03 Mai 2025
"Francisco foi um incansável agente destas práticas, que também são posições ético-políticas. Num mundo no qual vigora a 'pedagogia da crueldade', a concentração de coisas, a destruição do comum, a 'globalização da indiferença', a 'cultura do descarte' e a sobrevalorização do 'esterco do diabo', como ele mesmo chamou o dinheiro, lembrando a Basílio de Cesareia, suas palavras e sua vida aparecem como aquela luz, própria de 'homens em tempos sombrios', como chamou Hannah Arendt", escreve Paulo César Carbonari, doutor em filosofia (Unisinos), militante de direitos humanos, membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil).
A primeira notícia que li na segunda feira de páscoa foi uma daquelas que, ainda soubesse que viria, não queria tê-la recebido: a morte de Francisco, o papa. Tristeza foi o que brotou. Ao longo do dia, pensando no significado daquele acontecimento e do meu sentimento, gradativamente brotou outro em seu lugar: agradecimento. Aquele que nos deixava, na verdade, passava a ser legado e nos chamava ao seguimento e a testemunhar seus ensinamentos. Passei, então a buscar, entre os muitos que fez aflorar, os que levaria como centrais: a misericórdia e o cuidado.
Francisco foi um incansável agente destas práticas, que também são posições ético-políticas. Num mundo no qual vigora a “pedagogia da crueldade”, a concentração de coisas, a destruição do comum, a “globalização da indiferença”, a “cultura do descarte” e a sobrevalorização do “esterco do diabo”, como ele mesmo chamou o dinheiro, lembrando a Basílio de Cesareia, suas palavras e sua vida aparecem como aquela luz, própria de “homens em tempos sombrios”, como chamou Hannah Arendt.
Seu pontificado o levou a manifestações bastante consistentes sobre temas desafiadores, como no caso da economia e ecologia. Noutras questões, ainda que tenha ensaiado, não foi tão longe (mulheres, LGBTQIAPN+, gênero, entre outros temas). Fez reformas significativas no governo da própria Igreja e recolocou a sinodalidade (ou ao menos inaugurou seu recomeço). Apoiou movimentos populares, tendo feito com eles vários encontros. Difícil ser conclusivo na lista de frentes que inaugurou ou para as quais empenhou seu apoio (ou mesmo daquelas para as quais não deu relevância ou até se alinhou a retrocessos, como nos ataques à “ideologia de gênero”, por exemplo). Ressalto algumas, que reputo expressão de misericórdia e cuidado.
No encontro que fez com movimentos sociais populares, em Santa Cruz (Bolívia, julho de 2015), Francisco declarou: “O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança. Estou convosco. E cada um, repitamos a nós mesmos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice. Continuai com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra”.
Aos jovens, na Jornada Mundial da Juventude (2013), no Rio de Janeiro, um dos primeiros eventos públicos dos quais participou tão logo assumiu o papado, disse: “Em vista disso eu peço que vocês sejam revolucionários, eu peço que vocês vão contra a corrente; sim, nisto peço que se rebelem: que se rebelem contra esta cultura do provisório que, no fundo, crê que vocês não são capazes de assumir responsabilidades, crê que vocês não são capazes de amar de verdade”.
Um dos documentos mais contundente de seu pontificado, a Encíclica Laudato si’ (2015), é carregada de força e simbolismo: contra a “ecologia de mercado” pede o “cuidado da casa comum”. Denuncia que “[...] o discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem” (LS, 194).
Na mesma Encíclica também faz uma ligação indissociável entre o “grito da terra” e o “grito dos pobres”, mostrando a urgência de uma “ecologia integral”, que requer “cultura ecológica”. Esta “não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (LS, 111). Isso exige educação e espiritualidade ecológicas, em vista de “outro estilo de vida”, “aliança entre humanidade e ambiente”, “conversão ecológica”, “alegria e paz” e “amor civil e político” (LS, 202-232).
Na Fratelli tutti (2020) dedicou-se à fraternidade e a amizade social. Nela fala de “sombras de um mundo fechado” que se expressam em “sonhos desfeitos em pedaços”, “fim da consciência histórica”, “sem um projeto para todos”, “descarte mundial”, “direitos humanos não suficientemente universais”, “conflito e medo”, “globalização e progresso sem um rumo comum”, “pandemias e outros flagelos da história”, “sem dignidade humana nas fronteiras”, “ilusão da comunicação”, “agressividade despudorada”, “informação sem sabedoria”, “sujeições e autodepreciação” (FT, 9-53). Também fala de esperança, de recomeçar, de proximidade, para “pensar e gerar um mundo aberto”: que é “mais além, e exige o “valor único do amor”: “o amor coloca-nos em tensão para a comunhão universal. Ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude, isolando-se. Pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença” (FT, 95). E este amor universal se faz pela realização de condições concretas para a vida das pessoas: “ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento” (FT, 121).
Na Dilexit nos (2024), tratou do amor, o humano e o divino, fundamento da compaixão. Ela como que articula as duas outras Encíclicas, como ele mesmo diz: “O que está expresso neste documento permite-nos descobrir que o que está escrito nas encíclicas sociais Laudato si' e Fratelli tutti não é alheio ao nosso encontro com o amor de Jesus Cristo, pois bebendo desse amor tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum” (DN, 217). E em seguida declara: “Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas. O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor lá onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre” (DN, 218).
Finalmente, busco a declaração Dignitas infinita (2024), onde diz “Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no próprio ser de cada humano, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação em que se encontre. [...] fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos [...]” (DI, 1). Distingue quatro dimensões no conceito de dignidade: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial (DI, 7-9) e afirma expressamente que: “desta dignidade ontológica e do valor único e eminente de cada mulher e de cada homem que existem neste mundo fez-se eco a Declaração universal dos direitos humanos (10 de dezembro de 1948) por parte da Assembleia Geral das Nações Unidas” (DI, 2).
Este conjunto de referências de alguns documentos nos quais estão expressas as compreensões vividas por Francisco animam a seguir refletindo e, acima de tudo, a praticar a compaixão e o cuidado como boas práticas para fazer realidade a humanização: projeto humano mais genuíno e desafiante. Obrigado Franciscus por nos possibilitar viver no seu tempo e dele colher legados que nos empurram para fazer melhores os tempos que nos são dados seguir vivendo...