Brasil: entre os herbívoros e carnívoros da geopolítica global. Artigo de Alexandre Francisco

Foto: Wikimedia Commons | Francisco de Goya: Saturno devorando um filho (1819-1823)

04 Agosto 2025

"A soberania brasileira é assim: governo sem política, política sem política, soberania sem país soberano. Lula não quer massa política, quer eleitores. A única coisa que importa é ganhar eleições, de 4 em 4 anos. Enquanto isso, na política internacional, países carnívoros com suas bombas nucleares e tecnologia militar de ponta estão babando pelos países herbívoros e seus minerais críticosreservas ambientaisdomínio dos datacenterspatentes farmacêuticas, territórios estratégicos etc. O único objetivo dos carnívoros, assim como na natureza, é engolir completamente os herbívoros. Não me surpreenderia se os EUA declarassem guerra militar (a tarifária já foi declarada) contra o Brasil. O que faríamos? Dependeríamos de ajuda da China ou da Rússia? O que eles iriam exigir em troca? Estamos caminhando rapidamente para esse tipo de conflito. Qual país será a próxima Faixa de Gaza? Política não é brincadeira — na maioria das vezes, é questão de vida ou morte."

O artigo é de Alexandre Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.

Eis o artigo.

Se acompanharmos o debate geopolítico global hodierno, iremos nos deparar com uma montanha-russa de sentimentos, do amargo ao agridoce. Eu não sei você, caro leitor, mas eu, particularmente, não consigo me manter incólume e emocionalmente estável diante de alguns graves problemas, principalmente de incompetência política.

Não é de hoje que venho escrevendo que a esfera política vem sendo preterida fortemente nos últimos séculos. O contratualismo moderno nos deu a percepção de que tudo pode ser reduzido a palavras escritas em uma folha de papel. Não somos tão evoluídos a ponto de dominar completamente nossos instintos, desejos e afetos, a ponto de zombar deles como se não viessem a interferir em pactos firmados há 30, 50, 200, 500 anos. O que é firmado hoje pode não ser respeitado amanhã. E, pasmem! Ficamos surpresos quando algum ditador maluco rasga uma constituição em 2 segundos.

O ser humano é muito mais complexo do que suas intenções de superfície. Na geopolítica global, a única coisa que vale são interesses. Não estou aqui para fazer um juízo de valor — se isso é bom ou mau, bonito ou feio. Minha tentativa aqui é de dar um alerta: enquanto acharmos que folhas de papel seguram o desejo por dominação, estaremos nos iludindo. É uma questão de sobrevivência da espécie. Um grupo, para se manter como espécie dominante, buscará aniquilar o outro. Estamos vendo isso em Gaza, estamos vendo isso na guerra tarifária de Trump, vimos isso no nazismo. A questão é: continuaremos a dar as mesmas péssimas soluções, observando inertes até que ponto essa aniquilação nos levará?

Se temos um elefante no meio da sala, não podemos fingir que ele não está ali. Leis, contratos e pactos de um Estado nacional burguês moderno, em muitos casos, visam neutralizar a dimensão política humana. É a tentativa de impor a formalidade sobre a materialidade. É a etiqueta sobreposta à pressa da fome. Estamos enjaulando o tigre raivoso e torcendo para que ele nunca se solte, ao invés de buscarmos entender suas reais necessidades.

Não estou dizendo que é possível nos livrarmos desses instrumentos, dessas jaulas e correntes culturais do dia para a noite. Mas é preciso buscar formas alternativas às soluções dadas pelos interesses do Estado burguês e de sua classe dominante, para problemas cíclicos que se mostram cada vez mais letais. Afinal, quantas guerras mundiais teremos até nos aniquilarmos totalmente?

O aumento da popularidade do presidente Lula diante das ameaças imperialistas americanas de Donald Trump não é algo imprevisível. Por mais que o governo brasileiro busque desesperadamente, há 20 anos, atender aos interesses dos bancos, do agronegócio e da Faria Lima, neutralizando e esvaziando completamente o campo político e qualquer mobilização popular com fins revolucionários, no intuito de preservar o Estado brasileiro burguês neoliberal, a dimensão política aparece novamente de baixo do tapete e não deixa Lula dormir em paz. Correr desesperadamente do conflito não é resolver o conflito.

Lula é esperto. Colocou Alckmin para falar com empresários e latifundiários, jogando pequenos pedaços de carne para acalmar as feras enraivecidas com seus negócios ameaçados pelo capitão e seu filho estadunidense. Já o presidente brasileiro preserva sua imagem de líder sindical que ouve as dores da esquerda, sem sujar as mãos com esses palavrões do tipo “luta de classes”, “revolução comunista”, etc. Para o governo, isso é baixa teoria acadêmica ultrapassada, de universitários românticos. A China, do contrário, levou e leva isso bem a sério.

O governo surfa na pauta nacionalista da defesa da soberania nacional (presente de Trump) e garante sua muito provável reeleição em 2026, para continuar governando de acordo com os interesses dos ricos, preservando seu patrimônio e seus contratos bilionários, e dando migalhas aos pobres. É a gestão do neoliberalismo de esquerda, sem objetivos, metas e sonhos. Apenas empurra-se tudo com a barriga, um dia após o outro, colocando band-aid na hemorragia do braço decepado, rezando para que outro membro não seja cortado.

A soberania brasileira é assim: governo sem política, política sem política, soberania sem país soberano. Lula não quer massa política, quer eleitores. A única coisa que importa é ganhar eleições, de 4 em 4 anos. Enquanto isso, na política internacional, países carnívoros com suas bombas nucleares e tecnologia militar de ponta estão babando pelos países herbívoros e seus minerais críticos, reservas ambientais, domínio dos datacenters, patentes farmacêuticas, territórios estratégicos etc. O único objetivo dos carnívoros, assim como na natureza, é engolir completamente os herbívoros. Não me surpreenderia se os EUA declarassem guerra militar (a tarifária já foi declarada) contra o Brasil. O que faríamos? Dependeríamos de ajuda da China ou da Rússia? O que eles iriam exigir em troca? Estamos caminhando rapidamente para esse tipo de conflito. Qual país será a próxima Faixa de Gaza? Política não é brincadeira — na maioria das vezes, é questão de vida ou morte.

Finalizo esse texto com um alerta, além dos muitos já dados: não há diálogo, regras e leis quando os interesses dos poderosos estão em risco (vide Hitler); Trump é a prova viva disso. Talvez sua política louca seja uma oportunidade de assistir, de forma escancarada, à violência americana que durante anos foi camuflada. Quanto mais sinceridade trumpista, mais nossas ilusões de um mundo de Alice no País das Maravilhas se desfazem, uma a uma, restando só a sensação de queda no buraco do coelho.

Como já diziam sabiamente os antigos: melhor ter um pássaro na mão do que dois voando.

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