22 Abril 2021
A partir de um livro de Hans Küng de 1962, não é difícil entender em que medida ele foi um profeta e em que medida as suas intuições permaneceram à margem dos desenvolvimentos posteriores.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 19-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A morte de um grande teólogo induz quase naturalmente a retornar ao seu pensamento e aos seus textos. Voltando à parte da estante a ele dedicada, atrás de uma fileira de livros, encontrei este, publicado pela editora Herder em janeiro de 1963 e assinado por Hans Küng em dezembro de 1962.
“Igreja em Concílio”, livro de Hans Küng publicado em 1962 (Foto: Come Se Non)
O título é “Kirche im Konzil”, Igreja em Concílio, e é um relato extraordinário da primeira sessão do Concílio Vaticano II, que acabava de encerrar (de 11-10-1962 a 08-12-1962). O livro é composto por 221 páginas muito densas, sempre muito organizadas e singularmente claras. O olhar é imediatamente atraído pela terceira parte, a mais desenvolvida, que se intitula “O desenvolvimento do programa: a reforma litúrgica” e se articula em cinco capítulos:
1. Reforma do culto à luz da história;
2. Latim: a língua materna da Igreja?;
3. Renovação do Cânone Romano;
4. Reforma litúrgica e reconciliação dos cristãos divididos;
5. Reforma do Breviário à luz da história.
Ficamos imediatamente impressionados com o fato de que Küng pôde escrever este texto apenas três meses depois do início dos trabalhos conciliares. É muito útil considerar detalhadamente as suas observações (que abrangem mais de 40 páginas, pp. 82-124).
Antes de nos adentrarmos nessa parte do texto, é bom considerar aquilo que o precede e aquilo que o segue. De fato, as duas primeiras partes são dedicadas ao “Programa do Concílio” e à “Essência e realidade do Concílio”, enquanto as posteriores estão intituladas “Problemas de doutrina” e “A Igreja neste tempo”.
Cada uma das partes mereceria um exame acurado, porque oferece in nuce boa parte daquilo que Küng estudaria nos 60 anos seguintes. Por exemplo, a última parte começa com um capítulo intitulado “Ofício petrino e ministério apostólico”.
Mas volto ao meu intento e me deterei na parte dedicada à reforma litúrgica.
A reconstrução histórica da “missa”, proposta no início desta parte em grandes paradigmas, chega ao delineamento da “missa do futuro” (pp. 89-90): como Küng a imagina em 1962, um ano antes da aprovação da Sacrosanctum Concilium?
Ele divide o horizonte em dois âmbitos: a Liturgia Eucarística deveria ter uma oração eucarística dita em voz alta e em língua compreensível, com uma simplificação do cânone romano segundo o modelo da anáfora de Hipólito; a Liturgia da Palavra deveria prever oração e canto comum, proclamação e pregação, com uma maior riqueza bíblica (Küng pensa em um ciclo de seis anos de leituras dominicais e em um ciclo para a missa diária).
Ambas as “missas” deveriam ser caracterizadas por: uso da língua materna, celebração versus populum, participação ativa do povo, distinção entre missa simples e missa festiva, renovação das formas festivas (canto popular, canto coral, acompanhamento com metais ou com orquestra, renovação do canto festivo dos salmos), eliminação daquilo que é secundário (como a duplicação das orações, o anúncio do Evangelho no fim da missa...). Para Küng, tudo deve tender para a celebração comunitária que valorize a participação ativa de todo o povo.
Depois de dedicar um amplo capítulo ao redimensionamento das pretensões do latim como “língua da fé”, Küng se concentra na “reforma do cânone”.
Aqui, pode ser muito interessante considerar como ele pensa nos desenvolvimentos, que então se realizariam apenas alguns anos depois, com muitas ideias, confrontos, incompreensões, até a forma do “missal romano” de 1969.
Ele coloca antes do discurso sobre a Oração Eucarística o discurso sobre a “Oração Universal” ou “Oração dos fiéis”, cujo restabelecimento ordinário dentro da sequência ritual facilitaria, segundo Küng, a reforma do Cânone, remetendo-o ao seu caráter original, abrindo mão, assim, das “intercessões” da sua estrutura, que se tornou superabundante.
Para esse propósito, Küng publica em duas colunas o Cânone Romano e a Oração Eucarística da Traditio Apostolica de Hipólito (pp.101-104). A sinopse permite deduzir uma série de considerações de caráter teológico, orientadas sobretudo no sentido de uma poderosa recuperação do sentido original da ceia do Senhor, cujo caráter de memorial e de banquete deve recuperar uma nova centralidade.
E aqui ele interpreta o gesto do Papa João XXIII, que tinha acabado de introduzir o nome de São José no Cânone e, assim, modificado o texto que permanecera inalterado desde o Concílio de Trento, como a indicação da possibilidade formal de outras mudanças também.
Deve-se notar que, pelo menos até este ponto, Küng não pensa em uma “pluralidade de textos” de orações eucarísticas, mas na simplificação e redução ao essencial de um único Cânone.
Küng está ciente de que, em dezembro de 1962, nem tudo está acabado. Será preciso chegar a um texto aprovado pela Assembleia Plenária (e isso ocorreria um ano depois, no dia 4 de dezembro de 1963) e, depois, a reforma deveria ser feita materialmente.
Mas tudo isso poderá ter um valor “ecumênico” ou será uma questão puramente “intracatólica”? Küng assinala aqui as oportunidades de uma “partida litúrgica” do Concílio em sentido reformador, mas também o risco de um possível fechamento tradicionalista e romântico.
Por isso, ele se confronta com a leitura “evangélica” da reforma litúrgica: o que os protestantes pediriam à reforma litúrgica? Ele concentra essas demandas em quatro pontos: uma maior proximidade da missa à ceia de Jesus; uma retomada do valor da escuta da Palavra; o ato de culto como ação do povo sacerdotal; a liturgia que se adapta às diversas culturas.
Essas reivindicações gerais, que podem unir católicos e protestantes, devem considerar também, porém, as questões “clássicas” que criaram tensão entre as duas confissões: a língua falada, o cálice aos leigos e a concelebração parecem três níveis em relação aos quais o amadurecimento trazido pelo Movimento Litúrgico poderia levar a importantes reformas internas à celebração católica.
Não é difícil ver como já estavam claros, ainda em 1962, alguns dos perfis que caracterizariam não só o texto da Sacrosanctum Concilium, mas também a obra concreta de reforma litúrgica do Missal Romano.
Um último tópico de interesse para Küng é a reforma da oração eclesial. Ele esclarece imediatamente que, no Breviário, estão contidas “três formas fundamentais” da oração eclesial:
a) a Liturgia da Palavra de todo o povo,
b) a oração sacerdotal do clero secular,
c) a Liturgia das Horas dos monges (p. 117).
Depois de sintetizar a “história do Breviário” em três saborosas páginas cheias de dados (pp. 118-120), ele passa a descrever as “possibilidades atuais” e se pergunta: o Concílio será capaz de uma renovação de fundo?
Ele considera que seria necessária, acima de tudo, uma retomada poderosa da “Liturgia da Palavra” com ritmo diário pela manhã e à noite (Laudes e Vésperas). Depois, seria preciso desenvolver o “proprium” monástico da santificação do dia ao longo das horas. Mas a sua preocupação parece sobretudo a de renovar a qualidade da oração do padre secular, que ele tenta reconstruir de uma forma bastante original.
Acima de tudo, na opinião dele, é preciso o tempo a ser dedicado à oração. Assim, ele desce para a concretude: todos os dias, três quartos de hora devem ser dedicados à oração. Cada 15 minutos tem uma própria lógica diferente:
a) primeiro quarto de hora: a ser dedicado à “lectio continua” de toda a Escritura, do Gênesis ao Apocalipse;
b) segundo quarto de hora: meditação ou leitura espiritual;
c) terceiro quarto de hora: oração da manhã e da tarde;
O conjunto dessa renovação, da experiência orante do povo, dos monges e dos padres, contribuiria não só para mudar a experiência eclesial, mas também para fortalecer os laços com as outras confissões.
Assim pensava Küng em dezembro de 1962. Não é difícil entender em que medida ele foi um profeta e em que medida as suas intuições permaneceram à margem dos desenvolvimentos posteriores.
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A reforma litúrgica segundo Hans Küng: memórias do Concílio. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU