21 Novembro 2025
"Diante das biotecnologias que podem alterar definitivamente a natureza humana ao aumentar sua inteligência e diminuir seu coração, precisamos urgentemente de uma governança mundial. Acredito que os reitores e conselhos acadêmicos das universidades de todo o mundo, os empresários mais responsáveis, os líderes das religiões mundiais e os intelectuais mais respeitados deveriam se coordenar entre si para que a voz do humano seja ouvida", escreve Vito Mancuso, teólogo italiano e ex-professor de teologia moderna na Faculdade de Filosofia da Universidade Vita-Salute San Raffaele, em artigo publicado por La Stampa, 14-11-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
"Estão brincando de ser Deus", dizemos assustados, referindo-nos àqueles que pretendem redesenhar o ser humano por meio de tecnologias cada vez mais invasivas, desta vez aplicadas não a máquinas e computadores, mas aos próprios corpos humanos. Na realidade, a humanidade sempre buscou ser Deus; não por acaso nos declaramos seus filhos, proclamados "à sua imagem e semelhança". Então, por que iria causar surpresa que continuemos na busca de emular o Pai Celestial? Desde sempre os filhos desejam ser como o pai, aliás, até mais fortes do que ele.
E além disso, me desculpem, que mal há em tentar prevenir a imensa variedade de doenças genéticas que ameaçam o desenvolvimento dos seres humanos no útero materno, naqueles momentos em que Deus Pai (para continuar com a metáfora de brincar de Deus) se distrai um pouco e, em vez do número correto de cromossomos, deixa colocar um a mais ou um a menos, gerando malformações irreversíveis nas crianças que nascem e dores terríveis nos pais?
E que mal há em prevenir a degeneração das células nervosas que leva um ser humano a viver seus últimos anos sem autoconsciência, entregue à demência, com o consequente indescritível tormento para seus familiares e um ódio profundo pela vida por seu zombeteiro destino? Perguntas retóricas, para as quais a única resposta sensata é que não existe mal nenhum; aliás, apenas um bem que vai ser muito bem-vindo.
A ciência deve cumprir seu ofício, que, como o próprio nome sugere, do latim “scire”, consiste em "conhecer": em incrementar cada vez mais o conhecimento. Portanto, pareceria que não há nada a temer e que deveríamos apenas acolher com satisfação as notícias veiculadas por este jornal nos últimos dias a respeito do projeto "Preventive" e as intenções (talvez já muito mais do que isso) de Altman, Armstrong, Musk e outros bilionários que visam criar "homens geneticamente modificados".
A humanidade, contudo, não é apenas conhecimento e ação; é também consciência e dúvida, ou seja, reflexão sobre o uso do conhecimento obtido, que pode ser utilizado de diversas maneiras: seja para o benefício de todos, seja para os privilégios de poucos; seja para curar doenças, seja para compilar um catálogo de características biológicas para pôr à venda; seja para o bem comum, seja para o lucro privado.
Porque o ponto que tendemos a esquecer, inebriados como estamos não pela seriedade do conhecimento científico, mas pela sensação de onipotência que a sociedade de consumo instila nas mentes para impulsioná-las a um consumo cada vez maior, é que o bem e o mal realmente existem e que nem tudo que pode ser feito é realmente lícito. Inebriados pela ideologia vencedora dos nossos dias, que poderíamos chamar de "cientificismo", esquecemos a lição de Kant de que existem três questões que fundamentam o ser humano: 1) O que posso saber? 2) O que devo fazer? 3) O que posso esperar?
Ao lado do conhecimento, existe também o dever; além do conhecimento, há também a consciência. O que significa que nós, além da ciência, precisamos de ética (e da espiritualidade, se levarmos a terceira questão a sério). A necessidade de ética torna-se totalmente evidente quando consideramos que uma coisa é usar as biotecnologias para combater as doenças genéticas, e outra bem diferente é selecionar a partir do menu eugênico a cor dos olhos, a altura e a inteligência de um filho a nascer (privando-o, assim, de sua diferença irredutível em relação aos pais, fundamento de sua originalidade e sua liberdade).
Em suma, embora seja verdade que, como resultado de tecnologias cada vez mais avançadas, entramos em um mundo completamente novo, é igualmente verdade que ainda estamos dentro do mesmo mundo de sempre que necessita de uma bússola do bem e do mal se quisermos preservar a liberdade.
A liberdade é um bem precioso, mas frágil; pode ser facilmente perdida e certamente desaparece onde não há imprevisibilidade e indeterminação. Sem essas dimensões, funcionaremos mais, mas sentiremos menos; sempre seremos vencedores, mas seremos privados do precioso sal propiciado pela derrota e pela capacidade de processá-la.
O físico Alessandro Vespignani declarou ontem a este jornal que, há anos, somos "inteligências aumentadas". Será mesmo verdade? A inteligência dos seres humanos realmente aumentou nos últimos anos? O aumento do desempenho tecnológico realmente levou a um aumento da inteligência individual? Não tenho certeza. A inteligência humana, de fato, não se caracteriza apenas pela resolução de problemas, mas também pela capacidade de formular problemas — ou seja, por sua dimensão crítica e questionadora.
Funcionar mais e resolver mais problemas não significa necessariamente ser mais inteligente. Isso sem levar em conta que essa "inteligência aumentada" até agora não conseguiu aumentar a felicidade e a serenidade; pelo contrário, levou a um aumento assustador da ansiedade de desempenho, para estarmos todos à altura dessa "inteligência aumentada" que exige que sejamos mais “smart” e mais “tech”.
Mas de que adianta esse aumento de inteligência se coincide com uma diminuição da felicidade? Isso me faz lembrar desta pergunta evangélica: "Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?" O conceito de alma expressa o núcleo vital de cada um de nós. Somos inteligência, claro, mas não só isso; também somos sentimento, paixão e a necessidade de sentido.
A inteligência nos oferece conhecimento, mas apenas o sentimento nos proporciona o significado. E cada um de nós é, em última análise, uma demanda de significado. Isso não pode se limitar a fazer e executar, porque também requer o não fazer, o contemplar e o calar, ou seja, o que nossos antepassados chamavam de otium e consideravam mais precioso do que o essencial negotium.
Vespignani também afirmou que programar o biológico com instrumentos digitais é "um processo inevitável", mas não devemos nos preocupar, pois o objetivo "não é projetar pessoas, mas reduzir o sofrimento e a mortalidade", ou seja, prevenção e cura. Ele acrescentou ainda que "o aprimoramento genético é uma promessa enganosa e uma deriva eticamente inaceitável" e que não se deve "abrir a porta para o mercado".
Belíssimas palavras que se traduziam na esperança de que existam regras claras para a atuação tecnológica no âmbito clínico e biológico, a fim de manter o mercado à distância e, consequentemente, na necessidade de uma sólida cooperação internacional, visto que a ciência e a tecnologia não conhecem fronteiras e nenhum país pode se autorregular sozinho.
Mas, o problema, qual é? É que a ciência avança a passos de gigante, enquanto o direito e a política, que deveriam fornecer as regulamentações necessárias se arrastam lentos como uma lesma. Portanto, é necessário levar em conta essa dupla velocidade, tomando a seguinte decisão: que sejam proibidas todas as aplicações da IA e das tecnologias na biologia humana até que as regulamentações sejam definidas de forma clara e transparente para o mundo inteiro. Não se trata de deter a ciência, mas de proteger a humanidade. Porque, se realmente queremos não “abrir a porta ao mercado”, quem pode realmente mantê-la fechada é apenas a política, como construtora do direito.
Diante das biotecnologias que podem alterar definitivamente a natureza humana ao aumentar sua inteligência e diminuir seu coração, precisamos urgentemente de uma governança mundial. Acredito que os reitores e conselhos acadêmicos das universidades de todo o mundo, os empresários mais responsáveis, os líderes das religiões mundiais e os intelectuais mais respeitados deveriam se coordenar entre si para que a voz do humano seja ouvida.
Primeiro, que sejam estabelecidas regras claras para salvaguardar a humanidade, depois se poderá realizar o trabalho biotecnológico no ser humano. Só então se poderá realmente intervir para derrotar as doenças sem cair no terrificante marketing eugênico. "Brincar de Deus" não é inerentemente errado, mas deve ser feito com seriedade, não brincando com o ser humano, mas servindo-o com a máxima responsabilidade.
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