14 Mai 2025
"Minha primeira impressão é a de que Leão XIV busca unir o que muitos enxergavam, nos dois ou três últimos pontificados, estar de certa forma separado ou extremado para um lado ou outro, a criar Papas de “estimação” para grupos e teologias na Igreja."
O artigo é de Rodrigo Portella, professor no Departamento de Ciência da Religião da UFJF.
“Rei morto, rei posto”, diz o adágio. Jesus Cristo, conforme a tradição católica, quis deixar um seu representante, quer dizer, vigário, para guiar os seus nas marés da História, até seu retorno em Glória (eis aqui a fé multissecular da Igreja!). Portanto, a Igreja não pode ou não deve ficar por muito tempo órfã daquele a quem foi dado o poder/serviço das chaves. Francisco foi um Papa marcante, por diferentes motivos, tal qual todos os Papas, desde Pio IX, têm sido nos últimos cerca de duzentos anos. E têm sido porque, após as revoluções e as ideias que começaram a ditar o mundo após o Iluminismo, e que se intensificaram a partir do século XIX, a Igreja, através de seus Papas, não teve mais outra alternativa do que a de responder, de formas diversas, às questões que as modernidades a colocava.
O pontificado de Francisco surge em um contexto em que se extremavam, no planeta, posições muito marcadas e beligerantes em relação às várias agendas globais, geopolíticas e identitárias. Sem entrar no mérito de tais agendas, o fato é que seu pontificado sempre esteve atento e marcado por grande sensibilidade em relação a temas sociais e planetários (migrantes, paz, ecologia, ecumenismos, excluídos e vulneráveis). E, após um Papa teólogo, que tratava tais temas a partir de olhares teológicos cirúrgicos e claros – e aqui não está juízo de mérito, mas apenas constatação de método –, Francisco foi, antes de tudo, um pastor, e como pastor preocupado com os dramas humanos e sociais conduziu seu pontificado.
Relativamente a questões especificamente doutrinais, procurou fazer com que temas da modernidade e de suas contemporâneas agendas entrassem em diálogo com tópicos sensíveis da doutrina católica, como sexualidade, homoafetividade, casamento, eucaristia, papel das mulheres, ecologia, representatividade na Igreja, entre outros. Também aqui a teologia, é claro, entrou, e documentos foram produzidos, mas, ao que parece, teologias e documentos emanados da Sé de Pedro tinham como escopo ou ponto de partida determinadas sensibilidades pastorais a modelá-los. A avaliação sobre se tal diálogo foi bom e bem feito, ou não, varia conforme a visão teológica de grupos católicos bastante diferentes que habitam a sempre plural Igreja Católica.
Seu pontificado foi, também, marcado por certa informalidade que, por um lado, deixava a figura do Papa menos hierática e mais próxima das pessoas, mas por outro lado gerava alguns ruídos em suas intervenções e falas mais espontâneas, e causava certo desconforto em que entendia que havia, em meio à legítima informalidade, certos aspectos que eclipsavam o sentido do sagrado. De certa forma, foi um Papa bem latino e bem argentino, caso possamos olhar seu pontificado através de estereótipos como esses.
Já Leão XIV é, ainda, uma incógnita. E é bom que assim seja! Corremos sempre o risco de projetarmos, em análises tão cedo feitas, nossos próprios desejos e ideais a respeito de como deve ser o Papa. E eu, aqui, também corro tal risco. Porém penso que – talvez se olharmos pelo prisma dos que o elegeram – é a pessoa certa para esse momento na Igreja, tão polarizada como as sociedades civis atuais. Suspeito que foi nome que agradou a várias tendências no interior da Igreja, pois surgiu como nome de conciliação.
Mas, claro, não será possível agradar a todos sempre, e aqui e ali já parece dar sinais específicos, ora mais para a guarda e afirmação das doutrinas seculares e símbolos mais tradicionais da Igreja – e, no caso das doutrinas, em chave de compreensão ortodoxa conforme os Símbolos da Fé, os Catecismos da Igreja e os documentos conciliares. Um possível sinal deste zelo talvez tenha se dado em sua primeira homilia, pois que destacou a centralidade redentora de Cristo – e da Igreja/Arca a quem ele prometeu seu Espírito –, para iluminar as trevas do mundo (Jo 1, 4-5), na contramão de relativismos justificados por irenismos que, também entre cristãos, têm encontrado morada. Assim, se coloca como primeira testemunha de uma verdade que deve ser proclamada.
Contudo, ora também dá sinais de uma atuação mais ao modo de Francisco, mais pastoral e preocupada com temas sociais e planetários, a ser pastor com “cheiro de ovelhas”, como bem especificou Francisco dever ser a identidade do bispo e dos líderes da Igreja, que têm a missão de servir em conformidade com o serviço de doação do próprio Cristo. E, na verdade, não são atuações que se opõem, mas que se complementam. Afinal o cristianismo é, em muitos aspectos, uma religião de paradoxos, em que mais do que ou/ou, vale o e/e. E talvez seja isso que Leão XIV pretenda evidenciar, e que a Igreja carece nesse momento: saber que sensibilidade humana/pastoral e clareza doutrinal são complementares, e que um Papa deve zelar por ambas as perspectivas em um pontificado. Para a doutrina católica, o Papa é o sucessor de Pedro, e a fundamental missão petrina é a de “confirmar na fé” os cristãos, isto é, confirmar na fé (doutrina) e na caridade, pois a caridade sem a doutrina é ação social, política ou filantrópica que não requer ser cristão para realizá-la, e doutrina sem caridade/ação e preocupação social é fé morta, apenas teoria filosófica-teológica que não transforma a vida das pessoas.
Minha primeira impressão é a de que Leão XIV busca unir o que muitos enxergavam, nos dois ou três últimos pontificados, estar de certa forma separado ou extremado para um lado ou outro, a criar Papas de “estimação” para grupos e teologias na Igreja. Leão XIV, entrementes, parece, neste primeiro momento, buscar a harmonia entre a razão da fé e a ação de amor, entre doutrina e pastoral, já que elas devem se retroalimentar. Como no famoso bolero de Aldir Blanc e João Bosco, interpretado por Elis Regina, pode-se dizer que um pontificado assim é (ou será? ou seria?) “voz que acalma”, pois “são dois [passos] pra lá, dois pra cá”. Aprender a dançar assim, dois pra lá, dois pra cá, permite não se afastar do ritmo correto. Ser o fiel desta balança e o condutor deste bolero, nos tempos que correm, parece ser seu enorme, mas imprescindível, desafio.