23 Agosto 2025
Ainda inédita no Brasil, obra analisa o papel do sindicalismo, hoje, num mundo em crise. Como podem dar impulso à inovações, e resgatar seu papel de contrapoder? Quais os caminhos para formular uma nova regulação do trabalho, incluindo precarizados?
O artigo é de Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).
Eis o artigo.
Há múltiplas transformações que promovem transições das realidades econômica, social, política e cultural e que impactam a vida presente e futura da classe trabalhadora e da organização sindical.

Essas transformações podem ser caracterizadas por cinco transições estruturais, a saber: a transição tecnológica e digital, com destaque para a robótica, a inteligência artificial, os novos materiais e a biotecnologia; a transição demográfica, que indica um rápido envelhecimento porque a população vive mais e tem menos filhos; a transição ambiental e climática, com a poluição do meio ambiente e o aquecimento do clima pelo efeito dos gazes estufa; a transição política, com a fragilização das democracias, o crescimento da extrema-direita, os ataques ao Estado Democráticos de Direito e a liberdade; a transição de regulação e do valor político do trabalho, moldada pela desregulamentação trabalhista, pelas iniciativas para enfraquecer os sindicatos e pelo individualismo exacerbado.
O sindicalismo é o maior movimento organizado da sociedade civil no mundo e desempenhou ao longo dos dois últimos séculos um papel essencial para a promoção dos direitos trabalhistas, da qualidade dos empregos, do crescimento dos salários e a promoção e defesa da democracia e de suas instituições. Continuamos desafiados à cumprir essa missão histórica em um novo contexto econômico, social, político e cultural.
Refletir sobre esse desafio sindical é o que realiza o jurista e assessor do movimento sindical espanhol, Antonio Baylos, no livro “¿Para qué sirve un sindicato? Instrucciones de uso“[1]. Em um contexto de crise do trabalho assalariado, avanço do neoliberalismo, precarização e individualização das relações laborais, questionar a razão de ser do sindicato é, além de um exercício analítico, uma necessidade histórica. Este artigo apresenta cinco eixos fundamentais desenvolvidos por Baylos, que ajudam a compreender a relevância do sindicato diante das transições que ocorrem no mundo contemporâneo.
O sindicato como pilar da democracia
Os sindicatos são expressões organizativas autônomos da classe trabalhadora e cumprem um papel essencial na consolidação de regimes democráticos. A democracia se realiza nas urnas, nos parlamentos, nos governos, nos espaços de participação social. Mas a democracia também se realiza e se fortalece a partir dos locais de trabalho e nas lutas que a classe trabalhadora promove. O sindicato é o instrumento que permite aos trabalhadores exercerem sua cidadania social, lutando por condições dignas de trabalho, emprego de qualidade, melhores salários, proteção social e previdenciária, igualdade de oportunidades e participação.
Nesse sentido, para Baylos, o sindicato não é uma peça acessória da democracia, mas um de seus fundamentos. A sua existência fortalece os mecanismos de deliberação social, amplia o controle popular sobre as decisões econômicas e aprofunda a dimensão cidadã do sistema democrático. Em contextos de autoritarismo, os sindicatos são também espaços de resistência e defesa das liberdades civis e políticas.
Sindicato como contrapoder social
Outro aspecto que Baylos enfatiza é que os sindicatos têm uma função central de contrapoder frente à hegemonia do capital nas relações de trabalho. Em uma sociedade estruturalmente desigual, em que os patrões concentram poder econômico e institucional, os trabalhadores só conseguem defender seus interesses através da ação coletiva. O sindicato é o veículo desse contrapoder porque articula, mobiliza, organiza, representa e negocia.
Esse contrapoder não é apenas reativo, mas propositivo. Os sindicatos atuam na construção de alternativas, na formulação de propostas de regulação social do trabalho, na intervenção sobre a política econômica, na defesa de direitos sociais amplos e de políticas públicas universais. Baylos reafirma que o sindicato deve ser um sujeito político transformador, com projeto próprio e autonomia diante de governos e partidos.
Negociação coletiva como direito fundamental
Um dos pontos centrais do pensamento de Baylos é a afirmação da negociação coletiva como um direito fundamental dos trabalhadores. Trata-se de uma dimensão inalienável da autonomia sindical, reconhecida por convenções da OIT – Organização Internacional do Trabalho e constituições democráticas. A negociação coletiva é o meio através do qual os trabalhadores participam da regulação das condições de trabalho, dos salários, dos tempos de descanso e das formas de organização produtiva.
Sem negociação coletiva, o trabalho é regulado exclusivamente pelo poder unilateral do empregador ou pela legislação, que muitas vezes sofre pressões para ser flexibilizada. A negociação coletiva democratiza o local de trabalho, cria equilíbrio de forças, e permite adaptar normas gerais a condições setoriais e locais. Sua existência efetiva exige organização sindical forte, legislação protetiva e respeito institucional.
Representar todos os trabalhadores
A diversidade de formas de ocupação (assalariados com e sem carteira assinada; servidores estatutários; conta-própria, autônomos e trabalhadores independentes; cooperados; trabalhadores domésticos; trabalhadores de cuidados; pejotizados, microempreendedores individuais, entre outras) é um desafio estratégico a ser enfrentado pelo sindicalismo. Por isso, Baylos faz uma crítica contundente aos modelos sindicais excludentes, que representam apenas setores estáveis e com contratos protegidos. Para ele, o sindicato do século XXI precisa ampliar sua base de representação, incluindo trabalhadores precários, informais, autônomos dependentes, imigrantes e jovens.
Essa ampliação exige novas formas organizativas, linguagem acessível, escuta ativa e capacidade de intervenção nos novos espaços de trabalho (plataformas digitais, cadeias produtivas fragmentadas, cooperativas etc.). O sindicato precisa ser um instrumento de inclusão social e laboral, contribuindo para reduzir desigualdades e democratizar o acesso a direitos.
Enfrentar os desafios contemporâneos
O sindicalismo vive desafios globais: queda na densidade sindical e na sindicalização, fragmentação da classe trabalhadora e das formas de representação (categorias mais fracionadas e sindicato por empresa), ofensiva neoliberal para flexibilizar direitos trabalhistas e sociais. Baylos analisa esses desafios e, principalmente, aponta caminhos para enfrentá-los, com destaque para:
- O combate à “uberização” e à falsa autonomia dos trabalhadores de plataforma;
- A resistência à desregulamentação e à precarização do trabalho;
- A necessidade de revitalizar os espaços de negociação coletiva;
- A articulação com outros movimentos sociais e ambientais;
- A reinvenção das práticas de base, com foco na escuta e no cuidado.
O autor propõe investir em “nova cultura sindical”, baseada na democracia interna, na participação ativa dos filiados e na construção de alianças sociais amplas. Para Baylos, o sindicato continua sendo uma ferramenta essencial da luta por justiça social, desde que saiba se renovar sem perder sua identidade de classe.
Considerações finais
“Para que serve um sindicato?” não é apenas uma pergunta retórica. Em tempos de retrocessos sociais, de mercantilização da vida e de ataque aos direitos trabalhistas e sindicais, responder a essa pergunta é um ato de resistência e de ousadia política. Antonio Baylos oferece reflexões críticas e inspiradoras. Ele mostra que o sindicato é mais do que um instrumento de defesa: é uma escola de democracia, um agente de transformação social, um contrapoder imprescindível para que a igualdade deixe de ser uma promessa e se torne uma realidade concreta.
Referência
[1] “¿Para qué sirve un sindicato? Instrucciones de uso”, Antonio Baylos, Los Libros de la Catarata Editora, 192 páginas, 2021. Disponível aqui
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