a solução eficaz para os fenômenos da exclusão social e econômica, do descarte do mais fraco, da miséria e da fome, da criminalidade e da violência, do desemprego e da exploração, do tráfico de pessoas e do trabalho escravo, da migração forçada e do tráfico de drogas? Os desafios são imensos! E parece que boa parte da população não se tem dado conta da intolerância fundamentalista que a seduziu, com a consequente perda de respeito pelo outro e pelo bem comum. O aumento assustador da pobreza e da miséria levará o povo a se ocupar com sua sobrevivência e, com isso, a abrir mão da plena liberdade a que é chamado. Os nossos políticos não podem continuar sendo cúmplices dessa barbárie!
Ao mesmo tempo em que Francisco, no capítulo sexto da encíclica – Diálogo e amizade social –, propõe o diálogo como caminho para a edificação de uma nova cultura, ele afirma que há verdades das quais não se pode abrir mão. Pode parecer, à primeira vista, que se trata de uma contradição. Francisco sabe, no entanto, que diálogo não é sinônimo de “troca de opiniões exaltadas nas redes sociais”, monólogos que “não envolvem ninguém” (200), negociações voltadas para a conveniência pessoal (202). Para ele, o diálogo é o caminho alternativo possível “entre a indiferença egoísta e o protesto violento” (199). O diálogo, quando verdadeiro, requer capacidade de se expressar, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se enquanto, ao mesmo tempo, orienta para a aproximação, a abertura e a compreensão do outro. O diálogo abre ao encontro, à busca sincera da verdade, ao serviço, à aproximação dos últimos e ao compromisso de construir o bem comum (205). É nisso que Francisco acredita!
Para o Papa, dialogar não significa relativizar a verdade e abrigar-se sob o véu da tolerância e do consenso ocasional quando está em jogo a dignidade humana. Para ele, “o ser humano possui a mesma dignidade inviolável em todo e qualquer período da história, e ninguém pode sentir-se autorizado pelas circunstâncias a negar esta convicção, nem a agir em sentido contrário” (213). Em outras palavras, Francisco reconhece que o caminho para a humanidade é o diálogo, mas isso não significa que se tenha de abrir mão da própria identidade ou dos valores morais nos quais se acredita dever fundamentar-se uma sociedade. Por isso, ele interpela a todos para não medir esforços a fim de buscar a verdade, respeitá-la e submeter-se a ela, sobretudo a “verdade da dignidade humana” (207).
Para a construção da verdadeira paz, Francisco propõe percursos que levem a cicatrizar feridas e formar artesãos de paz. Trata-se de um dos maiores desafios atuais. É no capítulo sétimo – Caminhos de um novo encontro – que Francisco aborda essa questão. No contexto em que vivemos hoje, há dois fenômenos preocupantes, chamados pela jornalista e documentarista Eliane Brum de pós-verdade e autoverdade. Para Brum, a pós-verdade substitui as verdades ancoradas nos fatos por mentiras para falsificar a realidade, enquanto a autoverdade não se importa tanto com o conteúdo do que é dito, mas com o ato de dizer tudo, mesmo sem correspondência alguma com a verdade dos fatos. E o Papa, sabiamente, mesmo sem se referir a tais fenômenos, propõe como percurso para a construção da paz que se recomece a partir da verdade (226); do trabalho em conjunto em prol do bem comum (227); da superação do que divide sem perder a própria identidade (229); do encontro com os mais pobres e vulneráveis (233); da superação das desigualdades e da falta de desenvolvimento integral (235); do perdão partilhado (236); da renúncia a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que causou o mal (250).
Vale a pena notar aqui outro fenômeno não menos preocupante: a facilidade com que a guerra e a pena de morte são vistas como “soluções” em circunstâncias particularmente dramáticas. Francisco desmascara essa concepção (255-270), mas reconhece que, mesmo sendo respostas falsas, há quem as defenda com todo vigor, inclusive dentro da Igreja Católica. Embora a legítima defesa não seja citada por Francisco, o recurso a ela para legitimar o armamento da população é outro fenômeno preocupante e outra resposta falsa. Mais estarrecedor ainda é constatar o elevado número de cristãos defensores e adeptos dessas e de outras formas de violência, sem se importarem que os “danos colaterais” tenham nome, rosto, identidade, dignidade, direitos. Se alguns aspectos da nossa doutrina, fora do seu contexto e mal interpretados, acabam por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, racismo e negação do outro, para Francisco, “a verdade é que a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações” (282).
Francisco sabe que, para cicatrizar feridas, o mundo precisa de artesãos de paz, capazes de gerar processos de cura e de um novo encontro (225). Tais processos fazem parte do que ele chama de “cultura do encontro”: são processos que, edificados sobre uma nova antropologia relacional, levam a unir e distinguir universal e particular, a reconhecer a importância da complementaridade na diversidade, a afirmar a indissolubilidade entre verdade-justiça-misericórdia. São processos que, aos poucos, ajudam a integrar a cultura do encontro e o encontro que se faz cultura (216).
Francisco está convencido de que as religiões têm papel fundamental na construção da fraternidade e da amizade social. Os fundamentos que justificam sua convicção são os seguintes: a) a reflexão que provém de um fundo religioso recolhe séculos e séculos de experiência e sabedoria que não podem ser desprezadas (275); b) o reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus (271); c) a consciência de sermos filhos e filhas que não são órfãos – e, portanto, sermos irmãos e irmãs – permite-nos viver em paz entre nós (272); d) o mundo precisa do testemunho de um caminho de encontro entre as várias religiões (280).
Quanto à contribuição da Igreja Católica, eis os fundamentos que justificam ser imprescindível o seu papel: a) sendo o caminho da Igreja o ser humano, tudo o que é humano diz respeito a ela (278); b) a sua história de graça e pecado ajuda a compreender mais profundamente a beleza do convite ao amor universal (278); c) a contribuição profética e espiritual da unidade entre todos os cristãos é algo que ainda devemos ao mundo (280); d) o amor ao qual somos chamados é o amor com o qual Cristo mesmo nos amou (277).
No entanto, Francisco reconhece que, se o ponto de partida não for “o olhar de Deus”, pois Ele não olha com os olhos, mas como o coração (281); se não retornarmos “às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração a Deus e o amor ao próximo” (282); se não reconhecermos que somos chamados a ser verdadeiros “dialogantes” (284), dificilmente seremos mediadores autênticos na construção da paz; quando muito, seremos meros intermediários dela. Isso Francisco aborda no capítulo oitavo – As religiões ao serviço da fraternidade no mundo.
Apesar de reconhecer a importâncias das religiões na construção da fraternidade e da amizade social, o Papa é firme com aqueles que pensam agir em nome de Deus quando, na realidade, servem-se dEle para realizar apenas interesses pessoais. Francisco tem razão quando afirma que “Deus, o Todo-Poderoso, não precisa ser defendido por ninguém e não quer que o seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas” (285). Não há como deixar de considerar o que estamos vivendo em nosso País, porque, em várias passagens da encíclica, parece que Francisco tem diante de si, como cenário, o Brasil. Com relação ao uso do nome de Deus, estamos assistindo, hoje, a algo assustador: oportunistas de plantão não se cansam de gritar que Deus está acima de tudo quando, na realidade, Ele quis, desde sempre, estar no meio de nós, a ponto de ter assumido nossa carne para nunca mais se separar da humanidade; falsos profetas não se intimidam ao levantar a voz para acusar e matar em nome de Deus quando, na realidade, buscam apenas poder e enriquecimento; sepulcros caiados revestem-se de nefasta hipocrisia ao mentir em nome de Deus e da defesa de valores “tradicionais” quando, na realidade, sua própria vida desmente-os e condena. Precisamos desmascarar a podridão revestida de religiosidade que tomou conta do País; a começar pelo Congresso, pela famosa e ultrajante “Bancada da Bíblia”. Não precisamos de gente “terrivelmente” religiosa para governar o País, mas de pessoas honestas e competentes, comprometidas com o bem comum, decididas a dar prioridade às necessidades dos menos favorecidos, que tenham a coragem de tomar medidas inclusivas dos últimos, abandonados às margens da sociedade (233-235).
A encíclica Fratelli tutti foi criticada pela ausência da contribuição feminina e pelo título, taxado por alguns de sexista. Quanto à “presença” das mulheres na encíclica, Francisco refere-se a elas em alguns parágrafos: “a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra” (23); “assim como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples fato de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local do nascimento ou de residência determine, per se, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento” (121). Noutros dois parágrafos (24 e 227), a referência a elas é feita para dizer que são vítimas de violência. Apesar da ênfase à “humanidade inclusiva” dada pela Fratelli tutti, chama a atenção que nenhuma mulher seja citada como inspiração ou exemplo. A ausência de mulheres e da voz da mulher na encíclica é, no mínimo, constrangedora pelo simples fato de que muitas das atividades propostas por Francisco serem assumidas e terem como protagonistas as mulheres, especialmente nos contextos de migração e de reconciliação. Mais ainda, porque é impensável uma mudança social sem o engajamento delas.
Quanto ao título da encíclica, Francisco foi interpelado a ampliá-lo – fratelli e sorelle tutti – a fim de que as mulheres se sentissem inclusas, já que ela abordaria o tema da irmandade e fraternidade. Trinta organizações feministas da Europa, África, Ásia e América Latina assinaram uma carta dirigida a ele enfatizando o apreço pelos seus ensinamentos, reafirmando o compromisso com a difusão da doutrina social da Igreja e pedindo que inserisse no título a palavra “irmãs”. Francisco preferiu manter a citação literal de Francisco de Assis e conservá-la em italiano. Pessoalmente, não acredito que uma possível alteração do título trairia o espírito de São Francisco e as suas intenções. Mas não acredito ser justo servir-se desse fato para deixar de reconhecer que Francisco é um dos pontífices que mais tem atuado para dar protagonismo às mulheres no Vaticano. Quanto ao protagonismo das mulheres na Igreja – que transcende os muros vaticanos –, vale o que disse Francisco sobre a igual dignidade e equidade de direitos com os homens: “as palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra” (23). Passos mais significativos nessa direção ainda precisam ser dados.
A expectativa do mundo hoje se volta para o pós-pandemia, para um contexto em que todas as pessoas e todas as criaturas precisam de cuidado; daquele cuidado que se expressa como atenção, escuta, colo, ternura, dedicação, cura. Não podia ser diferente com relação à Fratelli tutti. Podemos perguntar-nos o que está no coração do Papa quanto ao futuro. Embora a própria encíclica, na sua totalidade, seja a mais clara expressão do desejo de Francisco quanto ao futuro, acredito não errar ao sintetizar todo o seu conteúdo num anseio que revela onde está o seu coração: “oxalá, já não existam ‘os outros’, mas apenas um ‘nós’” (35).
O que está no coração de Francisco constitui a essência do Ubuntu – conforme as palavras do teólogo jesuíta Agbonkhianmeghe Orobator –, uma filosofia humanista africana baseada na cultura do compartilhamento, da abertura, da dependência mútua, do diálogo e do encontro interpessoal, a ser mais conhecida e assumida como estilo de vida. O que está no coração de Francisco foi imortalizado na letra da música “Caminhos do Coração”, de Gonzaguinha – “E aprendi que se depende sempre de tanta, muita, diferente gente. Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas. E é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente aonde quer que a gente vá. E é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar” –, música a ser cantada com mais força ainda.
Francisco sabe que “ninguém se salva sozinho” (54): “ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém” (137).
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