Crise civilizacional ou uma simples crise da democracia? Artigo de Flávio Lazzarin

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29 Setembro 2025

"A política tem sentido só se acompanha os corpos, a concretude da vida, a dor, o cansaço, a alegria. E os corpos se confundem com os territórios. São corpo social, político, coletivo, e é neste corpo que se processa o conflito. Corpos onde se entrelaçam fragilidade, desventura e esperança de vida em plenitude. Corpo como única arma dos desarmados contra a violência dos poderes deste mundo, corpo atravessado pela dor, pelo abandono e pela experiência do silêncio de Deus", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Eis o artigo.

Em busca de luzes, de sinais, nestas trágicas e complexas conjunturas, estou acompanhando alguns intelectuais da atualidade, oriundos do mesmo berço operaista, que, movidos por diferentes perspectivas, refletem sobre a crise em que estamos mergulhados e perdidos.

Me reencontro, assim, com Franco Berardi, que acompanha, perdida toda esperança da possibilidade do enfrentamento e da luta, o surto contemporâneo da bestialidade humana: “A experiência humana acabou. É a ideia, crucial na modernidade, de que o mundo, a linguagem, a razão e a lei podem controlar a imediatez do instinto, da bestialidade. As vítimas têm de se tornar assassinas — esta é a lição que aprendi com a transformação de Israel numa entidade nazi. Esta é a lição que aprendo quando vejo Auschwitz nas praias do Mediterrâneo, na costa de Gaza e em centenas de campos de concentração em toda a bacia mediterrânica… “Desista de tudo. Abandone. Vá embora. Pare de procriar. Esta é a verdadeira política para o futuro.”[1] ... E esta última década revelou a verdade: o gênero humano corre o risco de não sobreviver ao espasmo final do colonialismo. Em 2017, eu alertava sobre o perigo de uma guerra civil global. Agora, a guerra civil global está em curso. Após o colapso global da pandemia, o supremacismo branco assumiu o controle no Ocidente e desdobrará todo o seu poder destrutivo, o que significa que poderá destruir a civilização humana.”[2]

Em suma, desertar e desvincular-se para não ser cúmplices. Mas parece mesmo ser tarde demais! A postura de Berardi, no entanto, parece niilistamente desesperada. A incontestável e indiscutível radicalidade desta leitura não deixa, contudo, espaço algum para ver processos coletivos insurgentes e experiências comunitárias, minoritárias e humildes sementes que, em todo canto do Planeta, sem a presunção de ter as chaves para projetar o futuro, confrontam, porém, no tempo presente, com teimosia e a pesar de todas as derrotas, o capitalismo, o individualismo e a catástrofe dos direitos humanos e ambientais, violados de forma sistemática, ampla e devastadora.

No entanto, Berardi e poucos outros intelectuais de esquerda, chegam à convicção que a realidade atual nos revela a obsolescência dos sonhos revolucionários e reformistas.

A esquerda já teria jogado todas as suas cartas de suposta alternativa à modernidade ocidental e, de fato, faz tempo que é obrigada a acompanhar, sem nenhuma possibilidade de fugir do já dito e já feito, a decadência da civilização ocidental.

O antidoto anticolonial produzido pelo Ocidente, mostrou e mostra a sua constitutiva inaptidão a revolucionar ou reformar o sistema e passa a fazer parte da irreversibilidade da crise, coagido a repetir chavões e enfrentamentos datados e obsoletos ou a optar por arranjos cada vez mais alinhados com a ditadura do capitalismo em todas as suas versões imperiais, tradicionais ou emergentes.

Continuo com Giuseppe Cocco [3], que não compartilha as leituras ‘apocalípticas’ da conjuntura política e social. Não vê, como Berardi, uma crise civilizatória e parece interpretar a conjuntura, ainda em termos marxianos, como uma das inúmeras crises cíclicas do capital. Ele se recusa de ver o presente como um colapso total do Ocidente. Em vez de teorizar a decadência sem saída, aposta na potência do presente, mesmo quando este está atravessado por crises, derrotas, retrocessos e violência. Ele radicaliza o paradigma do materialismo histórico, lendo a presença dos conflitos e das lutas além dos seus lugares tradicionais, a fábrica e o estado, com a inclusão dos territórios da metrópole, e os fluxos digitais da comunicação. Reconhece a derrota das “multidões”, mas não renuncia a chave de leitura aceleracionista, chegando a criticar Negri e Hardt, naquilo que Cocco define como purismo moralista e fidelidade à esquerda, e à própria esquerda de estado, como aconteceu com Chavez, em 2006, e com Lula e o PT, em 2014, desconhecendo o recado da Multidão no Brasil, em junho de 2013.

“…O que resta da análise do livro Império? O Império, na melhor leitura que compartilhamos, sempre foi um livro que defendia um ponto de vista irredutível: aceleracionista, desde baixo, vendo a globalização como a via da realização das possibilidades infinitas da democracia. Era, portanto, um chamado para não se posicionar de fora, mas sim acelerar o processo e disputar as tendências por dentro. Podemos afirmar que foi a desaceleração do ciclo de lutas da Multidão, marcada por sua incomunicabilidade e bloqueio, que, em última instância, nos derrotou.”

É evidente que não codivido a posição de Cocco que, a partir do irrenunciável esquema dialético, parece não reconhecer a luta identitária anticolonial dos povos originários e tradicionais da floresta, do campo e da cidade, como sujeitos políticos, que contribuem aceleração democrática da história. Esses povos, como os indígenas de Gaza, estariam “fora” do processo histórico fundamental. A necessidade de valorizar o que está “dentro”, apesar das derrotas recentes, é a razão do desconhecimento. Mas, será que toda insurgência indígena e camponesa e toda luta antipatriarcal, enquanto apoiada pelo paradigma decolonial elaborado nas universidades dos EUA, é assimilável ao campo da “reação conservadora, identitário-essencialista, fascista, putinista e, portanto, antidemocrática e antiglobal.”?

No entanto, parece-me irrenunciável no pensamento de Cocco a clareza, do discernimento da conjuntura geopolítica, criticando a posição das esquerdas para as quais a solução da crise estaria na disponibilidade do Sul de se aliar à China e Rússia, na reedição de um novo bipolarismo, via BRICS, ignorando o neofascismo putinista e o totalitarismo chines. Dois imperialismos alternativos, mas aliados, de fato, no enfrentamento da Multidão, considerada o único verdadeiro inimigo.

Cocco é determinado por uma postura teórica, que quer priorizar os conflitos, as lutas concretas, os novos sujeitos políticos capazes de reorientar, de acelerar, processos de transformação, mas acaba privilegiando um terreno de reflexão não isento de certa abstração, porque parece esquecer os corpos feridos, o sangue derramado, o sofrimento das vítimas da colonização ocidental. Porque quando as classes subalternas ficam enfraquecidas e desarmadas, o panorama que temos é marcado pela vontade de extermínio, que caracteriza os vencedores. Por isto, parece-me que a conjuntura é algo bem mais assustador de uma mera “crise da democracia”.

Importante contribuição de Cocco, sobretudo no contexto da condenação da tentativa de golpe de estado no Brasil pelo STF, é a constatação que “O paradoxo dos paradoxos é que os movimentos de emancipação precisam hoje lutar ao mesmo tempo contra e “pelo” Império, no último caso contra Putin-Xi (a distopia de um Fora capitalista totalitário) e contra Trump-Musk (o suicídio da civilização).” A conjuntura atual “indica que a preservação das condições político-institucionais para que as lutas possam ocorrer de forma menos gravosa para quem luta por direitos (e pelo direito a outras formas de vida possíveis) é preferível à sua destruição por meio da captura das instituições pelos novos déspotas, que desejam o poder a todo custo e, viralmente, não param de se multiplicar e estriar o espaço global.”...“Na crise do poder constituinte nos últimos anos, portanto, foi o poder constituído liberal-democrático que freou e bloqueou a força destrutiva e destituinte da deriva fascista. Mas obviamente isso não é suficiente, como a pujança eleitoral social das novas formas de fascismo mostra (vide os resultados eleitorais na Europa e nos motins anti-imigrantes no Reino Unido).[4]”

As considerações de Berardi e Cocco fazem com que volte imediatamente à memória a lição profética de Mario Tronti, que consegue reavivar o debate e oferecer esperanças e perspectivas.

Parece-me mesmo que a sua análise e a sua proposta, que amadureceram na última fase da sua biografia política e intelectual, constituem até hoje uma convincente abordagem da crise civilizacional, que combina a leitura coerente da tragedia do Ocidente com a esperança.

E são uma resposta à evidente falência das esquerdas de hoje, que oscilam entre obsolescência não reconhecida, pessimismo desesperado, fidelidade à materialística misteriosa providência das forças produtivas, adaptação à burocracia partidária e às lógicas eleitorais e de governo, vago progressismo burguês sempre à la page. Esquerdas, cada vez mais irremediavelmente distantes dos deserdados e oprimidos, únicos verdadeiro motor da história.

Tronti conseguiu reconhecer que o marxismo, como pensamento interno, radicalmente autocrítico, da modernidade ocidental, é parte integrante da crise desta civilização. Tronti não o abandona totalmente, porque, apesar de ter perdido eficácia transformadora, o considera um instrumento ainda valido para ler o decadência do Ocidente. A crise do materialismo dialético e do materialismo histórico não representam a mera falência de um projeto político, mas um sintoma da decadência do Ocidente, incapaz de produzir alternativas vitoriosas, radicalmente alternativas, ao seu domínio.

Mas, sobretudo, ele não abandona a luta, também quando fica evidente que a classe operaria não existe mais como sujeito político fundamental da luta de classe. Figura central da heresia operaista, na década de 60, Tronti põe como central na análise e na prática política não o processo capitalista mas o protagonismo da classe operária. Tronti realizava, de fato, a chamada “revolução copernicana” ao interpretar o conflito histórico entre capital e trabalho: primeiro vem o sujeito operário e suas lutas, depois o capital e seu desenvolvimento; portanto, ao partido cabe a tática, ao movimento trabalhista a estratégia, justamente o que numa das passagens mais famosas e cheias de consequências ele chamou de “estratégia de recusa”.[5]” E, quando, a partir dos anos 70, a classe operária entra em crise e progressivamente desaparece, ele não interpreta isto como uma derrota, com a convicção de que o conflito de classe não desaparece, mas se desloca. Porque a luta dos pobres é constitutiva da história, desde a fundação do mundo.

Nos últimos anos de sua vida, Tronti começa a refletir sobre espiritualidade e se aproxima de Jesus, como evento espiritual e político fundamental para sustentar a recusa da lógica que governa o mundo. Não se trata de uma conversão tradicional ao cristianismo, mas, como na biografia de Simone Weil, da aceitação de Jesus de Nazaré, como único antidoto ao capitalismo, entendido não como um sistema econômico mas como “vertiginosa construção antropológica”, uma força que “corrompe os espíritos, mina a capacidade de discernir o bem do mal”, um sistema que se opõe radicalmente ao bem, à verdade e à beleza.”[6] Trata-se de se colocar na história humana em companhia de Jesus. Acolhendo a sua palavra e imitando a sua praxe.

Tronti tem duas mensagens proféticas, uma para os marxistas e outra para as Igrejas. Aos marxistas diz que foi um erro recusar a dimensão da espiritualidade como se fosse incompatível com a luta política e a crítica ao capitalismo. E aos cristãos diz que uma cristologia da história, além da redução de Jesus ao âmbito religioso, é indispensável para enfrentar a crise das Igrejas, que, também neste caso, é parte constitutiva da crise do Ocidente.

Tronti, fascinado pelo evento messiânico de Jesus, nos convida a reconhecer, além das dialéticas e das doutrinas, a centralidade antropológica, teológica e política dos corpos dos crucificados de toda história humana. A política tem sentido só se acompanha os corpos, a concretude da vida, a dor, o cansaço, a alegria. E os corpos se confundem com os territórios. São corpo social, político, coletivo, e é neste corpo que se processa o conflito. Corpos onde se entrelaçam fragilidade, desventura e esperança de vida em plenitude. Corpo como única arma dos desarmados contra a violência dos poderes deste mundo, corpo atravessado pela dor, pelo abandono e pela experiência do silêncio de Deus. Corpos violados de mulheres indígenas e negras. Corpos ameaçados e violentados dos povos originários, quilombolas e camponeses de todas as vias campesinas. Corpos e territórios como barricadas contra o avanço do projeto colonizador, que nunca para. Corpos que gritam, que duvidam, mas que também esperam. Corpos dos que caminham, dos que resistem e lutam, dos que sofrem e dos que anunciam que o Reinado de Jesus está presente e um outro mundo é possível. Corpos lugar da fé, de encantados e encantadas, orixás e ancestrais. Corpo e Sangue de Jesus Messias, companheiro da caminhada, para enfrentar o Templo, o Palácio, o Mercado e o Quartel.

Referências

[1] “A espécie humana não sobreviverá a este século”. Entrevista com Franco Berardi, IHU, 04 de agosto de 2025.

[2] “O Ocidente trama a morte do futuro”. Entrevista com Franco Berardi, IHU, 15 de setembro de 2025

[3] Cocco Giuseppe et alii, Crise da democracia e Império, 25 ano depois, em Dossiê: A atualidade de Antonio Negri: poder constituinte, autonomia e crise da democracia, REVISTA DIREITO E PRÁXIS, v. 16 n. 3 (2025), UFRG, Rio de Janeiro

[4] ibidem

[5] Tarí Marcello, Mario Tronti: o Reino, se nós o quisermos, IHU, 2 de setembro de 2023

[6] ibidem

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