03 Mai 2025
Nesta época em que muitos se despedem do Papa do fim do mundo seria profético que os cristãos e seus governantes assumissem a pauta de uma ampla e profunda anistia. Como estatuiu Francisco viver a verdadeira esperança significa trabalhar pelo desencarceramento em massa, pela garantia do direito de migrar e pelo perdão das dívidas dos países mais empobrecidos. Querer capturar e manipular qualquer um dos três compromissos elencados pelo pontífice jesuíta seria inconcebível, por não passar de uma perversão de tais sinais luminosos em tempos tão obscuros.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Mesmo sem negar o ainda doloroso vazio deixado pelo papa da proximidade, os desafios do cotidiano se sucedem e as urgências da vida em sociedade se impõe com uma exigência avassaladora. Uma das questões candentes no cenário político que demanda o exercício consciente da cidadania é a luta pela anistia. E os cristãos e as cristãs comprometidos não podem se eximir, mas são chamados a se posicionar tendo diante de si a Boa Nova de Jesus. Talvez como um dos últimos legados de seu pontificado, o Papa Francisco deixou uma esclarecedora convocação nesse sentido.
Em meio a expectativa de como será o novo pontífice, a Igreja segue vivenciando o Ano Santo da Esperança e o documento de convocação do Jubileu aponta o caminho. Ninguém deve ser deixado para trás, especialmente os últimos e descartados da história. Como já disse em outra oportunidade, toda vez que entrava na prisão e contemplava os rostos dos encarcerados se perguntava: por que eles e não eu?
E com a coragem que lhe era característica conclamou a todos para que não se esqueçam jamais das milhões de pessoas que seguem trancafiadas e esquecidas ao redor do mundo. Com a palavra, o Francisco de Roma:
“No Ano Jubilar, seremos chamados a ser sinais palpáveis de esperança para muitos irmãos e irmãs que vivem em condições de dificuldade. Penso nos presos que, privados de liberdade, além da dureza da reclusão, experimentam dia a dia o vazio afetivo, as restrições impostas e, em não poucos casos, a falta de respeito. Proponho aos Governos que, no Ano Jubilar, tomem iniciativas que lhes restituam esperança: formas de anistia ou de perdão da pena, que ajudem as pessoas a recuperar a confiança em si mesmas e na sociedade; percursos de reinserção na comunidade, aos quais corresponda um compromisso concreto de cumprir as leis”.[1]
No Brasil, segundo os dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), no segundo semestre de 2024 havia 670.265 pessoas nos estabelecimentos prisionais. Isso para apenas 494.379 vagas, o que significa um déficit de pelo menos 175.000 vagas. Desse montante, 182.855 são presos provisórios, ou seja, ainda não possuem uma condenação definitiva e, por isso, não podem ser considerados culpados. Outras 122.102 pessoas estão sob monitoração eletrônica, enquanto 112.949 cumprem pena em prisão domiciliar, sem tornozeleira. No total, mais de 905 mil pessoas fazem parte do sistema carcerário!
Da população atrás das grades cerca de 527.000 não chegou a concluir sequer o ensino médio, um percentual que beira os 80%. Em relação à raça, 430.000 são pessoas negras, ou seja, quase dois terços dos privados de liberdade. No tocante à faixa etária, quase 40% tem entre 18 e 29 anos ou, se acrescentar àqueles com até 34 anos, o total sobe para em torno de 60%. E ainda, mais de 30% das pessoas presas cumprem pena por tráfico de drogas. De outro modo, a maioria da encarcerados é formada por pretos, jovens, com pouco estudo e envolvidos com o tráfico de drogas. Outros dois dados que podem ser acrescentados ao perfil do preso é que são também, em sua quase totalidade, pessoas pobres e periféricas.
Por isso que nos jubileus da Igreja é comum propugnar pelo o perdão das penas das pessoas condenadas. Em um país desigual como o Brasil isso faz ainda mais sentido. Afinal, o superlotado sistema penitenciário possui pouquíssimas condições de permitir a reinserção social do encarcerados. Sem mencionar também que há pouca oferta de estudos e de trabalho, conforme determina a lei. Tudo isso coloca em xeque o próprio sistema e faz acender um sinal de alerta. Nesta esteira, as palavras do papa ganham um relevo especial:
“Trata-se de um apelo antigo que, provindo da Palavra de Deus, permanece com todo o seu valor sapiencial ao invocar atos de clemência e libertação que permitam recomeçar: «Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a libertação de todos os que a habitam» (Lv 25, 10). O que está estabelecido na Lei mosaica é retomado pelo profeta Isaías: «O Senhor (…) enviou-me para levar a boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros, para proclamar um ano da graça do Senhor» (Is 61, 1-2). São palavras que Jesus fez suas no início do seu ministério, declarando em Si mesmo o cumprimento do «ano favorável da parte do Senhor» (Lc 4, 19). Em todos os cantos da terra, os crentes, especialmente os Pastores, façam-se intérpretes destes pedidos, formando uma só voz que peça corajosamente condições dignas para quem está recluso, respeito pelos direitos humanos e sobretudo a abolição da pena de morte, uma medida inadmissível para a fé cristã que aniquila qualquer esperança de perdão e renovação”.[2]
No prefácio do livro “Deus é jovem”, o papa jesuíta escreveu que “há uma passagem da Bíblia (Joel 3, 1) que diz: ‘Os anciãos terão sonhos, e os jovens terão visões’”. “Mas esta sociedade descarta ambos, descarta os jovens, assim como descarta os velhos”, denunciou o argentino. “Mas a salvação dos velhos é dar aos jovens a memória”, “enquanto a salvação dos jovens é tomar esses ensinamentos, esses sonhos e levá-los em frente na profecia”. Como sonhar em uma cela fétida e superlotada, sofrendo torturas e humilhações recorrentes dos próprios guardas?
Muitos desses jovens sequer podem arcar com um advogado e alguns deles são abandonados nas necessidades mais básicas pelas próprias famílias, também elas vítimas de um sistema brutal que as marginaliza. Não é possível “reintegrar na sociedade” alguém que mal teve acesso a uma saúde e educação de qualidade, ou mesmo a moradia digna e alimentação suficiente. Os anos na penitenciária não servirão apenas para sacramentar a entrada nas facções criminosas e o cultivo da legítima indignação que extravasa em violência insana?
Ao invés do racista encarceramento em massa da juventude periférica e excluída, não é tempo de promover uma robusta e ampla anistia, aliada a políticas públicas que ofereçam um futuro cheio de esperança e perspectivas formativas e laborais a tais jovens? É fundamental a promoção de alternativas culturais, nas desassistidas periferias dos centros urbanos, com a valorização de iniciativas locais.
De outra feita, revela-se insustentável a forma como as Polícias Militares estão estruturadas, sendo inadiável uma profunda reforma de sua formação inicial e de seus métodos violentos de ação. Os corpos pretos não podem mais serem alvos fáceis das balas perdidas das malfadadas operações policiais. Assim, o tempo para acabar com o Estado de Exceção dessa parcela da população já se esgotou há muito. Ou triunfa o Estado de Direito ou finalmente fracassa a democracia.
Um segundo clamor apresentado pelo falecido pontífice refere-se à anistia a toda forma de criminalização dos migrantes e refugiados. Em pronunciamentos sucessivos e gestos embebidos de forte simbolismo, Francisco gritou a plenos pulmões a quem pudesse ouvir: basta de perseguições cruéis e insensibilidades desumanas. “Possa a comunidade cristã estar sempre pronta a defender os direitos dos mais débeis”, insta o documento papal. “Generosamente abra de par em par as portas do acolhimento”, conclama Bergoglio, “para que nunca falte a ninguém a esperança duma vida melhor”. Nesta lógica reflete o Sucessor de Pedro:
“Não poderão faltar sinais de esperança em relação aos migrantes, que deixam a sua terra à procura duma vida melhor para si próprios e suas famílias. Que as suas expetativas não sejam frustradas por preconceitos e isolamentos! Ao acolhimento, que no respeito pela sua dignidade abre os braços a cada um deles, junte-se a responsabilidade, de modo que a ninguém seja negado o direito de construir um futuro melhor. A tantos exilados, deslocados e refugiados que, por acontecimentos internacionais controversos, são forçados a fugir para evitar guerras, violência e discriminação, sejam garantidos a segurança e o acesso ao trabalho e à instrução, instrumentos necessários para a sua inserção no novo contexto social”.[3]
Mesmo contando com uma avançada legislação sobre migração e uma boa política de acolhida, o país ainda pode e deve avançar. Infelizmente, não é raro escutar falas xenofóbicas sobre a presença de venezuelanos e haitianos nos vários espaços públicos da sociedade pátria, com o intuito descabido de lhes atribuir responsabilidades inexistentes. Não se deve nunca se esquecer que o Brasil foi formado por migrantes de todas as origens. Ignorar tal fato implica em negar a própria história.
No mais, seria importante ainda que o Parlamento federal utilizasse todas as suas ferramentas, para fazer gestões diplomáticas nos países aliados, a fim de garantir o direito de migrar com dignidade. De outra parte, seria imprescindível externar com veemência toda a indignação pertinente, nos casos de humilhação e violação das garantias legais dos cidadãos brasileiros, deportados como criminosos perigosos.
Em um mundo em que os magnatas das big techs concentram centenas de bilhões de dólares e lucram sem qualquer tipo de regulamentação de seus negócios, o capitalismo tecno-financeiro parece ilimitado na capacidade de interferir na política mundial em benefício próprio. Contudo, o inesquecível Papa latino-americano lembrou que é próprio dos jubileus o perdão das dívidas das nações mais pobres. Assim, o pontífice recorda que o princípio da solidariedade não pode ser ignorado nas relações internacionais:
“Outro convite premente que desejo fazer, tendo em vista o Ano Jubilar, destina-se às nações mais ricas, para que reconheçam a gravidade de muitas decisões tomadas e estabeleçam o perdão das dívidas dos países que nunca poderão pagá-las. Mais do que magnanimidade, é uma questão de justiça, agravada hoje por uma nova forma de desigualdade de que se vai tomando consciência: «Com efeito, há uma verdadeira “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países». Como ensina a Sagrada Escritura, a terra pertence a Deus e todos nós vivemos nela como «estrangeiros e hóspedes» (Lv 25, 23). Se queremos verdadeiramente preparar no mundo a senda da paz, empenhemo-nos em remediar as causas remotas das injustiças, reformulemos as dívidas injustas e insolventes, saciemos os famintos”.[4]
Nesta época em que muitos se despedem do Papa do fim do mundo seria profético que os cristãos e seus governantes assumissem a pauta de uma ampla e profunda anistia. Como estatuiu Francisco viver a verdadeira esperança significa trabalhar pelo desencarceramento em massa, pela garantia do direito de migrar e pelo perdão das dívidas dos países mais empobrecidos. Querer capturar e manipular qualquer um dos três compromissos elencados pelo pontífice jesuíta seria inconcebível, por não passar de uma perversão de tais sinais luminosos em tempos tão obscuros.
Por meio desses gestos significativos, então sim, se poderia finalmente avançar a passos largos rumo a efetiva reconciliação social e a desafiadora paz da humanidade. Para tanto, nunca é demais lembrar, como afirmou a Fratelli Tutti, que “a verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia.” Logo, “se, por um lado, são essenciais – as três todas juntas – para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas”[5].
Por isso, lutar pela pacificação interna e entre os povos implica em garantir a memória histórica dos acontecimentos, para que nenhuma forma de opressão ou autoritarismo se perpetue ou se repita. No caminho da reconciliação tão cara ao cristianismo, não há espaço para a distorção da realidade ou para a tentativa de apagamento dos fatos.
Observado esse pressuposto e defendida como uma proposta de justiça e reparação, a anistia constitui-se em uma oportuna bandeira de todo cristão e pessoa de boa vontade. Então resplandecerá a esperança que terá vencido o medo mesquinho e o egoísmo autocentrado. Pela anistia aos encarcerados, aos migrantes e refugiados e às dívidas dos países pobres. Anistia, já! Esperança, sempre! Viva o Papa Francisco e o seu Jubileu de libertação!
[1] PAPA FRANCISCO. Bula Spes non confundit. 9 maio 2024. nº 11. Disponível aqui.
[2] Idem.
[3] Idem, nº 13.
[4] Idem, nº 16.
[5] PAPA FRANCISCO. Encíclica Fratelli Tutti, nº 227. Disponível aqui.