O Gene Drives, uma nova forma de engenharia e manipulação genética, tem causado preocupação entre cientistas e ambientalistas que há décadas questionam as implicações dos Organismos Geneticamente Modificados – OGMs para a saúde humana e o meio ambiente em geral. A nova tecnologia permite a manipulação de genes de seres vivos a partir de uma técnica de “corta e cola”, que possibilita editar características genéticas sem necessariamente incluir um gene novo no gene manipulado.
De acordo com Naiara Bittencourt, o principal problema do Gene Drives é que ele “realmente conduz e direciona a mutação para todos os descendentes, alterando as leis da genética em que se recebem as características de cada um dos genitores. As alterações são passadas para a integralidade dos descendentes. Pode haver manipulações inclusive que forcem apenas o nascimento de machos, exterminando a médio prazo algumas espécies de rápida reprodução. A mutação é transmitida para os descendentes, os quais também substituirão o alelo do outro genitor, garantindo a transmissão da característica desejada de geração em geração”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Naiara informa que a tecnologia Gene Drives está sendo utilizada para manipular mosquitos na África, com a justificativa de erradicar a malária no país africano Burkina Faso. “Sabemos de algumas iniciativas bastante avançadas e perigosas, como é o caso do projeto ‘Target malária’, que visa a implementação de mosquitos Gene Drives numa tentativa de erradicar a malária em Burkina Faso, na África. O projeto tem sofrido inúmeras críticas de organizações e cientistas internacionais, por não sabermos exatamente os efeitos e resultados dessas alterações, especialmente em contato com o ser humano. A África é usada como ‘campo de testes’, com o discurso falso de que essas alterações seriam as únicas que resolveriam o problema”, diz.
Naiara ressalta ainda que os argumentos dos defensores das tecnologias de edição genética “são sempre os mesmos, assim como vimos com os transgênicos: controlar espécies, equilíbrio ecológico, redução de agrotóxicos ou pesticidas, erradicação da fome”. Entretanto, afirma, “todas essas promessas não foram cumpridas. Em duas décadas de liberação de OGMs no Brasil e no mundo, vimos, na verdade, o aumento do uso de agrotóxicos maior que o de área plantada, a modificação associada à aplicação de venenos, a utilização disso em commodities e não em alimentos. Isto é, eles criam o problema e fornecem a solução”.
Nesta entrevista, ela também critica a Resolução Normativa 16/2018 da CTNBio, que propõe a regulamentação da técnica Gene Drives no Brasil. “Temos que considerar o Gene Drives como Organismos Geneticamente Modificados, mas com mais precauções e preocupações. A RN 16/2018 da CTNBio faz o inverso, busca desregular. Não é porque há uma brecha sem sentido na Lei de Biossegurança, elaborada quando não havia o desenvolvimento real dessas técnicas, que o Gene Drives não seja OGM. A diferença dos transgênicos é que não há inserção de material genético de espécie diversa ou bactéria, por exemplo. A modificação é realizada como um ‘hackeamento genético’, que transforma a própria fita genética, copiando, colando e editando características, de forma a manipular esses seres”, menciona.
Naiara Bittencourt (Foto: Lizely Borges)
Naiara Bittencourt é mestra e doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é advogada na Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos, no eixo de Biodiversidade e Soberania Alimentar. Também integra o Núcleo de Estudos Filosóficos - Nefil do PPGD/UFPR.
IHU On-Line - O que é o Gene Drives e como ele permite novas manipulações genéticas na agricultura?
Naiara Bittencourt - O Gene Drives é um exemplo de uma das novas formas de engenharia e manipulação genética. Diferente dos transgênicos, esses organismos podem ser cisgênicos, isto é, é possível manipular e alterar a sequência de alelos, com recombinações.
Segundo o item 7 da Resolução Normativa 16/2018 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, são “alelos com herança autônoma e potencial de recombinação com possibilidade de alterar toda uma população (direcionamento gênico, do inglês: Gene Drives)”.
A estratégia consiste em introduzir, entre outras, o sistema “CRISPR/Cas9” para efetuar a mutação desejada em um cromossomo. A enzima CRISPR/Cas9 rompe o cromossomo do par e copia a mutação introduzida.
A grande questão é que o Gene Drives realmente conduz e direciona a mutação para todos os descendentes, alterando as leis da genética em que se recebem as características de cada um dos genitores. As alterações são passadas para a integralidade dos descendentes. Pode haver manipulações inclusive que forcem apenas o nascimento de machos, exterminando a médio prazo algumas espécies de rápida reprodução. A mutação é transmitida para os descendentes, os quais também substituirão o alelo do outro genitor, garantindo a transmissão da característica desejada de geração em geração.
Se dispersado no ambiente sem os mecanismos de controle e segurança, há possibilidades perigosas da unidade de gene disseminar-se irrefreavelmente, o que poderia tornar o ecossistema e a tecnologia desequilibrados, inclusive exterminando espécies inteiras.
IHU On-Line - Como estão sendo feitas as pesquisas com Gene Drives no Brasil e no mundo?
Naiara Bittencourt - As pesquisas em geral não são muito abertas. Sabemos de algumas iniciativas bastante avançadas e perigosas, como é o caso do projeto “Target malária”, que visa a implementação de mosquitos Gene Drives numa tentativa de erradicar a malária em Burkina Faso, na África. O projeto tem sofrido inúmeras críticas de organizações e cientistas internacionais, por não sabermos exatamente os efeitos e resultados dessas alterações, especialmente em contato com o ser humano. A África é usada como “campo de testes”, com o discurso falso de que essas alterações seriam as únicas que resolveriam o problema. Seguramente tais “testes” não seriam implementados dessa forma nos países de capitalismo central, como os países da União Europeia ou Estados Unidos.
IHU On-Line - Segundo uma reportagem publicada pela Terra de Direitos, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio aprovou, em janeiro de 2018, a Resolução Normativa 16/2018, que estabelece requisitos para a definição de novas biotecnologias com engenharia genética que diferem das técnicas utilizadas em transgênicos. Essa resolução determina algo específico em relação ao Gene Drives?
Naiara Bittencourt - Sim, a RN 16/2018 permite, na prática, que a própria comissão decida caso a caso se as novas técnicas de manipulação genética são ou não consideradas Organismos Geneticamente Modificados - OGM, por uma brecha que existe na atual Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005).
A Lei, no parágrafo primeiro do art. 3º, exclui da categoria de OGMs a introdução direta em organismos que não utilizem moléculas de ADN/ARN recombinante, por meio de interpretação restritiva e fragmentada. Assim, novas tecnologias de modificação genética sem recombinação, como é a técnica de edição de genomas com a enzima bacteriana CRISPR/Cas9, podem ficar sem qualquer regulação. Isto é, a comissão decide que não são OGMs, conforme o texto legal, e essas manipulações podem ser liberadas sem qualquer identificação, rotulagem ou análise de riscos. É uma resolução que abre brechas para a desregulamentação.
IHU On-Line - É possível estimar quantas empresas de biologia sintética existem no Brasil e realizam testes com técnicas de manipulação genética na agricultura?
Naiara Bittencourt - Esse dado é complexo. A biologia sintética e a manipulação genética podem se combinar, mas são processos distintos. Muitas pesquisas são sigilosas, em razão da propriedade intelectual. Inclusive, alguns processos de tramitação para análise dessas tecnologias pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio também são sigilosos pelo mesmo motivo. Muitas universidades e instituições privadas também fazem pesquisas que nem sabemos. Desde a aprovação da resolução já foram solicitados alguns processos de liberação de produtos que utilizam novas tecnologias de manipulação genética, como levedura para produção de etanol, microrganismos e uma variedade de milho. Os resumos das deliberações disponibilizadas são sintéticos, com poucas informações disponibilizadas no site eletrônico da CTNBio, o que limita o direito à informação para a população e o monitoramento técnico e social.
IHU On-Line - Por que grandes corporações do mercado de commodities estão investindo em Gene Drives?
Naiara Bittencourt - As grandes corporações sempre estão investindo em novas formas de garantir lucro e controle da cadeia produtiva. Alguns transgênicos já se mostram falidos em inúmeras pesquisas; já há variedades que perderam função. A maior parte das sementes transgênicas é modificada para resistir a herbicidas ou insetos. Se com os transgênicos já se tinha a dependência do agricultor ao pacote tecnológico (transgênico, agrotóxico, insumos e maquinário), essas novas manipulações genéticas podem garantir ainda maior controle e poder pela cadeia produtiva, seja pelo extermínio de espécies ou pelo domínio tecnológico.
Não podemos dissociar o investimento dessas grandes corporações do lucro e do poder, porque não há nenhuma necessidade humana que indique que precisamos desse tipo de alteração nos ecossistemas. Os efeitos podem ser irreversíveis para todos nós.
IHU On-Line - Um vídeo divulgado recentemente pela Terra de Direitos afirma que o exército norte-americano e a Fundação Bill Gates têm investido em pesquisas sobre Gene Drives. Em que consistem esses investimentos e qual é o interesse desses grupos em manipulações genéticas para a agricultura?
Naiara Bittencourt - Conforme levantamento de pesquisadores da sociedade civil de vários países de todo o mundo, o investimento da agência de pesquisa do exército estadunidense (Darpa) e da Fundação Gates ultrapassam 250 milhões de dólares, o que inclui pesquisa e propaganda. Há um arquivo online aberto com esses documentos.
Bom, os interesses não são explícitos, mas por que o exército dos EUA estaria interessado no desenvolvimento dessas tecnologias? Uma boa razão parece ser que essas tecnologias podem ser usadas como armas bélicas, extinguindo ou modificando espécies que podem acabar com a soberania alimentar de um país ou mesmo criar monstros modificados direcionados para alguma finalidade.
IHU On-Line - Em que culturas ou sementes essa técnica já tem sido adotada? Sementes oriundas de Gene Drives já estão sendo comercializadas em alguns países?
Naiara Bittencourt - Por enquanto o que está mais avançado são os mosquitos Gene Drives na África, especialmente na Burkina Faso. Ativistas locais e pesquisadores mostram resistência, uma vez que os impactos desses mosquitos ainda são desconhecidos. A possibilidade de uma manipulação errada ou com efeitos “fora do alvo” (off target effects) é grande. O que acontece se o “humano Deus” erra nessas técnicas de engenharia genética? O que podem causar esses mosquitos? E qual será a interação com as pessoas? Você exporia seu corpo a esses mosquitos? Provavelmente os pesquisadores do Imperial College de Londres, que estão desenvolvendo o mosquito Gene Drives, não exporiam o próprio corpo. Por que experimentar essa política de testes na África? E ainda apresentada à população como a única hipótese de salvação da malária. É uma manipulação genética e uma manipulação de comunicação. Na Nova Zelândia tentaram implementar um rato Gene Drives, que no país é uma praga. Mas as autoridades indígenas e a população local afastaram essa possibilidade.
IHU On-Line - Quais são as semelhanças e diferenças entre o Gene Drives e os Organismos Geneticamente Modificados?
Naiara Bittencourt - Temos que considerar o Gene Drives como Organismos Geneticamente Modificados, mas com mais precauções e preocupações. A RN 16/2018 da CTNBio faz o inverso, busca desregular. Não é porque há uma brecha sem sentido na Lei de Biossegurança, elaborada quando não havia o desenvolvimento real dessas técnicas, que o Gene Drives não seja OGM. A diferença dos transgênicos é que não há inserção de material genético de espécie diversa ou bactéria, por exemplo. A modificação é realizada como um “hackeamento genético”, que transforma a própria fita genética, copiando, colando e editando características, de forma a manipular esses seres.
IHU On-Line - Quais são os argumentos favoráveis e contrários ao Gene Drives?
Naiara Bittencourt - Os argumentos são sempre os mesmos, assim como vimos com os transgênicos: controlar espécies, equilíbrio ecológico, redução de agrotóxicos ou pesticidas, erradicação da fome. Todas essas promessas não foram cumpridas. Em duas décadas de liberação de OGMs no Brasil e no mundo, vimos, na verdade, o aumento do uso de agrotóxicos maior que o de área plantada, a modificação associada à aplicação de venenos, a utilização disso em commodities e não em alimentos. Isto é, eles criam o problema e fornecem a solução. Nesse momento não há nada que indique que precisamos de alterações genéticas: todos os problemas têm que ser resolvidos em sua raiz, qual seja a distribuição de alimentos, o desenvolvimento de produções realmente sustentáveis, como a agroecologia. Essas falsas soluções somente implicam mais controle, mais concentração de renda, terras e de tecnologia. E sobretudo, implicam dependência e imperialismo dos países e corporações que detêm essas tecnologias de extermínio.
IHU On-Line - Quais são os países que defendem o Gene Drives e quais se posicionam contrários ao uso dessa técnica?
Naiara Bittencourt - Em 2018 ocorreu no Egito a 14ª Conferência das Partes da Convenção da Diversidade Biológica - COP 14. A Convenção é assinada por 196 países e ratificada por 168 destes. É um acordo internacional no âmbito da Organização das Nações Unidas - ONU que possui três objetivos centrais: a) a conservação da diversidade biológica, b) a utilização sustentável de seus componentes e c) a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização de recursos genéticos. Nesse encontro, os países se posicionaram sobre o Gene Drives. Egito, Tailândia, Bolívia e El Salvador, por exemplo, se posicionaram pela abstenção da utilização dos condutores genéticos enquanto houver incertezas nas pesquisas sobre os riscos. Já o Brasil, os países africanos, a Nova Zelândia, Malásia, Índia, Indonésia, Argentina, Peru, Canadá, Panamá e Suíça sustentaram a posição de utilização dessas novas tecnologias com precaução e análise caso a caso, sendo essa a posição consolidada no documento oficial.
O documento final representa vitórias parciais dos movimentos sociais e organizações atuantes no tema, uma vez que estimula as partes a aplicar o princípio da precaução, tendo em vista as incertezas sobre os impulsores genéticos (Gene Drives), considerando a liberação no meio ambiente somente quando houver avaliação de riscos com fundamentos sólidos e caso a caso, que existam medidas de gestão de riscos para evitar efeitos adversos e que se busque o consentimento livre, prévio e informado com participação dos indígenas e comunidades que podem ser afetados.
IHU On-Line - Os defensores do uso de novas biotecnologias afirmam que o uso deve prestar atenção ao princípio da precaução previsto no Protocolo de Cartagena. Pode nos explicar o que é o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança e quais suas recomendações acerca do uso de novas biotecnologias?
Naiara Bittencourt - O Protocolo de Cartagena é um acordo de 2003 que complementa a Convenção da Diversidade Biológica e se refere à proteção da biodiversidade dos riscos dos organismos geneticamente modificados. Um dos pilares do Protocolo de Cartagena é o Princípio da Precaução, disposto em seu artigo 15. O princípio da precaução quer dizer que “quando houver ameaça de dano grave ou irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deve ser utilizada como motivo para o adiamento de medidas eficazes em termos de custos para prevenir a degradação ambiental”. Este princípio é especialmente aplicado nos procedimentos de análises de riscos de OGMs, de importações, identificações e rotulagens e movimentos transfronteiriços desses organismos. Assim, o princípio da precaução e prevenção caminham juntos.
IHU On-Line - Uma das críticas feitas à manipulação genética na agricultura é que ela gera um risco de perda da capacidade genética das espécies e do desenvolvimento de superpragas. Quais são as evidências disso?
Naiara Bittencourt - Há alguns estudos científicos publicados. Recentemente uma associação de pesquisadores comprometidos com o desenvolvimento sustentável da União Europeia (European Network of Scientists for Social and Environmental Responsibility – ENSSER) publicou um dossiê com algumas pesquisas chamado “Gene Drives: A report on their science, applications, social aspects, ethics and regulations”. Mas muitos alertas se referem exatamente à precaução. Não sabemos qual é o desequilíbrio que os organismos Gene Drives podem causar nos ecossistemas ou na interação com outras espécies, inclusive conosco, seres humanos. Mas se pode manipular espécies para que sejam extintas, forçando apenas o nascimento de machos, ou desenvolver características que sejam perigosas.
As superpragas podem ocorrer de várias formas, seja nos próprios organismos manipulados que podem ser usados em guerras, seja, por exemplo, na própria dinâmica da natureza, que se desenvolve conforme as interações biológicas. As espécies na natureza podem se desenvolver para cada vez se adaptarem a esses organismos modificados. Há alguns agricultores que relatam, por exemplo, que algumas variedades transgênicas resistentes a insetos não funcionam mais, porque os próprios insetos se adaptaram ou novas pragas chegaram e afetaram o ecossistema. É uma cadeia complexa, pode-se gerar um desequilíbrio complexo.
IHU On-Line - Aqueles que são contrários aos transgênicos, em geral, argumentam que ainda não sabemos quais os riscos que os organismos geneticamente modificados podem causar à saúde e ao meio ambiente. Pode citar alguns? Já é possível estimar que impactos o Gene Drives pode gerar à saúde humana ou ao meio ambiente em geral?
Naiara Bittencourt - Claro, o princípio da precaução ainda impera. Mas também diversas pesquisas já demonstram os danos causados pelos transgênicos. Os impactos vão desde danos à saúde, com os transgênicos associados aos agrotóxicos, já que das 90 espécies de plantas liberadas comercialmente no Brasil, 70 são modificadas para tolerar algum herbicida.
Mas também os danos culturais e ambientais. É comum vermos agricultores, camponeses, povos indígenas ou comunidades tradicionais denunciando as contaminações de variedades ancestrais de sementes crioulas de milho. O milho é fecundado via polinização cruzada, que viaja quilômetros de distância. Os milhos transgênicos estão contaminando variedades crioulas, sem a vontade dos agricultores. Isso implica perda de material genético reproduzido e melhorado por décadas e até séculos por esses povos e comunidades. São danos culturais e ambientais inestimáveis.
A liberação do milho transgênico é uma irresponsabilidade tremenda. Imaginemos como será se for aprovado um milho Gene Drives, que não somente passará para 50% dos descendentes as caraterísticas modificadas, mas forçará toda a planta que cruzar a herdar as características manipuladas. Agora, pior, imaginemos a população comendo esse milho modificado, sem sequer saber que é modificado, já que os organismos Gene Drives também têm a rastreabilidade dificultada. Isso significa um imenso dano aos direitos dos consumidores também!
IHU On-Line - Quais são as preocupações éticas e legais envolvidas na discussão sobre Gene Drives?
Naiara Bittencourt - Temos inúmeras preocupações éticas, por exemplo, para que tipo de espécies poderão ser utilizadas essas manipulações e direcionamentos genéticos? Quem terá o poder de decisão sobre elas? Quem terá o poder de liberação? Até quando é o limite da manipulação humana para alterar a genética dos outros seres vivos e do ecossistema como um todo? Esses organismos podem ser utilizados como armas de guerra? O que será de nossa soberania alimentar, de nossa agro e sociobiodiversidade?
Temos que entender que somos parte da natureza e não os deuses da natureza. Desequilibrar a natureza desse modo tão complexo e perigoso também pode determinar desequilíbrio e ameaça à nossa espécie humana.
Já em termos legais, o que assusta é justamente a ausência de regulação e limite. Estamos hoje num vácuo jurídico normativo aberto pela RN 16/2018 da CTNBio. Isso significa portas abertas, sem análise de riscos, rotulagem, identificação, transparência.
Os movimentos sociais, cientistas social e ambientalmente comprometidos e organizações de direitos humanos e ambientais têm pautado que haja uma moratória internacional firme sobre o Gene Drives no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica, para que certos países não abram portas sem regulação, como o Brasil.
IHU On-Line - Internacionalmente, como o Gene Drives e as novas manipulações genéticas na agricultura estão sendo discutidos?
Naiara Bittencourt - Este será um tema quente no próximo encontro das partes da Convenção da Diversidade Biológica - COP, que acontecerá na China em 2020. Também se reavaliarão as metas para o desenvolvimento sustentável e o cumprimento dos acordos do Protocolo de Cartagena. Vamos ver se haverá alguma posição mais firme em relação à tomada no último encontro que ocorreu no Egito em 2018. Até 2020 o grupo de experts no tema se encontrará e tomará notas de algumas propostas para as diretrizes internacionais, que poderão ou não ser acatadas no encontro da China.
Segundo a Via Campesina, é imprescindível que as comunidades locais, camponesas e indígenas sejam consultadas, ouvidas e suas decisões sejam respeitadas em todas as etapas do processo de avaliação destas novas tecnologias. Para a Via Campesina, as tecnologias de condução ou impulsão genética são tecnologias de extermínio, que comprometem diretamente a soberania alimentar. “Depois do terminator”, se discute aqui o “exterminator”, afirmava o discurso dos camponeses na última COP. Em conjunto com outras organizações da sociedade civil, pediu-se uma moratória internacional sobre os impulsores genéticos. Os movimentos também cobraram transparência e participação popular e democrática no processo de tomada de decisões que afetam seriamente o futuro mundial, especialmente da agricultura e da biodiversidade.
IHU On-Line - Do ponto de vista dos direitos humanos, que questões devem ser consideradas na discussão sobre Gene Drives?
Naiara Bittencourt - Bom, os direitos humanos devem ser entendidos na sua integralidade econômica, social, ambiental e cultural. Com certeza essas novas manipulações genéticas, como Gene Drives, em especial na agricultura, impactam todas essas frentes. Demos já o exemplo de como a contaminação do milho transgênico viola os direitos humanos dos agricultores e comunidades tradicionais. Com o Gene Drives, que pode extinguir espécies, mudar o tempo de amadurecimento, mudar a forma e aparência, tempo de florada etc., esses direitos são ainda mais ameaçados. Especialmente pela condução forçada das características genéticas. Podemos afirmar que os agricultores podem perder variedades cultivadas há séculos. Isso significa que perdemos biodiversidade e variedade genética. Mas também impacta diretamente na capacidade de produção, sustento e comercialização desses produtos. Isto é, o impacto pode ser em toda a forma de viver, fazer, cultivar, produzir e comer que temos construído.
Isso estamos falando apenas em “condições ideais”, propagandeadas. As violações e danos podem ser ainda maiores, até irreversíveis, se houver algum erro nessa edição genética. Tanto que nem podemos mensurar.