28 Mai 2025
"As inúmeras medidas aplicadas por Milei desde o início de seu governo operam sob a lógica da “doutrina do choque” (Naomi Klein), pela sua profundidade e rapidez, buscando nocautear o campo popular e progressista. Isso é combinado com um aumento da repressão sob o guarda-chuva do ‘Protocolo Bullrich’, instrumento legal para reprimir com contundência os protestos sociais. A violência desproporcional empregada semanalmente contra as mobilizações de aposentados e aposentadas é o exemplo mais paradigmático."
O artigo é de Luismi Uharte, publicado por El Salto, 25-05-2025.
Luis Miguel Uharte Pozas é doutor em Ciências Sociais (Estudos Latino-Americanos). Professor da Universidade do País Basco desde 2010, no Departamento de Antropologia Social. É professor de Antropologia Econômica e Política. Membro do grupo de pesquisa Parte Hartuz e responsável pela área de estudos da América Latina. Suas principais linhas de pesquisa são: economia solidária e autogestão, novos modelos democráticos, alternativas ao desenvolvimento.
Este pesquisador aprofunda as chaves da vitória de Milei, as principais medidas do governo, o apoio substancial que ele tem e suas perspectivas a médio prazo.
Já se passou menos de um ano e meio desde que Javier Milei venceu as eleições presidenciais na Argentina, no final de 2023, supostamente contra todas as previsões, derrotando o candidato peronista, Sergio Massa, e após ter eliminado na primeira rodada a candidata da direita tradicional, Patricia Bullrich. É tempo suficiente para avaliar o que aconteceu até agora: identificar as chaves de sua vitória, as principais medidas do governo, o apoio substancial que possui e as perspectivas a médio prazo. Neste primeiro artigo, vamos abordar dois temas: as chaves de sua vitória e um balanço de seu projeto de governo.
Para entender a vitória de Milei, é preciso destacar que um conjunto de fatores, alguns conjunturais e outros de caráter mais estrutural, configuraram uma espécie de tempestade perfeita que possibilitou o triunfo de um candidato praticamente desconhecido, que liderava um partido novo, alheio ao sistema dos partidos tradicionais, e que trazia consigo um programa ultra, que a princípio parecia marginal na centralidade política do país.
Entre os fatores conjunturais destacam-se especialmente dois: a alta inflação e os efeitos da pandemia. Ambos configuraram uma bomba-relógio em um contexto de grande mal-estar social após os dois últimos governos: o de Macri (direita convencional) e o de Alberto Fernández (progressista-peronista). A profunda decepção que o mandato de Fernández provocou no campo progressista, como indicam diversas pessoas entrevistadas, abriu a porta para a chegada do partido de Milei, La Libertad Avanza.
A alta e crescente inflação que a população vinha sofrendo há mais de uma década — nos dois últimos anos de Cristina F. Kirchner, e nos mandatos de Macri e Fernández — foi um fator fundamental. Os impactos no cotidiano, especialmente das classes populares, foram devastadores e múltiplos, pois não só implicaram o deterioramento das condições materiais de vida, mas também provocaram impactos de ordem sociológica — ruptura da sociabilidade — e emocional — incerteza, angústia, raiva. A lembrança do pesadelo da hiperinflação dos anos 80 também pairava na memória histórica. Por isso, para freá-la, “as pessoas estão dispostas a qualquer coisa”, como destaca o cientista político Sergio Morresi. A “astúcia” do peronismo em apresentar como candidato presidencial aquele que havia sido o último ministro da Economia, Sergio Massa, considerado por amplos setores sociais como o “símbolo” do fracasso na luta contra a inflação, foi a cereja do bolo.
A pandemia foi outro fator de grande impacto, já que a longa quarentena impediu que um alto percentual da classe trabalhadora informal saísse para “trabalhar” — e que não recebeu salário, ao contrário da parcela dos trabalhadores formais. Embora tenham recebido um auxílio, este foi considerado muito precário. De fato, como aponta Gonzalo Armúa, dirigente do Frente Patria Grande, “pediam às pessoas que não saíssem de casa, mas isso era irreal, porque precisavam sair para conseguir o básico. Isso gerou muita revolta.”
A crise da classe política é um fator estrutural de grande relevância, que não era novo, pois tinha suas origens no Argentinazo de 2001, com aquele lema inesquecível “¡Que se vayan Todos!”. Um slogan que na época foi capitalizado pela esquerda, mas que hoje se volta contra ela, abrindo a porta para a extrema direita. Com uma hábil estratégia discursiva, Milei — professor, economista, comentarista — prometia combater a “casta”, em um contexto em que a sociedade percebia a classe política como corrupta, privilegiada e incapaz. Milei soube se projetar como o símbolo da mudança diante de uma ordem cada vez mais deslegitimada.
Outro fator estrutural é o avanço silencioso da direita nos últimos anos. Diversas pesquisas, segundo Morresi, apontam para mudanças sociológicas, sobretudo entre os jovens nas zonas rurais do interior do país. Os resultados dessas pesquisas mostram reivindicações de forte caráter conservador: contra o público, anti-feministas, linha dura, etc. Se a isso somarmos um contexto internacional de ascensão das extremas direitas, a síntese era que havia terreno fértil para que uma candidatura como a de Milei vencesse.
A nova direita argentina, motosserra em punho, em pouco mais de um ano implementou um programa de governo que deve ser analisado em vários níveis: o quê?, como?, para onde?
As medidas aplicadas por Milei desde o início de seu governo foram numerosas e contundentes. O ponto de partida foi o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), aprovado apenas dez dias após assumir seu mandato, em 20 de dezembro de 2023, que concedia ao presidente poderes especiais para legislar acima do Congresso por dois anos. Esse decreto, com seus 336 artigos, propunha uma mudança radical no modelo econômico e no papel do Estado.
A medida “bem-sucedida” por excelência foi a redução da inflação, às custas de uma brutal redução salarial. Os principais afetados foram aqueles que dependem de um salário, sobretudo os funcionários públicos, um setor social que, em grande parte, segundo Daniel Feierstein, sociólogo da Universidade de Buenos Aires, não constituía a base de Milei, além de ser um componente da classe trabalhadora em retração percentual devido ao aumento constante do trabalho informal.
A selvagem redução dos gastos públicos é um dos eixos centrais do programa governamental. Reivindicando o velho dogma ultraliberal da austeridade fiscal, o corte massivo de programas sociais foi acompanhado pela desinvestimento estatal em obras públicas, ciência, etc. Por sua vez, as demissões em massa de funcionários públicos foram draconianas. Até o momento, cerca de 35.000 pessoas perderam seus empregos. Paralelamente, a criação do Ministério da “Desregulação do Estado” trouxe a semi-demolição da estrutura ministerial, eliminando mais da metade dos ministérios (11 dos 20). Isso foi acompanhado por uma política anti-sindical, como denunciam delegados do sindicato estatal ATE entrevistados. A perseguição a representantes sindicais está sendo combinada com ameaças de demissão para quem tente se filiar, ressaltam do ATE.
No plano econômico, o recente acordo com o FMI é a decisão mais importante por duas razões. Em primeiro lugar, porque implicará novamente um grande endividamento acompanhado de cortes drásticos. Em segundo lugar, porque ativa o tradicional mecanismo de acumulação de capital que a oligarquia argentina usa para receber dólares, apropriá-los e depois praticar a fuga de capitais.
O ataque às políticas de memória e reparação da ditadura é outro frente aberto por Milei. Rompendo o consenso de quatro décadas, ele não apenas questionou o genocídio, mas também está tentando sufocar os centros de memória, reduzindo ao mínimo seu pessoal, como lembra a historiadora Paula Klachko. Em nossa visita ao icônico Museu da Memória ESMA, situado na sinistra Escola de Mecânica da Armada, foi exatamente isso que o pessoal nos transmitiu.
Os impactos de tudo isso já são evidentes nas condições de vida de alguns setores sociais: perda do poder de compra da massa assalariada, sendo especialmente doloroso entre os aposentados e aposentadas; aumento exponencial de pessoas dormindo na rua… Há outros impactos que ainda não se percebem, mas que serão sentidos a médio prazo e serão devastadores, segundo Feierstein, como a deterioração da malha viária ou do sistema científico do país.
As inúmeras medidas aplicadas por Milei desde o início de seu governo operam sob a lógica da “doutrina do choque” (Naomi Klein), pela sua profundidade e rapidez, buscando nocautear o campo popular e progressista. Isso é combinado com um aumento da repressão sob o guarda-chuva do ‘Protocolo Bullrich’, instrumento legal para reprimir com contundência os protestos sociais. A violência desproporcional empregada semanalmente contra as mobilizações de aposentados e aposentadas é o exemplo mais paradigmático.
Neofascismo? O mais novo e preocupante no modo de agir de Milei e seu governo é o salto qualitativo na forma de se relacionar com o adversário político, o que abriu o debate sobre seu possível caráter neofascista. Para o filósofo ítalo-argentino Rocco Carbone, Milei se diferencia da direita tradicional (do ‘macrismo’) porque não reconhece o antagonista político. Ele suprime seus direitos, representando uma experiência política não democrática, como ele expõe em seu livro Fascismo psicotizante. Isso explica o discurso de ódio contra o diferente que caracteriza a política comunicativa presidencial e a política da “crueldade” como dispositivo de gestão governamental. Como diz Gervasio Ramos, “não apenas se demite as pessoas de seus empregos, deixando uma família sem renda, como também se zombam publicamente delas”.