A urgência da fraternidade e a teologia: sobre o documento “Salvar a fraternidade – juntos” (parte 2). Artigo de Andrea Grillo

Foto de Ave Calvar Martinez no Pexels

22 Junho 2021

 

"Devolver a teologia à sua destinação popular, à multidão, e não só aos discípulos, implica uma profunda mudança de método, de linguagem e de objetivos. Também nas formas do exercício concreto do trabalho teológico. Isso significa, com uma imagem, construir uma “ponte” entre a Ecclesiam suam (Paulo VI, 1964) e a Fratelli tutti (Francisco, 2020), compartilhando a aspiração comum à 'redenção do ser humano'”.

 

O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 21-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

A primeira parte da reflexão pode ser lida aqui.

 

Eis o texto.

 

Prosseguindo o exame do apelo “Salvar a fraternidade – juntos”, do qual já propus uma consideração geral e formal em um post de poucos dias atrás (aqui, em português), examino agora a primeira parte do texto, aquela que precede os dois “apelos” dirigidos aos Discípulos e aos Sábios.

 

Encontramo-nos diante de uma “descrição” da atual condição cultural, teológica e eclesial que apresenta muitos elementos de interesse. Refiro-me às pp. 1-14 do texto (disponível em português aqui), que estão assim divididas:

 

a) Introdução (1-2)
b) Kairós atual da fé (2-5)
c) Sinais globais da crise (5-10)
d) A teo-logia, bem comum (10-14)

 

Prossigamos em ordem.

 

a) Introdução

 

A introdução, além de fixar a forma da abordagem dialógica de que já falamos no primeiro post já citado, fixa na encíclica Fratelli tutti aquela “definitiva provocação” que leva a buscar “o clima de uma ‘fraternidade intelectual’ que reabilite o sentido elevado do ‘serviço intelectual’ que os profissionais da cultura – teológica e não teológica – devem à comunidade” (SF 1).

Há uma “coincidência” entre a palavra magisterial e a condição universal de sofrimento pela pandemia que se torna uma “ocasião propícia”, dentro e fora da Igreja: o serviço intelectual parece ser, assim, único e comum.

Veremos que esse é um dos principais temas do texto: superar as barreiras, derrubar os muros e os bastiões, sair de categorias sem fôlego para “honrar a realidade”. Esse compromisso se concretiza em uma fórmula dupla, que percorre o texto e soa assim:

“(…) terminou, moralmente, o tempo de toda a exibição intelectual, com o seu exercício despreocupado do relativismo profanador da humana communitas, assim como está terminado o tempo da repetição obtusa de fórmulas sagradas que preservam um vazio de afetos e de vínculos” (SF 1-2).

Diante dessa “deriva dupla” – que caracteriza paralelamente a cultura civil e a cultura eclesial – a reação deve ser a de uma honestidade intelectual crítica e autocrítica, junto com uma aliança testemunhal.

Um “pensamento sobre a fraternidade” realmente fundamentado é o desafio comum, para pensar a “humana communitas”, o humano que é comum, sem se contentar com leituras românticas, sentimentais e rigidamente repetitivas de estereótipos. Eis então a “ocasião oportuna”, o kairós deste tempo e deste texto.

 

b) O Kairos atual da fé

 

A “destinação” da Igreja à “comunidade de todos os homens” está inscrita no DNA do Evangelho: a diferença entre o Senhor e a sua Igreja não é um acessório secundário: a incorporação no Corpo de Cristo nunca é uma substituição do Senhor, mas sim seguimento e escuta. O vínculo com o Senhor “nunca pode tornar-se propriedade privada da communitas fidelium” (SF 4).

No nosso tempo, essa evidência é contradita por consagrações profanadas e por vocações contraditórias. Aqui o texto chega a expressões de grande denúncia:

“O excesso de inaptidão dos aparelhos eclesiásticos é agora uma evidência planetária. A conflitualidade e a imoralidade que habitam a província eclesiástica são agora percebidas como um índice de fragilidade do sistema, não simplesmente como debilidades ocasionais. É certo que esta manifestação não faz justiça a uma enorme diáspora eclesial de crentes sinceros e simples, assim como à dedicação do serviço institucional de muitos homens e mulheres. Mas é necessário admitir que a gravidade do fenômeno não permite o caminho dos cuidados paliativos” (SF 4).

A instituição deve se despedir de formas de vida e de governo eclesial que sofrem de uma deriva clerical patológica. O cerne da resposta não está em ajustes marginais, mas na reavaliação radical da relação entre Igreja e mundo. O “campo total da cidade do homem” é o lugar do anúncio e da realização do reino de Deus.

“A nostalgia de um mundo mais condescendente, assim como o ressentimento frente a um mundo demasiado hostil, são ambos igualmente desadequados. Não existe um mundo já pronto para o advento do reino de Deus” (SF 5).

Disso deriva o motivo do desafio que a Fratelli tutti  lança à teologia: o gesto com que ela relê a tradição provoca a teologia e a inteligência comum a uma profunda reavaliação das categorias de interpretação da história e da realidade.

 

c) Sinais globais da crise

 

Existem “sinais” que anunciam o “novo mundo que devemos aprender a habitar”. Aqui, parece-me, o texto retoma com novo ímpeto a solicitação que vem de João XXIII, de Paulo VI e ultimamente de Francisco: a Igreja pode/deve aprender com os “sinais dos tempos”, que são uma forma de “aprendizado”.

Quais são esses sinais? Eles derivam de uma progressiva tensão entre secularização e religião, entre ética humanística e desenvolvimento material. A “forma europeia” com a qual pensamos e impusemos o progresso conhece limites estruturais novos, que a pandemia de algum modo pôs em cena do modo mais evidente:

“A irrupção de uma pervertida religiosidade do sacrifício (o terrorismo fundamentalista), a farsa da produção financeira da riqueza (a especulação sobre a dívida), o desespero crescente dos povos abandonados (as migrações em massa), a fragilidade subvalorizada da gestão tecnocrática (a paralisia da pandemia): são estes os eventos-sintoma de um presente de desilusão que assoma no horizonte da época” (SF 6).

Esses sinais se unem aos efeitos estruturais de uma globalizaçãoingovernável”:

“O crescimento da desigualdade de propriedade e do abandono social, por outro lado, multiplica os efeitos negativos de uma globalização tecnoeconômica vistosamente separata de uma correspondente evolução da solidariedade ético-humanística. O efeito emerge, culturalmente, das zonas de sombra da modernidade ocidental do sujeito. A política e o direito da cidade secular encontram-se visivelmente em apuros em relação ao fosso ingovernável entre a liberdade das afeições individuais e os vínculos do bem comum. O processo da respectiva separação real corre mais veloz do que qualquer projeto de recomposição ideal” (SF 7).

Enxerta-se aqui uma reflexão de caráter antropológico, na qual afetos e vínculos, indivíduo e sociedade, liberdade e autoridade são pensados em vista de um novo equilíbrio. Poderíamos dizer que os “três sinais dos tempos” de João XXIII (emancipação do trabalho, dos povos e das mulheres) são reconsiderados na sua complexidade, pelo nível de “injustiça” que combatiam e ainda combatem, mas também pelas novas injustiças e distorções que produzem.

Na descrição desse “impacto complexo” dos ideais de emancipação, evidencia-se a ingenuidade de uma reconstrução “linear” do mundo, que gera monstros:

“Afinal, quem não desejaria viver como nós? Os supermercados estão sempre abertos, o divertimento está sempre em cena, as conexões tornam-se onipresentes, a velocidade multiplica as oportunidades, os serviços sexuais são de livre acesso, os condomínios residenciais são bolhas de confortável sedentarismo, protegido e exclusivo, para o cidadão global de qualquer metrópole do planeta” (SF 8).

A denúncia dessa “perversão” do mundo dos “livres e iguais”, retratada nessas páginas com uma lucidez quase implacável, cria o espaço para uma retomada do tema da fraternidade e da comunidade. Se o mundo que se projeta como composto por “livres e iguais” produz tanta injustiça, qual o caminho para remediá-la, recuperando o “terceiro vocábulo” da tríade revolucionária, ou seja, a fraternidade?

No entanto, é preciso se perguntar: a “desmoralização” e a “indiferença” crescentes são realmente apenas o produto de uma “liberdade e igualdade sem responsabilidade”? Não é esse também o fruto de “communitates” em que a autoridade foi incapaz de conservar os laços?

A pergunta é legítima. Por isso, a “promessa de liberdade” que o mundo moderno sabiamente construiu, exige um suplemento de alma, de práxis e de pensamento sobre o tema da fraternidade e da proximidade, segundo o que a Fratelli tutti diz profeticamente.

 

d) A teo-logia, bem comum

O título do último parágrafo – antes do Apelo e da Carta Aberta – contém uma boa dose de sadia provocação. O fato de a teologia ser um “bem comum” parece ser um dado desconhecido não só para a “cultura civil”, mas também para a própria teologia, muitas vezes empenhada apenas em “evangelizar a si mesma” e a esclarecer o que o cristianismo “não é”.

Esse modo de pensar põe em questão o próprio exercício do trabalho teológico, muitas vezes condenado a uma total esterilidade e irrelevância, dentro e fora da Igreja. A tradição teológica, que ao longo dos séculos se atribuiu categorias tão refinadas para interpretar o “sagrado” que abala a relação de todo homem/mulher com o próximo e com Deus, e que conhece muito bem também as perversões, hoje tem apenas um caminho à sua frente:

“A teologia eclesial deve, portanto, adquirir o estilo de um pensamento criativo e hospitaleiro para todos, não reduzido a um jargão para iniciados. Parece evidente que isto implicará uma significativa alteração das instituições eclesiais” (SF 11).

Essa passagem é de grande importância: porque implica um exercício de trabalho teológico “criativo e hospitaleiro”, que não elabore apenas um “jargão para iniciados” e que se sobressaia corajosamente na “mudança das instituições eclesiais”.

Aqui, como é evidente, toca-se uma passagem muito delicada, muitas vezes deixada em silêncio pelos teólogos. A qualidade criativa e hospitaleira, crítica e dialógica, mas também necessariamente reformadora no nível institucional do pensamento teológico pede mudanças radicais, também no modo como a Igreja Católica pensa o trabalho do teólogo.

O próprio modo como o Código de Direito Canônico pensa a função do teólogo a partir de 1983 – diferentemente de 1917 – contrasta duramente com esse nobre projeto. A obediência teológica, pensada como pouco criativa e pouco hospitaleira, não encontra a sua verdade no silêncio, mas na palavra.

O fato de esses termos tão explícitos de reavaliação da teologia virem de um grupo de trabalho estreitamente ligado a duas instituições oficiais é um sinal de grande esperança e de virada real.

Devolver a teologia à sua destinação popular, à multidão, e não só aos discípulos, implica uma profunda mudança de método, de linguagem e de objetivos. Também nas formas do exercício concreto do trabalho teológico. Isso significa, com uma imagem, construir uma “ponte” entre a Ecclesiam suam (Paulo VI, 1964) e a Fratelli tutti (Francisco, 2020), compartilhando a aspiração comum à “redenção do ser humano”, em que o mistério do ser humano e o mistério da Igreja se dão juntos, sem dualismos, sem contradições, mesmo que não sem oposições polares muito delicadas.

Construir essa “ponte”, que os teólogos por primeiros devem ousar atravessar, é uma responsabilidade peculiar deles, aqui e agora. Quem se obstina em enxugar gelo em relação à tradição faz simplesmente outro trabalho.

Essa leitura abrangente da crise, dos “sinais dos tempos” e do papel da teologia, constitui a grande premissa na qual se inserem os dois textos subsequentes, que parecem ser quase o “fim último” do próprio documento: ou seja, o apelo aos Discípulos e a carta aberta aos Sábios, dos quais nos ocuparemos no próximo post.

 

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