Plataformas digitais mobilizam o que há de mais arcaico nas relações de trabalho. Entrevista especial com Ricardo Festi

Com trabalhadores deixados à própria sorte, cabe a cada um gerir seu tempo, seu espaço e seus equipamentos, responsabilizando-se por aquilo que deveria ser papel das empresas e do Estado, destaca o pesquisador

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 10 Dezembro 2024

A redução da jornada de trabalho voltou à agenda pública após o término das eleições municipais. A pauta, que tem origem no movimento Vida Além do Trabalho (VAT), criado pelo vereador eleito Rick Azevedo (PSOL-RJ), e na proposta da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), já atingiu o número mínimo de assinaturas para avançar na Câmara dos Deputados. O projeto pretende pôr um fim à jornada de trabalho 6x1, que tem galvanizado condições de trabalho extenuantes e precarizadas do trabalho.

O debate, no entanto, não é novo, explica o professor Ricardo Festi. Segundo aponta, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, há 33 projetos em tramitação no Congresso Nacional. Entre estes, a PEC 221/2019 de Reginaldo Lopes, que prevê a “redução da jornada por meio de uma transição de 10 anos, o que iria beneficiar as empresas, que usariam diversas estratégias para aumentar a produtividade”, adverte. Nesse sentido, indica que a proposta da deputada Erika é melhor, porque “acarreta numa excelente política de inclusão e criação de postos de trabalho”. A proposta, sublinha o entrevistado, é uma oportunidade de “recolocar na mente das pessoas o sonho de um outro modo de vida, o que é fundamental para a difusão de uma visão de mundo alinhada à esquerda”.

Na análise do sociólogo, “nas últimas décadas, com o neoliberalismo, o trabalho perdeu a centralidade na política”. Para ele, “o empreendedorismo é uma ideologia que sintetiza o ethos do neoliberalismo”. E continua, “assim, o empreendedorismo, enquanto ideologia, busca legitimar a vida precária e miserável deste início de século XXI”. Além disso, alerta que “a tendência é que a plataformização avance para muitas áreas da economia e do emprego e, para que esse processo ocorra sem grandes resistências, é importante uma legitimação ideológica: o empreendedorismo”.

Festi organizou, junto com Jörg Nowak, o livro As novas infraestruturas produtivas: digitalização do trabalho, e-logística e indústria 4.0, com “textos originais sobre o mundo do trabalho, o capitalismo, o neoliberalismo e as formas de resistência”. No capítulo que escreve com outros autores, assinala a existência de um problema de racialização vinculado à precarização e destaca: “As plataformas digitais, apesar de se apresentarem como uma novidade da modernidade, mobilizam o que há de mais arcaico nas relações de trabalho. E uma tendência é certa: quanto maior a precarização das condições de trabalho maior é a racialização”.


Ricardo Festi (Foto: Joca Duarte | Sintrajud)

Ricardo Festi é professor do Departamento de Sociologia e do PPG em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). É autor de As origens da sociologia do trabalho: percursos cruzados entre Brasil e França (Boitempo, 2023). Editor-Adjunto da revista Sociedade e Estado e Coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Teoria Social da UnB, com doutorado em Sociologia pela Universidade de Campinas (Unicamp), com estágio de pesquisa (doutorado sanduíche) na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, entre 2015 e 2017. Graduou-se em bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais e defendeu dissertação de mestrado em sociologia, todos pela Unicamp. É membro do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT) da Unicamp, coordenado pelo Prof. Ricardo Antunes, além de pesquisador do Projeto Fairwork no Brasil. 

Confira a entrevista.

IHU – Como se caracteriza o mundo do trabalho contemporâneo?

Ricardo Festi – Um mundo em plena mutação, com uma acentuada erosão das condições de trabalho. Infelizmente, nas últimas décadas, há uma destruição de direitos conquistados no século passado. A consequência é o aumento da insegurança e da instabilidade nos empregos, a ampliação das jornadas laborais, a intensificação do trabalho e um maior número de contratos temporários (como os contratos intermitentes ou de zero hora), sem falar na informalidade e nos falsos autônomos (múltiplas formas de exercer atividades para outrem, mas sem formalizar legalmente um vínculo de emprego).

Esse quadro tem se agravado por meio das reformas trabalhistas ocorridas em vários países, com a implementação de novos maquinários e tecnologias (como a digitalização do trabalho ou a automação algorítmica). É um cenário devastador, mas que também apresenta algumas reações por parte dos trabalhadores e trabalhadoras.

IHU – Como a combinação entre plataformização e empreendedorismo tem alterado a estrutura do trabalho no Brasil?

A Ricardo Festi – A plataformização representa uma transformação estrutural na organização do trabalho, por meio de suportes técnicos e digitais. As plataformas digitais se apresentam como supostas mediadoras entre demandas, trabalhos e consumos.

O empreendedorismo é uma ideologia que sintetiza o ethos do neoliberalismo, ou seja, uma sociedade que tem como modelo de organização da vida a empresa capitalista. A plataformização acentua o processo de externalização do trabalho, iniciado nos anos 1970 com a terceirização ou a quarteirização das atividades, uma vez que consegue eliminar a empresa intermediária e criar uma relação de externalização diretamente com os indivíduos. Os casos mais visíveis são os entregadores e motoristas de aplicativos, que são desprovidos de direitos trabalhistas. Assim, cada indivíduo é considerado uma unidade produtiva, atomizando. Deixados à própria sorte, cabe a cada um gerir seu tempo, seu espaço e seus equipamentos, responsabilizando-se por aquilo que deveria ser papel das empresas e do Estado.

Assim, o empreendedorismo, enquanto ideologia, busca legitimar a vida precária e miserável deste início de século XXI. A tendência é que a plataformização avance para muitas áreas da economia e do emprego e, para que esse processo ocorra sem grandes resistências, é importante uma legitimação ideológica: o empreendedorismo.

IHU – É possível formar uma nova classe trabalhadora num contexto radicalmente marcado pela transformação tecnológica e pelas mídias sociais?

Ricardo Festi – Muitos estudiosos afirmam que estamos assistindo ao retorno de condições de trabalho semelhantes às do século XIX. Naquela época, mesmo com jornadas de mais de 12 horas diárias, baixos salários e precárias habitações, houve inúmeras lutas que deram origem a incontáveis processos de luta por direitos e até mesmo revoluções.

As tecnologias sempre mudarão, assim como as formas de luta dos trabalhadores. Por exemplo, as mídias sociais, que têm servido para a proliferação dos discursos da extrema-direita, também têm sido um espaço frutífero para a organização das lutas sociais. Temos vários exemplos nos últimos anos, como o caso dos Breques dos APPs em 2020. Sua organização ocorreu por meio de redes sociais (Twitter, Instagram, Facebook, Telegram, YouTube...). Isso também valeu para a mobilização contra a escala de trabalho 6x1, que deu origem ao movimento Vida Além do Trabalho (VAT).

As redes sociais têm possibilitado reunir pessoas que estão distantes geograficamente. No entanto, assim como permitem reunir pessoas, facilitando a comunicação, também impõem limites e desafios. A conclusão é que os movimentos sociais sempre encontraram formas de fazer suas lutas, mesmo em situações muito mais adversas que as de hoje.

IHU – Como pensar o futuro do trabalho e a proteção social em um contexto de radical neoliberalização das ocupações?

Ricardo Festi – Não há outra saída senão a mobilização popular dos sindicatos, movimentos sociais, associações, partidos políticos e coletivos de todos os setores explorados e oprimidos da sociedade. Infelizmente, a fragmentação das pautas políticas e dos grupos sociais enfraqueceu essa luta.

Além disso, nas últimas décadas, com o neoliberalismo, o trabalho perdeu a centralidade na política. É necessário resgatá-la, compreendendo que todas as questões passam, de uma forma ou de outra, pelo trabalho. Felizmente, vemos iniciativas importantes, além de tímidas, em várias partes do mundo que buscam unificar as diversas pautas dos oprimidos, tendo o trabalho como um vetor central. Este é o caso do movimento Vida além do trabalho (VAT), impulsionado por jovens precários, e que tem pautado o debate pelo fim da escala 6x1.

IHU – As redes sociais e a mídia têm repercutido a mudança da jornada de 6X1, que aguarda votação no Congresso para avançar. O senhor pode destacar os principais pontos? Quais seriam os impactos no mundo do trabalho caso ocorresse a redução da jornada que está na proposta?

Ricardo Festi – O debate sobre a escala 6x1, isto é, trabalhar seis dias por semanas e descansar um, foi impulsionado recentemente pelo VAT. A principal figura deste movimento é o Ricardo (Rick) Azevedo, que acabou de se eleger vereador pelo PSOL na cidade do Rio de Janeiro. Ele é um jovem negro e periférico, trabalhador precário com contrato de trabalho, além de influencer. Seu movimento teve início por meio de uma ação espontânea (ele gravou um vídeo indignado contra a escala 6x1 que viralizou nas redes sociais virtuais) e ganhou adeptos em todo o Brasil. A sua força está justamente no fato de tocar aspectos fundamentais da vida cotidiana da massa precária da população brasileira: vive-se de baixíssimos rendimentos, com jornadas de trabalho excessivas, submetidos a regimes despóticos (assédio moral e sexual, discriminações, todo tipo de violência simbólica etc.) e, apesar disso tudo, não tem acesso ao mínimo de conforto da vida moderna (perdem horas de seus dias no transporte coletivo, moram em habitações ruins e não têm acesso ao lazer). Ele tem destoado da lógica defensiva das lutas dos últimos anos, abrindo a possibilidade de recolocar na mente das pessoas o sonho de um outro modo de vida, o que é fundamental para a difusão de uma visão de mundo alinhada à esquerda.

Rick Azevedo construiu uma aliança com a deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que lançou a ideia de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) para redução da jornada para uma escala 4x3. Apesar do projeto já ter ultrapassado o número mínimo de apoiadores dentro da Câmara dos Deputados, Hilton ainda não o protocolou. Habilmente, ela tem negociado o projeto com amplos espectros políticos, do governo do PT ao União Brasil.

No entanto, importa ressaltar que este não é o primeiro projeto propondo redução da jornada de trabalho. Segundo um levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), há 33 projetos em tramitação no Congresso Nacional (28 da Câmara dos Deputados e 3 do Senado Federal). Além de vários outros projetos de redução da jornada em categorias específicas, como a das enfermeiras. Entre estas, a PEC 221/2019 de Reginaldo Lopes (PT-MG) é a que está mais avançada nos trâmites burocráticos, aguardando a designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Caso este debate avance, é possível que a PEC da Hilton tramite junto com a do Lopes.

As duas PECs propõem uma redução da jornada semanal de trabalho para 36 horas, o que criaria a tal escala 4x3 (trabalham 4 dias por semana e folgam três). No entanto, parece-me que a Hilton tem proposto uma redução imediata da jornada, enquanto o projeto de Lopes apresenta uma transição de 10 anos. Se for votada uma redução imediata, a consequência seria uma maior absorção das pessoas que estão hoje na informalidade. Ou seja, esta opção acarreta numa excelente política de inclusão e criação de postos de trabalho.

No entanto, é necessário considerar que, apesar da Constituição Federal limitar a jornada semanal em até 44 horas semanais, muitas categorias (senão a maioria) trabalham bem mais que isso, seja por meio de banco de horas que nunca são pagos, seja pelo borramento das barreiras entre o trabalho e a esfera privada por conta da digitalização (são os casos dos trabalhos que são levados para casa, as demandas que chegam por celular fora do expediente etc.). E, por fim, uma redução da jornada por meio de uma transição de 10 anos acaba por beneficiar as empresas, que usariam diversas estratégias para aumentar a produtividade (com novos maquinários ou novas gestões mais racionais).

O que é importante destacar deste movimento, além dele tocar em questões concretas da vida cotidiana, é que há um debate colocado nos últimos anos sobre a viabilidade desta redução. A iniciativa mais conhecida tem sido as impulsionadas pelo movimento 4 Day Week Global. As empresas que participam do experimento devem reduzir a jornada semanal para 4 dias. O resultado é que 92% das que experimentaram isso decidiram manter a nova jornada, pois constataram maior satisfação dos trabalhadores, diminuição de doenças e a manutenção ou até acréscimo nos rendimentos.

Então, a conjuntura é bastante favorável para o debate. No entanto, o Congresso não se mostra nenhum pouco favorável à aprovação de algo assim. E aqui está um dos perigos. A tramitação de qualquer projeto pode levar meses ou anos e isso acaba por causar um esfriamento na onda favorável à redução da jornada. É neste momento que qualquer proposta poderá receber, por exemplo, um adendo para que ocorra também a redução dos salários. Assim, para não me alongar muito, acredito que este debate não pode estar distante da luta redistributiva. É necessário que haja uma transição em que a participação da Renda do Trabalho seja maior que a Renda do Capital, revertendo a tendência da desigualdade social e de renda do capitalismo neoliberal. E, num segundo momento, quando as organizações de esquerda voltarem a ganhar força política, construir uma alternativa ao capitalismo.

IHU – Qual tem sido o atual papel do PT em atender as demandas dos trabalhadores? Que avanços concretos podem ser apontados? Por que o partido não ousa mais em termos de garantias aos trabalhadores?

Ricardo Festi – Tem sido difícil apontar o papel positivo de Lula 3 no tocante ao avanço de pautas trabalhistas. Podemos destacar uma tímida política de revalorização do salário mínimo. No entanto, todas as suas políticas sociais estão impedidas de avançar por conta do arcabouço fiscal que o próprio governo propôs. Já saiu um significativo corte de gastos que atenderá aos interesses do mercado financeiro e atingirá fortemente os mais pobres da população brasileira. É evidente que o cenário político para o governo Lula 3 é difícil, compondo uma frente ampla e tendo um congresso de maioria reacionária. Porém, em situações em que o governo poderia avançar, não tem feito isso. Foi o caso da regulação do trabalho nas plataformas digitais. Na prática, apresentaram um projeto de lei alinhado aos interesses das plataformas e que fornecia pouquíssimos ou quase nada de direitos aos trabalhadores. Além disso, criava um status diferente de trabalhador, o autônomo assalariado (na prática, o falso autônomo), e autorizava jornadas de 12 horas de trabalho para os motoristas de aplicativo. Parece que o próprio governo percebeu que este projeto foi um tiro no pé e o tem deixado esfriar no congresso.

IHU – Quais são os principais debates suscitados no livro que o senhor organiza com Jörg Nowak, As novas infraestruturas produtivas: digitalização do trabalho, e-logística e indústria 4.0?

Ricardo Festi – O livro conta com 14 capítulos, escrito por 27 autores e autoras de diferentes nacionalidades. Foi um esforço coletivo, coordenado por mim e meu colega Jörg Nowak, professor da UnB, em publicar textos originais sobre o mundo do trabalho, o capitalismo, o neoliberalismo e as formas de resistência. Ele atesta, por meio de pesquisas empíricas, este cenário que descrevi anteriormente, e avança para um diagnóstico sobre as consequências das novas formas de gestão do trabalho, tais como as tecnologias digitais, a e-logística e a indústria 4.0. Além disso, perpassa o livro uma preocupação em conhecer melhor quem são os novos sujeitos proletários da era digital e suas formas de expressão, percepção, organização e ação.

Capa de As novas infraestruturas produtivas. Digitalização do trabalho, e-logística e indústria 4.0 

IHU – Analisando as diferentes realidades do trabalho nas plataformas digitais ao redor do mundo, o capítulo assinado pelo senhor e colaboradores define que os trabalhadores brasileiros estão sob um regime de precarização estrutural. Pode nos explicar do que se trata esse conceito e como isso reforça o racismo?

Ricardo Festi – A precarização estrutural não é um conceito nosso. Ela já é parte da tradição da sociologia crítica brasileira. Em nosso texto, ressaltamos o fato de que a formação do mercado de trabalho brasileiro ocorreu com a manutenção de uma racionalidade do período da escravidão e, portanto, da não incorporação de parte significativa da população ativa no trabalho formal. Esta realidade é causada também pela própria divisão internacional do trabalho, que segue a lógica ampliada da reprodução do capital. Ou seja, como ensinou Ruy Mauro Marini, nos países da periferia do capitalismo o que ocorre é o rebaixamento da força de trabalho que terá, consequentemente, uma baixa remuneração e uma maior extração do mais valor que em relação aos países centrais. A consequência disso é não apenas uma precarização das condições de trabalho, mas sobretudo da vida.

A vida precária, como destaca Chico de Oliveira, é fundamental para a própria reprodução da força de trabalho. Isso explica por que razão há no Brasil a proliferação de atividades comerciais e de trabalho extremamente baratas, que além de alimentar a cultura de servir o outro, permite manter este barateamento da força de trabalho. Há alguns anos, esta racionalidade da precarização e da superexploração do trabalho tem crescido nos países centrais, sobretudo por meio da utilização dos migrantes. Assim, as plataformas digitais, apesar de se apresentarem como uma novidade da modernidade, mobilizam o que há mais arcaico das relações de trabalho. E uma tendência é certa: quanto maior a precarização das condições de trabalho maior é a racialização.

IHU – As plataformas vendem a promessa do trabalho flexível e autônomo. Contudo, a pesquisa do mesmo capítulo evidencia a existência de uma relação trabalhista de subordinação. Além disso, a mesma pesquisa mostra que os trabalhadores não se veem como classe trabalhadora e mais de 60% desejam continuar como autônomos. Como avalia essa percepção?

Ricardo Festi – Aqui estamos diante de outro problema clássico da classe trabalhadora brasileira, principalmente aquela que vive empregos de baixa qualificação e baixos salários e aquela que está na informalidade. Em geral, trata-se do mesmo grupo que transita entre formalidade e informalidade, sem grandes alterações em seus rendimentos. Nas pesquisas que realizamos por meio do GPTTS, encontramos nos discursos de entregadores e motoristas das plataformas digitais uma certa ambiguidade em suas pautas políticas.

A pesquisa está em andamento e agora passamos a analisar a trajetória de vida destes sujeitos e sua visão de mundo diante da vida cotidiana. Quando fazemos isso, vemos que as posições expressas nas surveys (que são sempre fotografias de um momento), isto é, de serem contrários a um contrato de trabalho no trabalho de plataformas digitais, está relacionado a sua experiência no trabalho e fora dele. Muitos já foram celetistas e estavam em péssimos empregos. Os relatos são muito parecidos com o que Rick Azevedo expressou em seu vídeo viral contra a jornada 6x1. Então, num cálculo imediato, preferem uma relação sem vínculo empregatício, pois entendem que este limitaria a jornada e, consequentemente, os seus ganhos. E estas pessoas precisam ganhar mais para poder sobreviver. Assim, o problema não está numa possível alienação destes sujeitos, mas na precarização estrutural.

Em nosso capítulo, preferimos usar “consciência em paralaxe”, pois a realidade aparece sob outra perspectiva, já que o ponto de observação desses trabalhadores também está alterado. Ele está em posição de não reconhecimento de sua condição de classe, o que acaba por resultar em uma percepção aparentemente ambígua e permeada de tensões sobre a realidade. Ainda que ele se veja como autônomo, na prática são subordinados e assalariados por definição. No entanto, o que eles estão entendendo por autônomo é esta condição de poder realizar altas jornadas de trabalho com certa flexibilidade. Mas eles têm consciência da precarização e da exploração a que estão submetidos e é nestas brechas que podemos encontrar espaços para construir a resistência e a luta.

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