17 Dezembro 2024
"Não por acaso Kant podia escrever um ensaio sobre a paz nos mesmos anos (À paz perpétua, de 1795) no qual ele formulava a hipótese de um mundo em que o poder se curvaria à justiça, à política e ao direito, e nessa base, saindo da lógica da força e entrando naquela do direito internacional, construir efetivamente a paz. O ponto firme da mente podia ser chamado de Deus, Razão, Socialismo, etc.: permanecia o fato de que a humanidade o possuía e, portanto, era capaz, a certa altura, de calar, ouvir, pensar e entrar em acordo. Havia a possibilidade de um exercício público da sabedoria. Um dizia 'em nome de Deus' ou 'em nome da Constituição' e todos ouviam", escreve Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 20-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sentimos que vivemos num mundo à beira do precipício e sentimos bem: estamos à beira do precipício. No entanto, não estamos ali por causa do que pensamos imediatamente, mas porque sumiu a sabedoria mundial. Com isso não pretendo minimizar os problemas de hoje na sua concretude como as mudanças climáticas, o futuro sombrio que a tecnologia nos entrega, a presença das guerras, o esgarçamento do tecido social, as migrações massivas e as consequentes reações identitárias. Estou ciente do fato de que as ogivas nucleares nos arsenais de alguns Estados são de tal número que destruiriam várias vezes este nosso pequeno planeta azul, maravilha absoluta na escuridão do espaço cósmico. Também sei bem que a humanidade nunca viveu tempos felizes, lembro-me de Kant no seu ensaio sobre o mal radical: “O mundo vai de mal a pior: eis um lamento tão antigo quanto a história." E continuava: “Segundo essa perspectiva, nós hoje (um hoje, porém, tão antigo quanto a história) vivemos no tempo extremo: o último dia e o fim do mundo estão às portas". Era 1793, mas ainda hoje cada um pode cantar com Mina “Ainda estou aqui” e com Vasco Rossi “Ainda estou aqui”.
Então, onde está o precipício? No fato de que antigamente havia um ponto firme ao qual apelar para começar a calar e depois talvez a raciocinar, e isso dava a esperança de poder sempre recomeçar.
Não por acaso Kant podia escrever um ensaio sobre a paz nos mesmos anos (Pela paz perpétua de 1795) no qual ele formulava a hipótese de um mundo em que o poder se curvaria à justiça, à política e ao direito, e nessa base, saindo da lógica da força e entrando naquela do direito internacional, construir efetivamente a paz. O ponto firme da mente podia ser chamado de Deus, Razão, Socialismo, etc.: permanecia o fato de que a humanidade o possuía e, portanto, era capaz, a certa altura, de calar, ouvir, pensar e entrar em acordo. Havia a possibilidade de um exercício público da sabedoria. Um dizia "em nome de Deus" ou "em nome da Constituição" e todos ouviam.
Hoje o ponto firme desapareceu e por isso digo que a sabedoria sumiu do mundo: entre nós não há mais nada em comum ao qual todos possamos apelar juntos. O resultado é que cada um está pronto para dizer ao outro o que ele tem que fazer, mas ninguém sabe mais escutar os motivos do outro. Os ecologistas dizem aos economistas e aos empresários o que têm de fazer, mas não ouvem as razões dos economistas e dos empresários; vice-versa, os economistas e os empresários visam ao lucro e como derrubar a concorrência sem se preocupar com o planeta e com as condições desastrosas denunciadas justamente pelos ecologistas. Os pacifistas dizem aos governos e às forças armadas o que devem e, acima de tudo, o que não devem fazer, mas não escutam as razões dos militares que ainda pedem aos governos mais armas para impedir a vitória da tirania; vice-versa, os militares não se importam muito com as vítimas civis, com a destruição progressiva de territórios inteiros e com o perigo crescente de uma guerra mundial, objeto da justa denúncia dos pacifistas e provavelmente último ato da história da humanidade.
A que pode levar a não escuta dos outros é demonstrado da forma mais trágica pelo conflito israelense-palestino. Tornou-se agora tão gangrenado que ser hoje a favor do Estado palestino significa querer a destruição do Estado de Israel e agremiar-se com aqueles que insultam a Brigada Judaica da Resistência e com aqueles que reprimem a liberdade das mulheres e dos homossexuais; e vice-versa ficar do lado de Israel significa negar a terras aos palestinos, alimentando o furto progressivo de território de parte daquele senhores geralmente chamados de colonos, mas cujo verdadeiro nome é ladrões (se não assassinos: lembrem-se sempre do assassinato de Ytzhaq Rabin em 4 de novembro de 1995, eu chorei), ou encontrar-se do lado do atual governo israelense, que é tão feroz contra os civis de Gaza que, se não é genocídio, falta pouco.
A isso leva a incapacidade de escutar as razões do outro por falta de um ponto firme comum e da sabedoria, e os exemplos poderiam ser multiplicados. Até o Papa prega por um lado paz no mundo, por outro não é capaz de praticá-la realmente na sua casa e continua a atacar os cardeais, a Cúria e o padre Georg.
Pois bem, dentro desse quadro bastante deprimente, de vez em quando nos perguntamos o que podemos fazer. Minha resposta é: tentar compreender exercendo a sabedoria e equanimidade. O exercício da sabedoria consiste em primeiro lugar em desejá-la, para fazê-la retornar pelo menos nos nossos corações. E quando a sabedoria retorna, o primeiro dom que traz é a equanimidade, ou seja, saber escutar as razões do outro.
Aristóteles ensinava o "caminho do meio" como critério para conduzir a mente porque é encontrando o centro entre duas polaridades que se obtêm as virtudes, entre as quais se destaca a sabedoria. O mesmo ensinavam Buda e Confúcio. É a solução para todos os problemas? Claro que não, mas nunca se deveria esquecer o preceito posto por Hipócrates como fundamento da medicina: “Primum non nocere”,
"Primeiro não prejudicar." Às vezes, querendo curar, se piora a situação, enquanto se deveria reconhecer que não se pode curar, mas apenas cuidar. Metáforas à parte: qual é o sentido de ser pacifista invocando a paz, se for feito com palavras violentas cheias de ódio que alimentam as raízes da guerra? De que adianta pedir a criação de um Estado para um povo, se é feito aspirando a destruição de um estado por um outro povo? Se não se entende como servir efetivamente a paz, é muito melhor abster-se de tomar partido. A bandeira da paz tem as cores do arco-íris significando que quer conter todos; se se tornar apenas de uma parte, fracassa.
Para outros conflitos é mais fácil entender porque fica claro quem agride e quem é agredido, quem luta para invadir e quem para expulsar o invasor, e então se toma posição apoiando quem se defende contra a tirania. É claro que me refiro à guerra de defesa da Ucrânia, a propósito da qual desde o início não tive dúvidas quanto à oportunidade de enviar ajudas, inclusive militares. Mas por que então, quando ouço o presidente francês falar sobre enviar soldados, sinto um claro não na minha mente? Medo? Sim, acho que é medo, e medo é algo muito sério, é a primeira das seis emoções universais, se deve sempre refletir sabiamente sobre ele. Hans Jonas chegou a escrever sobre a "heurística do medo": queria dizer que o medo, se for reconhecido e não negado (porque ninguém gosta de admitir que tem), pode ajudar a encontrar. Heurística significa isto: método de descoberta ("Eureka!" gritou Arquimedes após a famosa descoberta).
Em suma, quando se tem o privilégio de não estar na briga, é uma questão de superar a tentação de intrometer-se e deixar-se guiar por estas palavras de Spinoza: “procurei escrupulosamente não rir, não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las”.
A paz começa na mente que estuda. Não pode haver paz sem estudo. E a partir do estudo da situação aparecerá a oportunidade de agir num momento e não agir em outro; uma vez será certo ceder, outra vez será correto resistir. A sabedoria, exercício prático de conhecimento, é a arte do discernimento.
Naturalmente, o meu programa não é um programa político, porque não se dirige a muitos, muito menos aos povos, mas ao indivíduo na sua solidão. Etty Hillesum escreveu em Amsterdã durante a ocupação nazista: “Afinal, o nosso único dever moral é separar dentro de nós mesmos vastas áreas de tranquilidade, de uma tranquilidade cada vez maior”. Essas palavras de uma jovem mulher judia, escritas antes de ser deportada para Auschwitz, ensinam-nos ainda hoje que o primeiro ato a favor da paz se realiza na mente: para libertá-la do ódio e estudar com equanimidade, recolhendo a sabedoria que daí advém. Quem o faz entende que se é bom manifestar-se pela paz, é ainda mais importante “ser paz”.
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Só a sabedoria pode levar à paz. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU