26 Agosto 2023
“Se, com a morte, cessa esse nosso corpo somático e biológico, a corporeidade que nele e através dele se forjou não termina no vazio. Essa corporeidade que vai amadurecendo dentro do casulo de nosso corpo biológico pertence à nossa identidade e, por isso, se transfigura no momento em que nosso corpo será reerguido para além da morte”, escreve Sinivaldo S. Tavares, OFM, professor e pesquisador do Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em artigo publicado no portal da FAJE e enviado pelo autor.
Em nossa experiência humano-existencial, reconhecemos que corpo e alma constituem uma realidade indivisível: não são entidades separadas; são dimensões de uma só e mesma vida. Por isso mesmo, alma e corpo não são duas coisas opostas, nem justapostas e menos ainda contrapostas. Entre corpo e alma, na realidade, vigoram relações de reciprocidade. São dimensões distintas, porém, inseparáveis. A esse propósito, escreve Mário Quintana: “O que é a alma? Alma é aquilo que em mim e em você se pergunta o que é a alma”. O corpo é, portanto, o símbolo da alma. Pois como diz Leonardo da Vinci: “A alma deseja estar com seu corpo, porque sem os instrumentos orgânicos de tal corpo, nada pode operar nem sentir”. E, de maneira enfática, escreve Oswald de Andrade: “O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo”.
Se, de fato, “o símbolo dá o que pensar” (Paul Ricoeur), somos então desafiados a penetrar na simbologia do corpo no intuito de haurir seu mais originário sentido. Esse caráter intrinsecamente sacramental e simbólico do corpo nos é poeticamente descrito pelo frade capuchinho e teólogo Prudente Nery, de saudosa memória, como um típico caso de antropofania:
“É aqui, em nossa corporeidade, na precariedade de alguns gestos e palavras, que se corporifica e se faz visível a invisibilidade de nosso mistério. O corpo é verdadeiramente sacramentum hominis, a forma visibilis ejus invisibilitatis. É no corpo que o homem, deixando a sua obscuridade inviolável e sua absoluta alteridade, resplandece e se dá numa palavra que consola e abençoa, que reanima e perdoa, num gesto que nos restaura, numa dádiva que nos faz sorrir, numa proximidade que nos encanta. Corpo é, pois, muito mais do que apenas este amontoado orgânico de células, a nossa carne. Ele é também o olhar, a destreza dos dedos, a generosidade das mãos, a palavra, o ouvir, o bailar, o drible, o saltar, o dobrar os joelhos, o suor, a lágrima, a luta, o afago que se dá e se recebe, o beijo, essa carícia dos corações, enfim: tudo aquilo que somos para fora e de fora recebemos. Uma antropofania é a sua corporeidade. Quando o corpo a isso se presta, há uma profunda identidade entre nós e ele. É o esponsalício do corpo e da alma…”.
A reciprocidade entre corpo e alma nós a experimentamos em nós mesmos. É por intermédio de nosso corpo que nos relacionamos com o mundo que nos circunda: damo-nos a ele e dele recebemos tudo aquilo que nos marca de modo indelével, vindo a constituir nossa singularidade mais profunda. É vivendo no corpo que forjamos nossa própria identidade através de relações que nos fazem ser o que somos e acolhemos impressões que nos marcam e nos moldam para sempre.
Nem a morte será capaz de destruir as marcas dessas relações e impressões; elas restarão cravadas dentro de nosso eu mais profundo. Se, com a morte, cessa esse nosso corpo somático e biológico, a corporeidade que nele e através dele se forjou não termina no vazio. Essa corporeidade que vai amadurecendo dentro do casulo de nosso corpo biológico pertence à nossa identidade e, por isso, se transfigura no momento em que nosso corpo será reerguido para além da morte. As marcas indeléveis que nos foram impressas pelo mundo, em nossa existência corporal, através de nossas relações circunstanciais, permanecem para além da morte e da decomposição de nosso corpo biológico. Elas marcaram indelevelmente nossa vida de distintas maneiras: incomodando-nos, desafiando-nos, inquietando-nos, provocando-nos, purificando-nos, amadurecendo-nos…
Mas, como todo símbolo, o corpo também manifesta seu lado sombrio: sua não-identidade, seu velamento. Em determinados momentos, experimentamos a incapacidade visceral do corpo em expressar a infinita riqueza que sentimos palpitar no mais íntimo de nós. Trata-se de uma experiência de verdadeira inadequação entre o que exprimimos mediante nosso corpo e o que experimentamos no âmago de nós mesmos. É quando sentimos, por exemplo, que nosso corpo nem sempre é a morada de nosso ser. Muitas vezes, ele se nos afigura como limite intransponível e causa de um sofrimento inominável.
Quantas vezes sentimos pelo palpitar ansioso de nosso coração que ele quer voar, mas é impedido pela carne que impassível o retém. Outras vezes a saudade nos transporta em pensamento e sentimento para longe, junto da pessoa amada, mas somos violentamente impedidos pela inércia e lentidão de nossos pesados e indolentes corpos. Quantas vezes testemunhamos a dilaceração horrível entre a lucidez de nosso espírito que, ainda ágil, se põe a imaginar e a sonhar e a inércia de nossos braços e pernas que não respondem mais aos estímulos da mente e do coração. Para não falar da atroz experiência de corpos cuja força e vigor são completamente sugados por dores inexprimíveis que acabam minando toda e qualquer alegria de viver.
Esse velamento, como em toda realidade simbólico-sacramental, pode ser intencionalmente querido. Sob as aparências de um sorriso aberto, podemos ocultar enorme tristeza. Como também por meio de uma alegria aparente, podemos dissimular nossa dor regada por uma torrente de lágrimas. Com um beijo podemos selar nossa mais vil traição. E isso porque podemos, através de nosso corpo, velar, dissimular, esconder nossos sentimentos e nossos desejos mais íntimos.
Por fim, a presença simbólico-sacramental do mistério de nosso eu na visibilidade de nossa corporeidade se dá sempre na iminência de uma ausência. Trata-se sempre de uma presença que se dá no âmbito de nossa saudade, aceno de seu mistério. E, assim, nossa corporeidade é o espaço em que nos encontramos, nos saudamos, para nos recolhermos, cada um, na profundidade abissal de seu próprio mistério. Como escreve a grande poetisa Cecília Meireles: “Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto”.
Por tudo isso é que, a propósito da intrínseca relação entre corpo e alma, valeria a máxima proferida por Jesus, segundo a tradição do evangelho de Mateus: “Não ouse separar o ser humano aquilo que Deus uniu” (Mt 19,6)!
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Corpo e alma: uma unidade indivisível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU