Eleições 2026: a luta de classes, outro nome para o conflito pela divisão das riquezas e oportunidades na nossa sociedade, está no centro da agenda. Entrevista especial com Marina Basso Lacerda

A garantia de um estado democrático passa por uma divisão mais equânime das riquezas e oportunidades, em um contexto global de agravamento da concentração de renda nos últimos 40 anos

Arte: Alexandre Francisco | Fonte: Agência Senado/Wikimedia Commons

11 Setembro 2025

Prever qualquer resultado eleitoral para 2026 ainda é cedo e instável. Muitos fatores políticos, internos e externos, estão em jogo e prever como será a disputa é algo que ainda requer melhor compreensão. O fato, porém, é que o cenário é completamente outro em relação a 2022.

“A questão é que, como o sistema democrático estava seriamente ameaçado com Bolsonaro, Lula conseguiu reunir uma coalizão amplíssima e bastante heterogênea, que incluiu desde desafetos antigos do PT a setores importantes do capital. Mas agora, com a estabilização das instituições e a inabilitação jurídica de Bolsonaro, dificilmente Lula conseguirá repetir em 2026 uma aliança tão ampla quanto a de 2022 – a não ser que fatores muito inesperados reconfigurem o tabuleiro político”, explica Marina Basso Lacerda, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “O que está no centro da agenda eleitoral é, novamente, a luta de classes – que é outro nome para o conflito pela divisão das riquezas e das oportunidades na nossa sociedade”, complementa.

O comportamento tanto de Lula quanto de Haddad de uma crítica mais aberta ao sistema financeiro, em vez de uma postura mais conciliadora, está no centro da agenda política do atual governo. Isso porque sua imagem depende muito de fazer a população compreender quem são os responsáveis pela inflação e taxação dos mais pobres. Três projetos apresentados pelo governo estão no centro da questão: o IOF, a taxação dos super-ricos e a isenção do imposto de renda.

“A votação do IOF foi um divisor de águas. A pauta em si tratava de uma matéria distributiva, porque é um imposto que tende a atingir quem tem rendas maiores. E houve uma derrota muito expressiva do governo, e no contexto do rompimento de um acordo, ao menos de um acordo anunciado”, recorda a entrevistada. Neste contexto, defender a democracia implica defender um aprofundamento de suas dinâmicas em favor dos mais pobres. “A defesa das instituições não pode significar a defesa acrítica de todas as regras do jogo atual. Muitas dessas regras foram desenhadas para perpetuar a desigualdade. A estratégia deve ser de tensionamento democrático, não contra a democracia, mas aprofundando a democracia real. Isso significa, na prática, mobilizar a população para reformas progressistas, usar o poder regulatório do Estado para frear os abusos do capital financeiro”, pontua.

Marina Basso Lacerda | Foto: IESP/UERJ

Marina Basso Lacerda é autora do livro O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk, 2019), finalista do 62º Prêmio Jabuti de Ciências Sociais e vencedor do Prêmio Minuano de Literatura. Pós-doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP), é doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mestra em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua como pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC), da FFLCH/USP.

Confira a entrevista.

IHU – Em 2022, o tom da campanha eleitoral do PT e da oposição a Bolsonaro tinha como mote principal um discurso em favor de salvar a democracia. De lá para cá o que mudou?

Marina Basso Lacerda – A defesa das instituições democráticas em si não é o que mobiliza o voto de um eleitorado composto, em sua maior parte, por pessoas com dificuldades para fechar as contas do mês, que passam muitas horas em transporte precário, que não conseguem comer produtos frescos ou carne na maior parte da semana, que tem um universo limitado de oportunidades.

A questão é que, como o sistema democrático estava seriamente ameaçado com Bolsonaro, Lula conseguiu reunir uma coalizão amplíssima e bastante heterogênea, que incluiu desde desafetos antigos do PT a setores importantes do capital. Mas agora, com a estabilização das instituições e a inabilitação jurídica de Bolsonaro, dificilmente Lula conseguirá repetir em 2026 uma aliança tão ampla quanto a de 2022 – a não ser que fatores muito inesperados reconfigurem o tabuleiro político.

O que vai ser decisivo para as eleições, então, é a melhora concreta da vida das maiorias da população, e isso precisa de políticas distributivas robustas. Portanto, o que está no centro da agenda eleitoral é, novamente, a luta de classes – que é outro nome para o conflito pela divisão das riquezas e das oportunidades na nossa sociedade.

IHU – O que podemos esperar para o pleito de 2026?

Marina Basso Lacerda – A conjuntura é extremamente dinâmica e são muitas variáveis em jogo. O Brasil se tornar o país mais tarifado, por exemplo, não estava no horizonte de ninguém. Por isso, tudo o que digo aqui deve ser lido como hipótese analítica, sujeita a rápidas reconfigurações.

Feita a ressalva, o que se desenha?

Certamente estarão com Lula os movimentos sociais e os sindicatos, grupos progressistas, mulheres, universidades. Ele certamente terá apoio de menos setores da burguesia financeira e industrial, que o apoiaram em um momento excepcionalíssimo, como o único que poderia ganhar de Bolsonaro.

Essas elites tendem a desgostar do PT, embora o cenário para elas também seja complexo. Bolsonaro mostrou um absoluto descomprometimento com a burguesia nacional na questão das retaliações econômicas dos EUA, enquanto Lula mostrou ser um gestor responsável.

Os mais pobres certamente seguirão com Lula, mas ressalto que Lula chegou a ser mais impopular do que popular nesse grupo. A queda da inflação e a campanha pela taxação dos super-ricos podem ter sido os fatores que influenciaram a recuperação da popularidade, mas as pesquisas de opinião ao longo do tempo mostram que não há uma cidadela lulista cativa como havia antes.

Contra Lula estarão a direita, o agro, os militares e as forças de segurança, a direita cristã, a faixa acima de cinco salários mínimos, empresários e pequenos comerciantes. Bolsonaro teve o apoio daqueles com renda entre dois e cinco salários mínimos, mas, se o governo conseguir aprovar a isenção do imposto de renda para essa faixa, acredito que parcela expressiva do grupo pode migrar para Lula.

O União Brasil desembarcou nesta semana. O apoio do PSD é incerto, esteve dividido nas eleições de 2022, tem ministério mas sua bancada é praticamente contrária ao governo, e na melhor das hipóteses para Lula o PSD estará dividido em 2026.

O sucesso de Lula, e ele sabe disso, depende essencialmente da inflação, de políticas que chegam diretamente aos cidadãos – como o Gás para Todos – e da isenção do imposto de renda.

IHU – Como a inelegibilidade e provável condenação e prisão de Jair Bolsonaro altera a correlação de forças entre esquerda e direita nas próximas eleições?

Marina Basso Lacerda – Vamos dividir essa resposta em dois aspectos. A inelegibilidade do Bolsonaro é um imperativo jurídico e uma necessidade política e ética fundamental. Pela defesa da democracia, por uma convivência em sociedade que minimamente respeite o ser humano.

Agora, do ponto de vista dos cálculos pragmáticos. Há quem diga que a inelegibilidade de Bolsonaro enfraquece Lula, dentro da lógica de que ele seria o único capaz de derrotar Bolsonaro.

Bolsonaro inelegível fortalece Lula na medida em que não há substituto natural e a direita e extrema-direita se apresentarão fragmentadas em 2026 – quadro que, no entanto, pode mudar rapidamente se Bolsonaro indicar um sucessor juridicamente apto. Tarcísio vem trabalhando para isso: prometeu indulto ao ex-presidente como primeiro ato de eventual mandato e está articulando a votação da anistia.

Tarcísio representa a defesa intransigente do capital e de pautas conservadoras, mas com uma roupagem mais palatável, menos associada ao caos institucional. Isso, de um lado, pode tornar a direita mais competitiva, pois amplia seu apelo para eleitores de centro; de outro lado, pode tornar a direita menos competitiva, porque o engajamento é menor nessa configuração.

IHU – O tarifaço de Donald Trump ao Brasil, embora muito mais brando do que se imaginava, trouxe bastante clareza ao cenário político brasileiro, no sentido de sabermos de que lado as forças políticas estão. Isso pode impactar as eleições?

Marina Basso Lacerda – Mais clareza em parte.

Sim, houve mais clareza sobre o Bolsonaro. E houve uma postura surpreendente, mas reveladora, do agronegócio: a Folha noticiou que a bancada ruralista chegou a cancelar a reunião em que debateria as tarifas, por conta da prisão domiciliar do ex-presidente. Por outro lado, o tarifaço forçou o governo a assumir uma postura de defesa da soberania nacional, que é um terreno historicamente fértil para a esquerda.

Mas essa clareza não veio em relação a tudo, especialmente em relação ao Tarcísio. Ele assumiu posturas ambíguas desde o início – ao mesmo tempo que pleiteava no STF a permissão para que Bolsonaro viajasse aos Estados Unidos, gesto que foi lido como apoio à tentativa de fuga, ele estava negociando com a embaixada norte-americana o alívio das sanções.

A consequência do tarifaço para as eleições ainda é imprevisível. Neste primeiro momento o favorecido é Lula, porque as retaliações de Trump desmoralizaram o bolsonarismo, agravaram as condições jurídicas do ex-presidente, e porque não foram sentidas consequências negativas amplas. Ao contrário: o tarifaço é simultâneo à queda da inflação, inclusive da carne, promessa de campanha do Lula.

Mas não sabemos até que ponto Trump pode chegar depois da condenação de Bolsonaro, e que tipo de efeitos isso terá. Tenho visto análises de que são mais prováveis novas revogações de visto e ampliação de afetados pela Magnitsky, e improváveis sanções econômicas amplas. Entretanto, espera-se para breve alguma retaliação ao Banco do Brasil.

Tarcísio, como já indicou desde o dia do anúncio das sanções, certamente tentará capitalizar com qualquer ordem de consequências. Se as sanções econômicas tiverem repercussão, dirá que a culpa foi de Lula e do Supremo que supostamente injustiçou Bolsonaro; se forem tímidas, dirá que foi devido ao seu esforço de negociação.

IHU – Na atual conjuntura política e econômica, que episódios e debates ilustram a luta de classes que vivemos no Brasil? Qual tem sido a posição de Lula, cujo histórico aponta para uma postura conciliadora?

Marina Basso Lacerda – O IOF, a taxação dos super-ricos e a isenção do imposto de renda.

Lula, historicamente, tem uma postura conciliadora. No entanto, pelo menos desde 2024 ele vem atacando o sistema financeiro em praticamente todos os seus discursos. E não é por menos: cada ponto na Selic custa cerca de 40 bilhões do orçamento público por ano. E episódios como a pandemia, no Brasil e no mundo, mostram que os Estados-nação possuem recursos vultosos para problemas complexos. A questão é que esses recursos ficam aprisionados pelo capital financeiro.

E, nisso, a votação do IOF foi um divisor de águas. A pauta em si tratava de uma matéria distributiva, porque é um imposto que tende a atingir quem tem rendas maiores. E houve uma derrota muito expressiva do governo, e no contexto do rompimento de um acordo, ao menos de um acordo anunciado.

Ali ficou evidente que o espaço de conciliação habitual tinha se esgotado. Então Lula decidiu, com mais ênfase, recorrer diretamente ao seu maior patrimônio político, que é seu eleitorado. E o Haddad foi junto, abraçou esse discurso, no contexto da campanha pela taxação dos mais ricos, para viabilizar a isenção do imposto de renda para quem ganha até cinco salários mínimos. É uma pauta distributiva muito forte a favor da classe trabalhadora.

IHU – Uma questão sensível, relacionada aos temas que comentamos, é a do emprego. Temos um índice de desemprego baixo (7,8%), mas uma grande taxa de ocupações informais (39,3%) e de grande precariedade. De que forma isso impacta a avaliação do governo e como isso pode interferir nas urnas em 2026?

Marina Basso Lacerda – Os índices econômicos e sobre renda e emprego de maneira geral são bons no governo Lula, razão pela qual fica a pergunta: por que a aprovação foi caindo em meados do ano passado, até que recentemente tenha iniciado um processo incompleto de recuperação?

Não existe mais o ineditismo de sair do mapa da fome, que foi a maior conquista social do primeiro governo Lula. O governo fez desde 2023 um esforço tremendo para retomar e reorganizar as políticas sociais. Embora os números sejam bons, essa é uma conquista já realizada no passado, e as pessoas têm a sensação de que essa melhora já fazia parte do patrimônio nacional, digamos assim.

Outro fator decisivo foi a inflação de alimentos – que agora está caindo.

Além disso, conta, provavelmente, a precarização do trabalho em um mundo de expectativas cada vez mais agressivas de consumo e de sucesso. Essa frustração material se traduz em descontentamento político. Esse é o mundo de quem vem adotando crescentemente o discurso da direita, que prega ser “chefe de si mesmo”. As propostas da esquerda são diferentes e residem na ideia de distribuição de recursos e oportunidades via políticas públicas, ou seja, mais mediatas e de longo prazo.

Por fim, certamente impacta no governo a rejeição popular à esquerda. Várias pesquisas de opinião em profundidade e análises sobre outros países mostram a disseminação da ideia de que as pessoas de esquerda e as minorias se deram bem (com acesso às universidades, a concursos públicos, a sindicatos, a políticas afirmativas), de que é o establishment que depende do Estado e de que os migrantes roubam os empregos. São bodes expiatórios que funcionam na narrativa que, no fim das contas, é pela manutenção do status quo, porque você não olha para os responsáveis efetivos pelas injustiças sistêmicas.

IHU – O que seria uma “esquerda brâmane” e qual o risco de o PT cair nessa armadilha? Em caindo, quais podem ser as consequências?

Marina Basso Lacerda – A “esquerda brâmane” é um termo usado por Thomas Piketty para definir a esquerda francesa e usado pelo cientista-político norte-americano Matthew Karp para analisar o Partido Democrata: é aquela que se tornou representante das elites urbanas escolarizadas, culturalmente progressistas, mas desconectada da classe trabalhadora e relutante em promover uma redistribuição efetiva de propriedade e renda. O risco do PT é tornar-se um gestor competente, porém conformista, totalmente inserido no status quo neoliberal, sem mexer nas condições de vida das pessoas. Para mexer nessas condições, são necessárias políticas públicas robustas e que custam dinheiro.

IHU – Como a perpetuação de desigualdades estruturais alimenta narrativas de extrema-direita?

Marina Basso Lacerda – O neoliberalismo é um programa criado para reconcentrar renda, depois de uma orientação social que vários países adotaram no século XX, muito por conta do medo soviético. Desde a instituição do neoliberalismo em vários países, a concentração de renda, no mundo, vem crescendo, há cerca de 40 anos.

Depois da crise de 2008 isso se agudizou. Num primeiro momento houve crescimento significativo de movimentos e candidaturas antiestablishment da esquerda com pauta fortemente distributivista que, depois, capitularam (lembremos do Syriza). Esses elementos abriram terreno para a extrema-direita: Brexit, Trump, Nova Democracia na Grécia, etc.

A desigualdade crônica cria um terreno fértil para o desespero e a raiva. A insatisfação geral com um quadro de oportunidades restrito para todas as gerações de uma família leva a um desejo legítimo de ruptura.

A porta se abre para salvadores da pátria e soluções simplistas. A extrema-direita tem sido mestre em capitalizar essa frustração: como eu falei, ela aponta bodes expiatórios (como minorias, migrantes, comunistas...) e oferece uma narrativa de ruptura e vingança, vestindo-se paradoxalmente de “rebelde” contra o sistema, mesmo servindo aos interesses do grande capital, ou seja, contribuindo para sistematicamente aprofundar as desigualdades.

Por outro lado, as instituições democráticas e os partidos de centro e de esquerda são percebidos como cúmplices ou incapazes de mudar um sistema que beneficia constantemente uma pequena elite. Então o desafio é defender a democracia e defender a Constituição, sem parecer simples mantenedor da ordem.

IHU – Então o grande desafio do PT é, ao mesmo tempo, defender as instituições e promover as mudanças estruturais necessárias. Como fazer isso?

Marina Basso Lacerda – A resposta está na própria Constituição, que tem como objetivo fundamental, expresso no artigo 3º: construir uma sociedade livre, justa e solidária. Trata-se de uma Constituição que estabelece um programa econômico desenvolvimentista.

A defesa das instituições não pode significar a defesa acrítica de todas as regras do jogo atual. Muitas dessas regras foram desenhadas para perpetuar a desigualdade. A estratégia deve ser de tensionamento democrático, não contra a democracia, mas aprofundando a democracia real. Isso significa, na prática, mobilizar a população para reformas progressistas, usar o poder regulatório do Estado para frear os abusos do capital financeiro.

Dois fatores contrários a Lula paradoxalmente o fortaleceram: a derrota do IOF e o tarifaço. Foram dois episódios que ocorreram inclusive com apenas dias de diferença e que colocaram o Lula em um lugar de embate – um embate democrático. Fizeram com que ele reassumisse o protagonismo e que saísse da imagem de gestor confortável do sistema.

IHU – Como a esquerda pode vestir a camiseta da rebeldia novamente e deixar mais às claras as disputas de classe e um avanço que acolha mais e melhor a população empobrecida?

Marina Basso Lacerda – A esquerda precisa escolher seus grandes adversários e deve ser a portadora da bandeira da verdadeira rebeldia: aquela que luta por um futuro mais justo e democrático, o que significa, essencialmente, a distribuição de recursos e oportunidades para as maiorias excluídas, cumprindo o programa da Constituição de 1988.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Marina Basso Lacerda – A escolha é entre uma esquerda que ousa desafiar o núcleo duro da desigualdade, mobilizando seu povo, ou um setor progressista que acabe por pavimentar o caminho para a volta de uma direita revigorada.

E eu quero dizer também que, além de aprofundar o discurso igualitário, a esquerda olhe para experiências de acolhimento e de afeto que vêm sendo encontradas em organizações que estão hoje centralizadas politicamente pela extrema-direita.

A esquerda precisa combinar a fórmula rebeldia e acolhimento. Eu sei que não é fácil. Mas é o necessário.

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