22 Outubro 2016
"O verdadeiro problema não é o silêncio de Deus, mas a não escuta do ser humano, do crente. O Senhor não se esconde para nos pôr à prova, para testar se O amamos ou não: quem conhece o sofrimento, a exaustão da dúvida, não pode pensar que seja Deus quem queira isso! A noite, a escuridão da fé, o silêncio de Deus são apenas aspectos do enigma do mal: somos criaturas frágeis e capazes de pecar, e o nosso pecado começa justamente com a não escuta de Deus."
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal L'Osservatore Romano, 21-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Diante dos totalitarismos e dos trágicos acontecimentos vividos no século passado, mas também diante de eventos desumanos que se renovam nos nossos dias, parece surgir quase espontaneamente a pergunta: "Onde está Deus? Por que não intervém?". Talvez, nas nossas vidas, nós também conheçamos horas de prova em que nos fazemos interrogações análogas.
Às vezes, essas perguntas também aparecem nas biografias de homens e mulheres que acusam atravessar uma noite escura, uma noite em que falta a luz, na qual Deus parece ausente e, principalmente, taciturno, mudo, como se tivesse posto entre si e o crente uma espessa nuvem que impede todo tipo de relação, até mesmo a da palavra. Deus se cala, não se faz sentir, obscurece o Seu rosto... e o crente geme, sofre essa ausência de Deus, até a tentação do desespero, de ceder ao nada que faz dizer no coração: "Deus não existe, não há nada, nada vale a pena".
Hoje, além disso, os crentes cristãos conhecem, pelo menos um pouco, a tradição judaica que define Deus mesmo como "El mistatter", "Deus que se esconde" (Is 45, 15); conhecem os gritos, relatados por Elie Wiesel, daqueles que, no fogo da Shoá, ousavam a pergunta: "Onde está Deus?". Assim como se tornou fácil, fácil demais, dizer, como muitas vezes também aflora nos lábios de cristãos comuns: "Deus se cala, Deus não me fala, Deus me tortura ao não me responder, Deus está mudo".
Também se registra uma certa tendência a culpar Deus por parte de cristãos que, lendo os escritos em que se descrevem as crises espirituais da Madre Teresa de Calcutá ou de outras testemunhas da fé, se sentem autorizados a reivindicar as mesmas experiências e, portanto, a afirmar o silêncio de Deus.
De acordo com alguns chamados teólogos, além disso, esse silêncio seria desejado justamente por Deus e, também por Deus, feito sofrer ao crente em vista da sua purificação, de um caminho de fé mais merecedor, de um verdadeiro jogo de amor entre amante e amado, que se alimenta de escondimento e manifestação.
Há quem chegue a se pensar partícipe da noite escura de Jesus às vésperas da Sua paixão, a noite da "agonia" (Lc 22, 44), da Sua "alma triste até a morte" (Mc 14, 34; Mt 26, 38; cf. Sl 42, 6.12; 43, 5), ou mesmo partícipe da hora da cruz e o grito: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Mc 15, 34; Mt 27, 46; Sl 22, 2).
Eu confesso: esses "testemunhos" ou "confidências-confissões" me irritam muito e me parecem contemplações narcisistas que evidenciam protagonismos perigosos, não só para a fé, mas também para as relações humanas que podem surgir de tais pretensas experiências espirituais. E, então, eu ouso pronunciar algumas palavras em voz baixa, despretensiosas, porque, no máximo, são palavras pronunciadas kivjaqol, diriam os judeus, "se assim se pode dizer".
Acima de tudo, pode-se dizer, como fez João Paulo II na audiência geral do dia 11 de dezembro de 2002, que "Deus está em silêncio, não Se revela mais e parece ter Se fechado no Seu céu, quase enojado com o agir da humanidade"? Pode-se compreender esse grito de Wojtyla como literário, como um grito enfático a ser lido na sua intenção, mas certamente não pode ser entendido como afirmação de que Deus já teria se retirado de cena. É verdade que se pode recorrer a textos presentes na Bíblia, imbuídos do mesmo sabor, do mesmo desafogo, do mesmo protesto. Bastaria ler Jeremias, o profeta ministro da "condenação de Deus" sobre o seu povo (não por acaso, naquela ocasião, o papa estava comentando Jer 14, 17-21), para nos encontrarmos diante de expressões semelhantes, senão até mais fortes.
O Senhor me conduziu e me fez andar
nas trevas e não na luz...
Ele foi para mim como urso de tocaia,
um leão de emboscada…
Fez-me dar com os dentes numa pedra,
estendeu-me na poeira (Lm 3, 2.10.16).
Assim diz o Senhor: "Não interceda por este povo. Não faça por ele nenhuma súplica ou prece. Quando eles clamarem por mim na hora da desgraça, eu não os ouvirei" (Jr 11, 14; cf. 7, 16).
Mas essas expressões passionais de Jeremias pertencem ao gênero literário do riv, da contestação, são expressões hiperbólicas próprias da linguagem amorosa na hora da traição e da ruptura das núpcias: linguagem antropomórfica emprestada a Deus para narrar o Seu amor ciumento, a Sua paixão, mas não afirmações sobre Deus, sobre a Sua presença e sobre a Sua relação conosco! Se Deus se cala ou, melhor, parece calar e fazer silêncio, é apenas porque não há ninguém que O escute e O interrogue, como observado com fineza por Massimo Cacciari.
Por outro lado, uma grande lição já tinha sido dada por Primo Levi, ele, não crente, que não se perguntava como Elie Wiesel, crente, onde estava Deus em Auschwitz, mas, ao contrário, onde estava o ser humano: onde foi parar a humanização na Shoá? Como o ser humano pôde se tornar torturador e aniquilar a tal ponto o outro, o ser humano, seu irmão?
Não quero defender Deus, quero apenas que Ele não seja acusado para que as pessoas se defendam a si mesmas. Para a pessoa comum, simples, que às vezes afirma sofrer o silêncio de Deus, não ouvir Deus presente, que acusa Deus de permanecer distante e mudo, com muito respeito pela sua dor e sem nenhum julgamento, penso em perguntar: "Mas talvez não seria você o surdo, aquele que não escuta?".
Eu não consigo pensar que Deus seja capaz de interromper o Seu amor, de querer ser mudo ou estar escondido para fazer sofrer o crente que O invoca e que está na provação. É claro, no "cântico do mar", a expressão: "Quem é como tu entre os deuses, Senhor?" (Mi kamokah ba-’elim YHWH: Ex 15, 11) também foi lida por alguns rabinos como: "Quem é como tu entre os mudos, Senhor?" (Mi kamokah ba-illelim YHWH); mas isso apenas quer dizer que Deus, mesmo quando vê o sofrimento, a provação do Seu povo ou do crente individual, não faz nada e se cala, não porque seja indiferente ou esteja irado, mas porque respeita o mundo, a história, respeita a grandeza e a fragilidade dos humanos.
Se há uma voz de Deus – não o esqueçamos – é "voz de silêncio sutil, contida" (qol demamah daqqah: 1Re 19, 12), porque Deus fala também no silêncio, basta saber escutar o silêncio. Se Deus realmente permanecesse mudo, então o crente cairia logo na fossa, como diz o salmista: "Se tu permaneceres mudo, cairei na cova!" (Sl 28, 1).
O verdadeiro problema, portanto, não é o silêncio de Deus, mas a não escuta do ser humano, do crente. O Senhor não se esconde para nos pôr à prova, para testar se O amamos ou não: quem conhece o sofrimento, a exaustão da dúvida, não pode pensar que seja Deus quem queira isso! A noite, a escuridão da fé, o silêncio de Deus são apenas aspectos do enigma do mal: somos criaturas frágeis e capazes de pecar, e o nosso pecado começa justamente com a não escuta de Deus...
É por isso que a provação, o sofrimento pode ser sem Deus: esse é apenas um agravamento do mal, da provação, mas, assim como é verdade que Deus não quer o nosso sofrimento, assim também Ele nunca quereria agravá-lo com o Seu silêncio e a Sua ausência. O nosso caminho de homens e mulheres é um caminho, às vezes, na noite profunda, às vezes na névoa, porque não sabemos ver bem, não sabemos escutar bem. O silêncio de Deus acolhido como nossa não escuta, como nossa surdez, faz parte do nosso caminho árduo, da tarefa de viver como humanos e como cristãos.
A esse propósito, na espiritualidade católica do segundo milênio, foram feitas inteligentes considerações sobre algumas situações em que o crente pode se encontrar, situações de escuridão, de não percepção da presença de Deus, de tristeza que parece perder toda esperança de socorro. Essas situações foram encerradas sob a categoria de "desolação espiritual", condição que aqueles que têm uma vida espiritual, mais cedo ou mais tarde, conhecem, como provação forte ou fraca, breve ou prolongada.
Na desolação, quando Deus parece distante, parece se calar, e o sofrimento parece nos oprimir, é preciso apenas manter viva a relação com Ele, através do gemido, do grito, do pranto, às vezes até com palavras que invocam a morte. Decisivo na vida do cristão é continuar batendo, pedindo, rezando ao Senhor, não ter medo de pôr toda a nossa fraqueza diante dele, tentando permanecer firme na adesão a Ele.
Jesus, mesmo quando não escutou a voz do Pai – que, aliás, tinha lhe falado no batismo e na transfiguração –, dizendo-lhe: "Por que me abandonaste?", nunca abriu mão da fidelidade ao Pai, mesmo quando parecia que Ele o tinha abandonado. Sobre essa desolação espiritual, quem falou várias vezes foi o Papa Francisco, discípulo de Inácio de Loyola. São estas as suas últimas e recentes palavras a respeito, nas quais fornece um diagnóstico e uma terapia da desolação, indicando também o comportamento que os irmãos e as irmãs em Cristo devem ter em relação àqueles que conhecem tal provação:
"A desolação espiritual nos faz sentir como se tivéssemos a alma esmagada, que não quer viver. 'Melhor é a morte!', é o desafogo de Jó; melhor morrer do que viver assim... A liturgia de hoje nos mostra como é preciso se comportar com essa desolação espiritual, quando estamos mornos, lá embaixo, sem esperança. Uma ajuda vem do Salmo responsorial: 'Chegue até ti a minha oração, Senhor'. Portanto, a primeira coisa a fazer é rezar. Oração forte, forte, forte... O Salmo 87 (88) que recitamos juntos nos ensina como rezar no momento da desolação espiritual, da escuridão interior, quando as coisas não vão bem, e a tristeza entra tão fortemente no coração. 'Senhor, Deus da minha salvação, diante de Ti eu grito dia e noite': as palavras são fortes! Em suma, é uma oração que consiste em bater na porta, mas com força: 'Senhor, eu estou repleto de infortúnios. A minha vida está à beira dos infernos. Estou contado entre aqueles que descem à cova, sou como um homem já sem forças'... Diante de uma pessoa que está nessa situação, as palavras podem fazer mal. É preciso apenas tocá-la, estar perto, de modo que ela sinta a proximidade, e dizer aquilo que ela pede, mas não fazer discursos... Quando uma pessoa sofre, quando está na desolação espiritual, deve-se falar o mínimo possível e deve-se ajudar com o silêncio, a proximidade, as carícias, a sua oração diante do Pai... Que o Senhor nos ajude: primeiro, a reconhecer em nós os momentos da desolação espiritual, quando estamos na escuridão, sem esperança, e a nos perguntar por que; segundo, a rezar como hoje a liturgia nos ensina; terceiro, quando eu me aproximo de uma pessoa que sofre, tanto por causa de uma doença, quanto por qualquer outra circunstância, mas que está justamente na desolação: fazer silêncio. Um silêncio com tanto amor, proximidade, carícias. E não fazer discursos que não ajudam, mas fazem mal" (Meditação matinal na capela da Domus Sanctae Marthae, 27-09-2016).
Avançando nos anos e navegando no mar da vida, a todos é dado a conhecer tempestades e naufrágios. Então, a cada um de nós é espontâneo dizer, como fizeram os discípulos: "Senhor, por que dormes? Não te importa que eu pereça? Onde estás? Por que Tu te calas?" (cf. Sl 44, 24; Mc 4, 38 e par)?. Mas mesmo que na linguagem de uma relação amorosa usemos essas expressões sob a insígnia do riv, que talvez tenham o sabor de blasfêmia, não podemos pensar que Deus tem a possibilidade de interromper o Seu amor, de fechar para sempre uma relação, de ver o ser humano sofrer e de Se comprazer com isso.
O mal, sob qualquer forma de sofrimento, não vem de Deus (cf. Tg 1, 13-15)! O amor de Deus não deve ser merecido, e nenhum de nós pode pensar que tem em si mesmo um amor que Deus nega, detesta ou não vê, porque o Seu amor é maior do que o nosso coração e o nosso amor (cf. 1Jo 3 , 20).
Gostaria de concluir estas minhas reflexões citando um famoso texto anônimo:
"Sonhei que eu caminhava à beira-mar com o meu Senhor e via novamente na tela do céu todos os dias da minha vida passada. E, para cada dia passado, apareciam na areia quatro pegadas, as minhas e as do Senhor. Mas, em alguns trechos, vi apenas duas pegadas, justamente nos dias mais difíceis da minha vida. Então eu disse: 'Senhor, eu escolhi viver contigo, e Tu me prometeste que sempre estarias comigo. Por que me deixaste sozinho justamente nos momentos mais difíceis?'. E Ele me respondeu: 'Filho, tu sabes que eu te amo e nunca te abandonei: os dias em que tu vês apenas duas pegadas na areia são justamente aqueles em que eu te carreguei nos braços'."
Sim, o Senhor sempre abre o caminho para nós e, justamente nas horas mais escuras, é Ele quem nos toma nos braços!
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As eternas perguntas da vida terrena: "Onde está Deus? Onde está o ser humano?". Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU